domingo, 26 de maio de 2013

       DESOBEDIÊNCIA


         Lembro-me de há anos,  já um rôr deles, ao ser questionado sobre o seu passado de militância num partido da extrema esquerda revolucionária, o Dr. Durão Barroso, actualmente empregado numa empresa de Bruxelas, replicou aos jornalistas (e cito de memória) que quem não era revolucionário aos 18 anos dificilmente seria um bom social-democrata aos 40 – uma resposta que já não era nenhuma originalidade, posto que copiava um dito do chanceler alemão Willy Brandt.
Quererá então isso dizer que um homem  nunca será zeloso guardião das instituições e do normal funcionamento delas se, no devido tempo da sua vida, não praticou com igual zêlo os seus actos de transgressão e desobediência às mesmas instituições e à ordem vigente?


Quererá isso dizer que dificilmente se será um bom e disciplinador pai se não se tiver cultivado enquanto filho alguma desobediência, alguma contestação à autoridade paterna?
Quererá isso dizer, ainda, que a experiência do Mal que se encerra numa desobediência pode ser um rito indispensável de passagem para a condição de defensor dos bons valores?
Já li nalgum lado que antigamente as crianças da aristocracia, por mais que prevaricassem e desobedecessem, eram bastante poupadas no capítulo dos castigos corporais, porque se dizia que esse tipo de punição era mais adequado ás crianças das classes servis. Para os nobres haveria sempre a honra, o acicate da honra, e era desse discurso da honra de que os nobres se serviam quando era de zurzir a prole desobediente. Para a nobreza, só como último dos recursos era de admitir o castigo corporal dos filhos depois de estes chegarem a uma idade que lhes permitisse raciocinar. Num descendente da nobreza, com a razão vinha sempre o orgulho e a soberba próprios de um sangue tomado como excepcional. E era a honra, a sua e a de sua família, o que estava em jogo se algum mestre-escola mais atrevido os castigasse fisicamente por não saberem as lições.
Mas o exemplo de Felipe II parece desmentir tudo isto. Felipe II, que não foi dos mais assanhados revolucionários que a História tivesse conhecido, antes de, em idade adulta, dominar metade do mundo com mão de fogo, teria sido, por volta dos seus 4 aninhos de idade, um estafermo de um puto desobediente,  sujeito a vergastadas e a castigos corporais de vária ordem, e mais que muitos, aplicados com uma barbaridade que punha em alvoroço o coração das mulheres da corte quando viam açoitar tão desapiedadamente aquela doce criaturinha – que, pelos vistos, aos 4 anos já devia ser uma boa prenda…
Mas agora, ainda no balanço de um ano de Wagner, ocupo-me de deuses. Aliás, deuses, semi-deuses e estranhas criaturas chamadas valquírias, cavaleiras da obediência absoluta às vontades paternas e divinas – o que era a mesma coisa, pois eram filhas de Wotan, o deus.


Siegmund pereceu no combate com Hunding, só porque Wotan, respeitador dos pactos feitos coma mulher, Fricka, fez despedaçar a espada mágica (Nothung), deixando Siegmund, o eleito do seu coração, desamado, à mercê do sanguinário Hunding. E na hora de agir em campo de batalha segundo os ditames do deus seu pai, a posição de Brünhilde era delicada, para não dizer insustentável. Sabia o quanto representava para Wotan e para a estirpe dos deuses o ser que a amante e irmã gémea de Siegmund, Sieglinde, tinha no ventre – Siegfried. E como sabia isso decidiu protegê-la após a derrota e morte de Siegmund, o pai da criança que haveria de nascer, não ignorando por certo que iria cair sob a terrível alçada disciplinar do pai.
Brünhilde encaminha Sieglinde para a floresta densa e perigosa, e que por ser densa e perigosa pode ser o lugar que oferece melhor protecção. E depois Brünhilde corre o campo de batalha a recolher os pedaços dispersos da espada mágica. Mete-os no bornal de Sieglinde e anuncia-lhe que aquele filho que ela traz no ventre terá de nascer dê lá por onde der, e ainda que nas condições mais adversas. Anuncia ainda a Sieglinde que aquela espada agora destroçada haverá de ser reconstituída, e que com ela o filho que Sieglinde dará à luz, e que se chamará Siegfried, virá a ser o herói independente que Wotan sonhava para continuar a obra dos deuses. Sieglinde exprime a sua gratidão à valquíria e interna-se na floresta.

Mas a soberana e sublime vontade de Wotan havia sido miseravelmente dobrada por sua esposa, Fricka. Visto isso, Wotan nunca poderá perdoar a Brünhilde a desobediência. Wotan não perdoará Brünhilde o ter querido ajudar Siegmund contra Hunding, o ter arranjado maneira de proteger e encaminhar Sieglinde grávida pela floresta, ter-lhe metido no farnel os pedaços da espada. Mas onde e que já chegámos? Wotan, o deus dos deuses, quer ajustar contas com aquela filha tão predilecta e tão desobediente, e então, iracundo, corre as montanhas bradando o nome da filha, até aparecer no lugar onde estão reunidas as valquírias, as irmãs, que procuram esconder a foragida da raiva do deus dos deuses.


- Onde é que está essa atrevida? – grita Wotan- - E vocês… ousam escondê-la de mim? Tende tento, insolentes, e afastai-vos da que foi rejeitada para sempre, tal como ela rejeitou a sua honra.
Digamos então que Brünhilde, no mesmo acto, obedeceu e desobedeceu simultaneamente. Desobedeceu à razão de Estado que impunha ao pai, Wotan, a morte daquele que até então, e desveladamente, tinha protegido, Siegmund. Desobedeceu á razão de Estado que obrigava à morte daquela, Sieglinde, que trazia nas entranhas o frutos dos amores incestuosos, fruto que uma vez nascido, e quando já espigadote, seria o único com condições de salvar da perdição a estirpe dos deuses.
Mas Brünhilde também no mesmo gesto obedeceu. Obedeceu à razão humana e à mais íntima das vontades do pai, que era a de salvar Siegmund e Sieglinde, uma vontade que a guardiã da decência, dos bons costumes e da moral conjugal, Fricka, a mulher dele, conseguira anular.
O capricho e a instabilidade de pareceres e de vontades pode ser atributo dos deuses, assim como, não sei, alguma irracionalidade. Um  capricho ou uma irracionalidade capazes de acometer de vez em quando quem tenha nas mãos o mando, um mando qualquer, a vontade absoluta, o poder absoluto sobre alguém.
Já em novo, para assegurar a posse de Fricka como esposa, Wotan fora obrigado a privar-se acidentalmente de um olho. E há quem interprete esse simples detalhe como significativo de uma quebra de lucidez por parte do deus dos deuses, uma limitação da capacidade de apreender o mundo que criara, o dos outros e o seu, uma limitação, enfim, da sua capacidade e da sua vontade de poder.
- Foi ela que nos procurou – justificam-se as valquírias.- Foi ela que buscou a nossa protecção. Pai, acalma a tua ira. Ouve as razões dela.

Wotan considera-as no fim de contas umas cobardolas, ao vê-las condoídas pela sorte da irmã.
- E eduquei-vos eu na bravura e no combate. E dei-vos eu corações duros e impiedosos! Nunca esperei que se pusessem a choramingar quando na minha justa cólera decido castigar uma infiel.
E o deus dá-se a maçada de explicar às suas filhas guerreiras o sentido da malfeitoria de Brünhilde:
- Ela conhecia como ninguém os meus desejos mais profundos. Conhecia a própria nascente da minha vontade. O meu desejo era nela que se encarnava. Mas ela rompeu a nossa aliança sagrada. Rebelou-se contra a minha vontade. Escarneceu das minhas leis soberanas. Voltou contra mim a arma que lhe confiei…
Não me digam que na desobediência familiar não está integrado um forte sentido de sacrilégio, quando os actos fundamentais da vida de família, nascimento, casamento (fidelidade ou adultério), morte, comportaram em todos os tempos, e ainda hoje, um carácter social e ritual; e quando os laços estabelecidos e os estados que desses laços decorrem determinam uma consagração a poderes superiores. É aí que toda a desobediência no quadro da família representa um atentado contra esses poderes superiores.
A organização social tradicional alguma coisa repousou em dois vértices importantes: um, o parentesco; e outro, os grupos de idade. Estabeleciam-se direitos, deveres, obrigações; normas definidas, prescrições estreitas. Era bom acalentar dentro da família certos sentimentos relativamente a certas personalidades integrantes do grupo. Por assim dizer, uma normativização dos sentimentos que levasse ao respeito e à deferência mais por uns do que por outros. E era preciso ajudar mais uns do que outros, os de mais idade, ou os de superior posição social. A obediência é um patamar cimeiro da boa ordem natural da família.
        E Brünhilde aparece.
        - Aqui estou, pai. Qual é o teu castigo?
        Não. Wotan adianta que nem será ele a punir a desobediente. Será ela a autora do seu próprio castigo.
        - Não existirias se não fosse essa a minha vontade. E tu ergueste-te contra a minha vontade.
        Brünhilde alega:  tinha-se limitado a executar as ordens que recebera do pai;  até ao dia em que, movida por sentimentos ainda não arregimentados a vontades estanhas, dera a si própria uma ordem que contrariava as prescrições paternas.
        - Eras a minha filha segundo o meu coração, e ergueste o teu coração contra mim…
         Não me digam que desobedecer não é infringir as altas vozes das instituições, dos poderes, os estatais, os familiares. Não me digam que desobedecer não é muitas das vezes subalternizar, e desafiar,  o apelo da tradição e da estirpe, e das normas, e até do que se chama honra.
E quantas vezes desobedecer não é também obedecer?
Obedecer a uma outra voz, muito íntima, sibilina, a voz que nos chama ao cumprimento da nossa soberania pessoal.


Por vezes cedo demais, é certo, e destemperadamente, segundo a vontade e o parecer dos mais velhos, pelo menos, dos outros, do mundo.


- Confiei-te o cuidado de decidires a sorte dos combates, e tu decidiste um combate contra mim. Encarreguei-te de encorajar os heróis, e tu agitaste um herói contra mim. O que tu eras outrora disse-to eu mesmo. O que passarás a ser a partir de hoje serás tu a dizê-lo. Mas por certo não serás mais o que ainda és agora. Não, não serás mais a enviada de Wotan. Não mais levarás os vencidos ao meu palácio. No íntimo banquete dos deuses não mais serás tu a estender-me afectuosamente a taça. Não, não receberás mais de mim o beijo paternal. Foste expulsa do exército celeste. Foste excluída da raça dos imortais. A nossa aliança quebrou-se…
Ser revolucionário é querer a perdição das instituições aos 18 para ser um bom governante aos 40. Revolução é para as almas novas. Governação é caso para cabeças avisadas.
Mas não será verdade que em todos os tempos a  vida humana se fundou sobre a proibição? E não será verdade que a proibição é o que acrescenta aquele sentido embriagante de liberdade que enche a boca a tribunos, a legisladores, a panfletistas, a políticos?
Sim, a políticos, depois de chegados aos 40, e depois de saberem por experiência o que significa a danação dos 18.

Será por isso que as ditaduras tenham sido bons alfobres de democratas do mais alto coturno (os que lhe estiveram contra, claro), e o todo-poderoso e inflexível e infalível Estado tenha sido então uma escola de libertários…
E se a vida humana assenta muito numa cadeia de proibições, então é porque assenta também  numa grande e naturalíssima vontade de transgressão. E então a transgressão passa a ser o grande meio de salvação do Homem, porque a capacidade de transgredir um destino formatado e inelutável é que preside à transformação do primata num homem…
Wotan decreta a expulsão de Brünhilde do número das valquírias. A virginal flor que era seu atavio fanar-se-á como por encanto. Um homem, um vulgar esposo, obterá dela os favores de mulher, e a esse esposo ela passara ingloriamente a obedecer como a um senhor, sentada diante da lareira a fiar a roca, a fazer os trabalhinhos domésticos – a ver a novela, a lavar a loiça, a preparar o lanche para os miúdos levarem para a escola – a sujeitar-se às zombarias que os homens usam fazer abater sobre a condição feminina. As outras valquírias que fujam dela, que desapareçam depressa daqueles lugares.


- Mas, pai,  será tão desgraçada e vergonhosa a minha culpa para ser punida desse modo também tão vergonhoso?
- Ordenei-te que combatesses por Siegmund…
- Pois foi…
- Mas depois não voltei atrás com a ordem?
- Porque Fricka te influenciou! Só por isso… só por isso, tu, pai, te tornaste inimigo de ti mesmo.
(Atenção: Fricka não era mãe de Brünhilde; e assim se percebe que a valquíria meta veneno ao pai contra a madrasta.)
- Não me compreendeste então. Foi o desafio que me fizeste que castiguei. Porque me julgaste cobarde e estúpido e incapaz de vingar a tua traição…
- Oh, pai, eu sabia que tu amavas Siegmund, sabia o conflito que te minava o coração. O teu coração estava dividido, amargamente dividido. Partilhar com Siegmund a vitória ou a morte: só essa seria uma atitude digna de mim.
- Sabias tudo isso… e continuaste a protegê-lo…
Quando, na proximidade da hora do combate, Brünhilde falara com Siegmund e lhe anunciara a morte como vontade suprema de Wotan, exactamente quando ele mais contava com a protecção divina, a valquíria sentira vergonha pela vontade tão caprichosa de seu pai. Nesse momento, Brünhilde deixara-se tocar por uma infinita compaixão, perante a angústia e a confusa perplexidade do rapaz. O coração dela bateu então muito forte, a sua visceral humanidade varreu-lhe da cabeça os deveres de obediência cega, institucional.
Não sei se Brünhilde teria 18 anos. Era capaz de não andar muito longe disso. Era ainda muito jovem, de qualquer das maneiras. Ainda tinha a mania de acordar todas as manhãs muito cedo lá no Walhalla, a residência dos deuses, e desatar aos gritos de guerra pelos corredores, muito bem disposta. Jovem e generosa, Brünhilde seguira a voz da sua compaixão. Esquecera os deveres de Estado.


Wotan ouve-lhe as humaníssimas razões e vai aplacando a própria ira.
O conflito pessoal de Brünhilde, ditado talvez pela sua juventude, situava-se nos limites da humanidade presente na consciência da que fora treinada (uma SS?) para a inflexibilidade e para a obediência. Pisara por isso o risco vermelho da insubmissão. Forçara as fronteiras impiedosas e definidas pelas palavras sagradas do pai, a instituição.
Brünhilde metera-se a interpretar em actos a subjectividade sagrada do pensamento do pai quando este lhe ordenara a morte do ser que ele próprio amava. Interpretando a subjectividade, Brünhilde cumpre nesse acto uma objectividade. Tem de assumir por inteiro a objectividade desse acto. E também por isso Brünhilde desobedece e obedece: obedece objectivamente à sua soberania pessoal; desobedece às regras imprecisas do subjectivo. Entra portanto em choque com a manifestação máxima do sagrado: a sua subjectividade.
- Comprazias-te nas doçuras da pura felicidade e vazavas a taça do amor, enquanto eu me mortificava na minha divina angústia.
Wotan já não era criança nenhuma; já estava um deus maduro. Mas mesmo quando se arma em durão lá bem no fundo não pode deixar de compreender as razões da filha. O que faz é reflectir sobre a sua própria impotência perante o contrato leonino que Fricka, a mulher, lhe impusera. A Wotan só lhe apetece desaparecer entre as ruínas do universo que criara.
- Não compreendes, pai, que só tive como  lema de vida amar aquilo que tu amavas? Ouve, pai, não podes deixar cair na desonra aquela que eternamente é parte de ti mesmo. Não podes desprezar a metade de ti próprio. Um deus não esquece…
- Sucumbiste aos poderes do amor, foi o que foi. Deixaste-te conduzir por um espírito leviano. Desligaste-te de mim. E também eu me devo afastar de ti. Já não tenho o direito de partilhar contigo os meus mais secretos desígnios.

A sentença era deixar Brünhilde profundamente adormecida no pico da montanha. E que adormecida ficasse até que o primeiro que por ali andasse a vaguear a despertasse e a tomasse como esposa. Brünhilde rebela-se contra esse castigo.
- Se preferiste o amor, então sujeita-te áquele que te encontrar e ao qual terás de amar…
- Pai, tu deste orígem a uma nobre estirpe. O mais valente dos heróis, sim, esse perpetuará a linhagem dos Wälse.
- Já não quero saber da linhagem dos Wälse. Assim como me separei de ti também dela me afastei. A inveja acabará por dar cabo dela…
- Mas pai, Sieglinde erra na floresta. Tem no ventre o sagrado fruto da tua raça de deuses…
- Não procures mais junto de mim  protecção para essa mulher nem para o fruto daquele amor incestuoso.
- É essa mulher que tem os restos da espada encantada que ofereceste a Siegmund!
- Sim, mas que depois despedacei com a minha lança!
Em presença daquela inflexível vontade de pai e de deus, e na perspectiva da desonra que seria para uma valquíria ficar magicamente adormecida à disposição do primeiro que passasse, Brünhilde abraça-se aos joelhos de Wotan e implora-lhe uma última mercê. 
- Prefiro, pai, que me destruas. Prefiro morrer na ponta da tua lança do que sofrer o castigo que me destinaste – pelo rosto da valquíria perpassa um fulgor de inspiração heróica. -  Manda ao menos que um fogo alteroso se ateie em redor da montanha. E que esse fogo consuma o cobarde temerário que tenha o arrojo de se aproximar.
Ouvindo isto, uma funda comoção assalta o deus dos deuses ao olhar a filha ajoelhada a seus pés.
        - Adeus, soberba e valente criança. Adeus. Se me vejo forçado a abandonar-te, se nunca mais poderás cavalgar a meu lado, se nem no banquete dos deuses poderei voltar a receber de ti a taça do hidromel… então que a chama de um fogo nupcial te envolva como nenhum outro se acendeu para uma noiva… e que todo o cobarde fuja do rochedo de Brünhilde, e que a noiva seja liberta por um ser mais livre do que eu próprio, o deus…


            Estava mesmo a dizer: esse ser seria Siegfried.
        Já se sabe que o mais certo é o princípio da desobediência afirmar-se como um dos mais poderosos e inconcebíveis motores da História, e será a perspectiva de uma desobediência o fantasma mais temido de todo o poder, de toda a autoridade. E para que precisávamos nós de autoridade se a desobediência não fosse um estado puro e natural da condição humana?
        Wotan continua a despedir-se da filha:
        - Esses olhos brilhantes, que tantas vezes, sorrindo, eu beijei quando o estrondo da batalha te valeu um beijo… quando, com voz de criança, os teus lábios pronunciavam o louvor dos heróis… esses olhos que tantas vezes na tempestade brilharam para mim… esses olhos… oh, que seja hoje a última vez que o meu coração com eles se regozije…
        E com um último beijo, Wotan retira de Brünhilde a essência divina.


        Wotan enfrentara uma desobediência mais perigosa do que a simples rebeldia filial, uma desobediência que lhe vinha de quem não era seu inimigo jurado, de quem não era seu adversário declarado e natural. Wotan confrontara-se com a insubmissão de alguém cujo sentido da vida e a consequente lógica de sopro divino residiam exactamente na obediência ao deus e ao pai; alguém, aliás, cuja vida, ou cuja essência divina não tinha qualquer sentido fora da obediência.


    Uma língua de fogo cresce nas silvas, aumenta, aumenta…
        Com a lança, Wotan desenha no espaço o círculo de fogo que haverá de rodear o sono de Brünhilde. Em breve aquele lugar se tornará infrequentável para um simples mortal.
  Depois, Wotan, magnífico, cabelos iluminados pela labareda, exibe os restos do seu poder, proclamando em terrível voz:
        - Que  aquele que temer a minha lança jamais possa franquear este círculo de fogo!
        O acto de insubmissão de Brünhilde à vontade do pai foi a marca de uma razão natural a perturbar o curso do determinismo e do arbítrio dos poderosos deuses. Foi a liberdade de um gesto humano a transgredir os descricionários códigos do poderio. O crepúsculo dos deuses avizinhava-se. Nem o salvamento do herói Siegfried poderia evitá-lo.
                                 
                                                

        Mas quando soar a última nota da última das óperas da tetralogia, o Crepúsculo dos Deuses, justamente, é como se Wagner, a alma gémea de Wotan, o demiurgo, o mistagogo, tivesse deixado em aberto a escrita do resto da História da Humanidade.

                                         
        
           E se há coisa em que acredito é nisso: a insubmissão aos 18 anos é o sal da nossa vida; só essa rebeldia poderá humanizar a  nossa idade madura, o resto dos nossos dias.

                                     
       
        (Só foi pena eu, ao falar de deuses, semi-deuses, demiurgos, ter apontado logo no princípio para a medíocre figura de D. Barroso. Poderia ter encontrado melhor do que um acinzentado funcionário, do que um burocrata obediente e carreirista.)

 




1 comentário:

  1. Nas teias complexas e confusas dos significados das profundezas mais perenes e inacessíveis da alma humana e do coração das sociedades de humanos, eu vivi com quinze anos os tempos em que D. Barroso supostamente exerceu a sua rebeldia dos dezoito, desconfio muito fundadamente desse sua rebeldia e até da sua crença intrínseca nessa atitude juvenil.

    Quem viveu o "verão quente" de 75, mais tarde sarcásticamente rebaptizado, pela narrativa social dominante - retornado-revanchista -, por "PREC", sabe muito bem que o espalhafatoso e serôdio "esquerdismo" maoísta desses tempos, muito mais de que relevar de uma atitude de contestação face à Sociedade capitalista em que se manifestava, traduzia uma indisfarçãvel postura de demarcação face ao anti-fascismo dominante, como uma espécie de caução para se poder ser visceralmente anti-comunista sem se correr o risco de se ser conotado com a "reacção" e o Fascismo.


    D. Barroso, como tantos outros jovens universitários elitistas e de origem social abastada e privilegiada, mais do que revoltados com a Sociedade capitalista em que viviam, estavam era enraivecidos com o sucesso do 25 de Abril, com o que isso representava de incómodo para a geração dos seus papás e de "empecilho" ao prosseguimento triunfal das suas boas vidas e perspectivas de carreira, que já anteviam viçosas para além dos arroubos temporalmente limitados das suas crises de crescimento intelectual e físico.


    O MRPP e outras invenções da juventude snob e imatura que então sorvia pelas Universidades os restos ressequidos das verdadeiras lutas estudantis e anti-fascistas dos anos 60 e inícios de 70, constituiram o refúgio das consciências - e por vezes também dos coiros - perante o consumar da emancipação política dos jovens operários e camponeses, suburbanos e provincianos, face às prerrogativas e às aspirações da média e alta burguesia urbana, súbitamente postas em causa por essa realíssima maçada do 25 de Abril, da Democracia, da Igualdade e da Socialização dos meios de produção.


    Uma seca, pá!


    Por isso dizer que D. Barroso foi "revolucionário" aos dezoito anos é tão rigoroso e significativo, como dizer que Hitler e Mussolini começaram por ser "socialistas".


    Mas a História é como as marés: enquanto não se percebe se estão a encher ou a vazar, é o ponto em que a onda alcança que separa o que é água, do que é terra. Marca efémera, contudo, e que o passar do Tempo reduzirá à sua merecida insignificância...


    Aliás, basta ver o percurso dos principais "maoístas" desse longínquo verão quente de 75 - e onde hoje quase todos se encontram... -, para perceber o "logro" em que labora a narrativa social dominante sobre o significado desses tempos, numa fase da História recente de Portugal cada vez mais desconhecida e (mal) mitificada pelo imaginário popular e o subconsciente colectivo nacional.


    Daqui por uns cinquenta anos, talvez a maré da História fixe, finalmente, as balizas verdadeiras do que foi, realmente, o 25 de Abril, a Libertação, a Democratização, a Descolonização e o Progresso, oh, o "progresso", deste ex-jardinzinho à beira-mar prantado.

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