domingo, 30 de junho de 2013

VERDI -  DE TRAFICANTE DE ARMAS A

        DEPUTADO




Já na noite de estreia de Simão Boccanegra, no Scala, os patriotas que assistiam à récita haviam lançado o famoso grito de Viva Verdi. Um grito de glorificação do compositor, sem dúvida, mas com um sentido secreto e mais imediato que ultrapassava a admiração artística e associava o compositor à luta patriótica. Queria dizer Viva Vittorio Emanuelle Re D’Italia.

                                                          

A 9 de Janeiro de 1859, o mesmo Vittorio Emanuelle II faz uma proclamação ao Parlamento do Piemonte: respeitaremos os tratados, mas não seremos insensíveis aos gritos de dor que nos chegam de toda a península itálica.
A 26 de Abril, as tropas austríacas passam o Ticino e entram no Piemonte, preparando o assalto à capital, Turim.
E os combates rebentam. Os italianos averbam algumas vitórias sob um comando bipartido: o rei à testa dos soldados piemonteses e Garibaldi comandando os seus caçadores alpinos. Os franceses vêm a a entrar também em cena e os austríacos são repelidos para lá do rio Míncio. A 8 de Junho, Vittorio Emanuelle e Napoleão III entram em Milão e são aclamados pelo povo. O imperador francês declara-se preparado para manter a guerra até à libertação final da terra italiana, e até que a vontade de povo italiano se manifeste através do voto livremente expresso.
Verdi está em Sant’Agata. Rejubila com as notícias da guerra, mal podendo acreditar que o sonho da unificação política esteja à beira de realizar-se.
A chamada dos italianos ao combate, feita pelo rei a 29 de Abril de 1859, depois das notícias das movimentações austríacas pelo Piemonte, havia coincidido, é curioso, com a data do casamento de Verdi com Giuseppina Strepponi. E agora, no remanso da sua casa de Busseto, situação matrimonial regularizada, Verdi pouco se preocupa com a música. Quer assumir uma inequívoca posição política.  E mais do que política, moral.


                                                     

Verdi comprometera-se na militância contra o opressor, pela unificação política e administrativa de toda a Itália. E nesse compromisso usara a sua obra artística como clarificação, se se pode dizer, das suas ideias e dos seus anseios, vaticinando em música (e pelos argumentos das suas óperas) o grande evento que se aproximava. A hora era de tomar posições na trincheira moral. A música bem podia esperar. 


                                         

O nome de Verdi era bandeira para os patriotas. O nome de Verdi era um signo moral. A 17 de Fevereiro de 1859, em Roma, noite de estreia do Baile de Máscaras, na plateia  e nos camarotes do Teatro Apollo, o grito de Viva Verdi ecoara nos intervalos do espectáculo como consigna revolucionária de vitória.
E foi a partir dessa noite do Baile de Máscaras no Apollo de Roma que as palavras Viva Verdi começam a aparecer pintadas nas paredes de toda a Itália.
Entre 1859 e os primeiros anos da década seguinte, a guerra e as vicissitudes da política passam a ser, para Verdi, a grande questão de moral, o grande sentido de uma vida. Tanto assim que nas cartas do isolamento de Busseto envia ao amigo e maestro Angelo Mariani, as questões musicais são para ele de somenos importância.
Parece que em Piacenza os austríacos fizeram saltar fortalezas e se foram embora. Estão a ser vistos passar em Cremona, a caminho de Mantova. Vê se me mandas notícias sobre o andamento da guerra.
Fico feliz com os teus êxitos artísticos, mas preferia que me falasses de outras músicas, daquelas que possivelmente não interessam a vocês, músicos, dignos filhos de Apolo. Como estão as colcheias e as semi-colcheias de Garibaldi e suas tropas? Esse sim, é um verdadeiro maestro. E que óperas ele compõe! E que belíssimos finais ele arranja, feitos à força de tiros de canhão…
A intervenção política mais directa de Verdi vai começar. Promove subscrições públicas para auxílio dos feridos e das famílias dos mortos em combate, e assim cairia no ilícito penal de alta traição, caso os austríacos voltassem a ter autoridade sobre o ducado de Parma.
Não era aliás a primeira vez que Verdi desafiava o poder austríaco. Fizera-o em 1848, integrando uma delegação que solicitava ajuda político-militar à França contra a tirania opressora das regiões do Veneto e da Lombardia.


A 12 de Julho é assinado um armistício. Todas as esperanças patrióticas são adiadas. O Veneto continua na posse dos austríacos. A Lombardia passa para a jurisdição do reino do Piemonte. Parte da Saboia será cedida aos franceses. O rei é sob reserva que assina a paz e Cavour retira-se da política activa. Os povos da Emilia e da Toscânia associam-se ao rei do Piemonte e constitui-se uma liga militar pronta a repelir o regresso dos austríacos. Chega Agosto e prepara-se em toda a Itália um plebiscito. Será ou não conveniente a anexação das regiões ao reino do Piemonte, pergunta-se ao povo.
Era uma primeira etapa jurídica para a Itália unificada.


Em Busseto, a votação é feita numa igreja. O momento tocante do dia ocorre quando Verdi entra e deposita o seu voto na urna. Estrondeia uma sentidíssima ovação. Há gritos patrióticos. Há lágrimas. Viva Verdi. Até aí era crime pronunciar o nome “Itália”, assim só, único, unificado.

Na sequência da sua posição cívica, Verdi toma a decisão moral de se deixar eleger como deputado da sua região, contrariando o próprio feitío e a própria e muito pessoal vocação. Passa a ser o representante de Busseto na assembleia das províncias da região de Parma. É eleito a 4 de Setembro. A 14 desse mês, junto com uma delegação, viaja até Turim e apresenta-se ao rei. Considera honra enorme e lisonjeira a distinção de que foi alvo ao ser eleito pelos concidadãos. Era pouca a sua preparação política, mas era, por outro lado, grande o seu amor a uma pátria unificada e à ideia de uma nacionalidade italiana homogénea.
Por intermediação do embaixador britânico dá-se o encontro entre Verdi e o conde de Cavour. Era um encontro desejado por Verdi, tanta era a admiração que nutria pelo estadista. E se o músico admira o político, este não menos admira o músico. Cavour considerava Verdi um dos mais formidáveis indutores de patriotismo e de vontade italiana de unificação. Nessa conformidade, o nome do músico deveria ficar historicamente ligado ao grande momento de libertação que se  vivia. A Verdi é conferida a cidadania honorária de Turim.
Ratazzi está presidente do governo piemontês, não quer desagradar a  Napoleão III, demora em reconhecer a vontade das regiões em serem anexadas pelo reino do Piemonte, claramente expressa pelo voto. Há desordens. Multiplicavam-se os atentados contra algumas das personalidades mais chegadas à Áustria e logo em seguida vinham as represálias. Na vida de Verdi chega o momento de se exercer como traficante de armas. É o caso das 172 espingardas.


                                                                                                             
Verdi está feito um revolucionário romântico. Mariani, meu caro, trata de me encomendar aí em Génova um carregamento de 172 espingardas. A nossa causa é sagrada.
Era preciso armar as milícias populares da região de Parma. Mas faltavam os fundos. Verdi adianta a vultosa verba. Tem cartas de apresentação do embaixador inglês para um oficial das forças garibaldinas. Mas o dito oficial, inexplicavelmente, rói a corda. E Verdi não faz mais nada: volta-se para o companheiro filho de Apolo, o então famoso maestro Angelo Mariani. Um outro mais tarde famoso maestro, Franco Faccio, também está metido no esquema.
Angelo Mariani, ilustre maestro, feito intermediário no tráfico de armas, manda a Verdi as 172 espingardas – sem se esquecer das respectivas baionetas. Dessas 172, Verdi tira uma para uso próprio – às vezes, nunca se sabe…


Estamos a 21 de Janeiro de 1860. Cavour regressa à política e põe-se à testa dos negócios do Estado do Piemonte. O voto expresso pelas regiões quanto à sua anexação ao Piemonte não pode caír em saco roto – é o que Cavour diz a Napoleão III. 
A vontade politica das regiões é reconfirmada por grande maioria e as regiões são anexadas, contra a cedência aos franceses de Nice e da Saboia. Os deputados das regiões anexadas são convidados a integrar o novo parlamento piemontês.
Sublevações e insurreições são o pão-nosso-de-cada-dia. Sicília. Não sei se lembram do filme, O Leopardo. Talvez o filme mais verdiano que alguma vez foi feito…


Sicília. Calabria. Nápoles. Garibaldi actua no sul. Acumula vitórias. Chega a Palermo.
A 7 de Setembro, Garibaldi entra em Nápoles. Nápoles e a Sicília são anexadas ao reino do Piemonte.
1860 – o ano que marca o advento da unificação italiana. Só a região de Veneza e os estados pontifícios permanecem excluídos da pátria itálica.
   Os eleitores de Busseto propõem a candidatura de Verdi ao primeiro parlamento nacional italiano em vésperas de se constituír. A propositura de Verdi é para eles uma questão de moral. Verdi recusa. Mas Cavour encoraja a candidatura do compositor declarando a alta importância moral da presença de Verdi nesse primeiro parlamento nacional italiano. Cavour também pensa fazer eleger Alessandro Manzoni, o maior poeta vivo das itálias.
Sim, sim, era um tempo em que os políticos profissionais prezavam muito os contributos dos artistas e homens de letras como força moral de uma nação.
Mas Verdi sente aproximar-se o perigo de ser transformado em político a tempo inteiro. E se a sua figura serve de caução moral às novas instituições e à nova nacionalidade, o estatuto de político representa uma agressão aos severos princípios de uma moral artística e pessoal.


Enquanto uns fazem tudo para ser deputados, meu caro Mariani, eu vou a Turim para evitar sê-lo.
Verdi tem audiência  marcada com o conde de Cavour para 18 de Janeiro de 1861.
Estão 14º negativos em Turim no dia 18 de Janeiro de 1861. Verdi argumenta com Cavour. Expõe-lhe as razões pelas quais, sem falar na honraria, não deseja prestar à pátria aquele tipo de serviço político. Nem fez os necessários estudos para tanto. Não possui cultura politica que se veja. É homem de paciência escassa e avesso a discursos. O seu lugar é outro na barricada da unificação.
Cavour desmonta-lhe ponto por ponto a argumentação. Apresenta os seus contra-argumentos, e de tanto peso eles são que Verdi, evidentemente pouco calhado no trato com políticos, acaba por aceitar o encargo. Com uma condição, porém: demitir-se-á ao cabo de alguns meses de actividade parlamentar. O ministro assente. 
- Muito bem, mas quando isso acontecer, muito agradecia que mo fizesse saber com antecedência.


Há ainda formalidades políticas a cumprir. Verdi não quer apresentar-se como candidato ao colégio eleitoral da sua região. Terão de ser os amigos a propô-lo. E eles propõem-no. Segue-se que Verdi terá de travar uma batalha eleitoral com um certo Minghini-Vaini, político regional que ambiciona a cadeira parlamentar. E Verdi ganha-lhe: 288 votos contra 185. Uma maioria que não é tão absoluta que lhe permita uma eleição imediata. Organiza-se uma votação de desempate.
Verdi não quer o cargo, é verdade, mas também é verdade que não gosta de perder. Terá de fazer apelo à sua fibra de político de outras batalhas, ao seu espírito competitivo.
E volta a ganhar. Está definitivamente eleito. A sessão de abertura do primeiro parlamento nacional italiano está marcada para o dia 19 de Fevereiro.
Bem, meu caro Mariani, vou para Turim mas tenho que descansar um pouco e equilibrar a minha bílis antes de pôr uma gravata branca. Quem haveria de dizer, ahn? Mas é assim. Não há nada a fazer.
Mas qual terá sido, se foi, se houve, a razão de fundo para tanto apoquentar Verdi  quando na iminência da eleição? Se calhar foram várias as razões. Se calhar, a maior de todas essas razões foi a encomenda que entretanto lhe chegou logo em Janeiro desse ano de 1861: uma nova ópera para o Teatro Imperial de S. Petersburgo. Ópera essa que após diversas hesitações quanto ao libreto, viria a ser a Força do Destino.
Numa primeira fase, Verdi passa quatro meses na capital piemontesa com assídua assistência às sessões da câmara e muito atento ao andamento dos trabalhos.
Mas não é de crer que a actuação parlamentar de Verdi se tenha pautado pelo brilhantismo, nem que alguma intervenção sua tenha ficado para a História.
A disposição e a disponibilidade de tempo podiam não ser as melhores para Verdi se lançar à composição da nova ópera. A Strepponi cuidava dos confortos que pudessem adoçar a próxima estadia na Rússia: tagliatelle, fettucini, macheroni, prosciuti, queijos, salames, Bordeaux, champanhes. 
Passado o mês de Julho, Verdi começa a compor a música.
Maldito contrato este que me obriga a trabalhar e a suar no verão para vir depois a refrescar-me em demasia no inverno.


A Força do Destino, ópera tão cheia de acção, de situações guerreiras e morais, de imprecações, de desespêros e de maldições, de luz e de trevas, uma figuração, digamos, da experiência patriótica e revolucionária do seu autor no  marcante momento histórico da nova pátria italiana, estreia com êxito em S. Petersburgo a 10 de Novembro de 1862.
Como disse atrás, não é de crer que a performance  parlamentar de Verdi tivesse andado por grandes vôos de oratória. A presença dele na câmara dos deputados era sobretudo uma questão de moral. Segundo ele próprio, o seu voto foi sempre um voto seguidista, apoiante das posições do grande ministro Cavour. Pelo menos, assim, tenho a certeza de não errar - confessou.
Mas não se pode dizer que não tenha travado interessantes relações pessoais naquele mundo perigoso e fascinante, e tão diverso do seu. Teve ensejo de conversar longamente sobre arte com o próprio conde de Cavour, numa época, note-se, em que os ministros de Estado eram homens de cultura. Teve ensejo também de inspirar o político nas melhores intenções de contribuir para o desenvolvimento da cultura italiana – coisa que, na boca de um político, já se sabe, vale o que vale. Mas isso é outra conversa, outra moral.
Verdi expõe a Cavour um projecto de reordenamento dos teatros líricos e dos conservatórios: três teatros principais nas três principais cidades, Roma, Milão e Nápoles; teatros sustentados pelo governo, e, em cada uma destas cidades, instituição de conservatórios de ensino gratuito, aptos a fornecer os respectivos teatros da mão-de-obra musical requerida, entre instrumentistas, coros e solistas. Mas recusará a nomeação pelo governo  como presidente de uma comissão de reforma orgânica do Conservatório de Milão.



O reino de Itália foi efectivamente declarado como constituído na sessão parlamentar realizada no Palazzo Carignano em 15 de Março de 1861. Vittorio Emanuelle II é proclamado rei dos italianos. E Verdi sente chegada a hora do seu adeus aos negócios políticos. Fala com Cavour.
Cavour pede-lhe paciência. Que espere até que Roma seja também parte do reino de Itália. Si, ma quando? , pergunta Verdi. O conde, claro, como político de primeira água, evita a resposta frontal, ah, quando, quando… beh, intanto me ne vado in campagna, allora andate, state bene, addio
(A conversa de Verdi com Cavour, traduzida, foi: 
- Mas então diga-me, conde, quando é que Roma fará parte do reino de Itália? 
- Oh meu caro Verdi, quando, quando, sabe-se lá… 
- Bem, conde, então, enquanto o reino de Itália chega e não chega a Roma, eu vou andando para o campo… 
Ao que Cavour, decerto já sem paciência para aturar as esquisitices de Verdi replicou: 
- Olhe, Verdi, então vá, adeus e passe muito bem.)
E foi a última vez que os dois homens se falaram.
Se quisesse fazer a minha biografia como deputado escreveria no centro de uma bela folha de papel que os 450 membros da câmara foram efectivamente 449, pois que Verdi, como deputado, nunca existiu.
E sim, Verdi vai à sua vida, segue o seu destino. Há a “força” desse mesmo destino. Há o Hino das Nações. Há viagens artísticas, S. Petersburgo, Londres, Paris, Madrid.


Cavour morre. Verdi inicia a revisão de Macbeth.
1865 assinala o fim da legislatura e a dissolução desse primeiro parlamento nacional, e o fim do mandato de Verdi como deputado. Dos quatro anos da investidura, em dois deles primou pela ausência. Lá terá pensado que a maior parte da sua missão moral fora cumprida com a proclamação da unidade italiana.


Ainda se pôs a hipótese de uma recandidatura, mas a opinião de Verdi sobre a política e os políticos não mudara muito entretanto. Perdera demasiado tempo numa actividade onde, segundo ele, se fala muito, de mais, se polemiza de mais. E recusou, evidentemente, uma recandidatura.
Mas Verdi não se vai da política sem indicar o perfil daquele que gostaria de ver sentado na sua cadeira parlamentar, alguém que desse provas de franqueza e rectidão de carácter.
Fazem-se maravilhosos discursos, dizem-se coisas belíssimas, sem dúvida alguma. Mas é tudo uma perda de tempo – eis a caracterização de Verdi da actividade política e parlamentar.
À hora do fim do seu mandato já Verdi congemina o D. Carlos, uma das mais geniais das suas obras, e curiosamente, aquela cujo libreto era da maior (e mais pessimista) consistência política.
   





sexta-feira, 28 de junho de 2013

                     VOCAÇÃO E PROFISSÃO

         Filho meu não, nunca o poria a estudar música. É do mais perigoso que se pode arranjar com respeito a futuro.
         Ainda se tivesse a certeza de ele aprendia uns rudimentos, chegava a ajeitar-se a tocar um instrumento (de preferência piano para impressionar umas miúdas) e depois seguisse a sua vida, uma qualquer vida, bom, era como o outro.
         Mas quem me garantia que ele não se apaixonava mesmo pela matéria, tivesse algum jeitinho sem ser um génio evidente e quisesse fazer vida daquilo em Portugal?
         Não, não estaria a prestar um bom serviço a filho meu se o encorajasse na música sem ele ser um génio - mas ainda assim um génio daqueles que se apercebem à légua. Estaria a fabricar mais um frustrado para acrescentar à longa lista deles com que tropeçamos a cada momento.
         Não, ele que fosse para economista. Podia ser na mesma um falhado (se é que os há; ou se o são todos, depois de sabermos o que sabemos sobre previsões macro-económicas), mas nota-se menos, ainda que falhado, e nunca se chega a ser um desconsiderado, menosprezado, Zé Ninguém meio maluco com a mania da música. Sempre se é um senhor doutor, que é o que nestes analfabetos reinos dá verdadeiramente estatuto. 

                      

Por falar nisto… certo dia, numa famosa escola de música de Nova York, o célebre maestro Karl Böhm ouviu por acaso, vindo de uma sala de aula, um som de violino a ensaiar o concerto de Max Bruch. Pareceu-lhe nem menos que o som de Heifetz – quiçá o maior violinista de todos os tempos. Quem é e quem não é. O director da escola informa Böhm de que não é realmente o já falecido Heifetz quem toca. É uma petiza de dez anos. Böhm, incrédulo, espreita para dentro da sala e confirma.
         Tempos depois, Karl Böhm, em conversa com um amigo que dera aulas naquela famosa escola (Julliard School, talvez), pergunta-lhe se sabe o que foi feito daquela menina de dez anos que tocava violino com um som de Heifetz. Pois a pobre menina tinha-se suicidado. Numa crise desespêro infantil. Atirara-se de uma janela. Mas porquê? Tanto quanto se podia saber, a mãe, dando-se conta do talento da filha, obrigara-a a um tal programa de estudos musicais que não deixava tempo à criança para fazer a simples coisa de que ela tanto gostava: brincar.
           Por acaso, na mesma famosa escola, havia um jovem estudante de piano e violino, dotado de extraordinária memória musical, e, além disso, com o armamento vocacional que o indicava como futuro bom chefe de orquestra. Quando tudo se conjugava para o aluno seguir brilhantemente o seu caminho como director de orquestra, ele pede uma audiência ao director da escola e declara:
         - Vou deixar os meus estudos de música. Ofereceram-me um emprego na indústria do vestuário que me dará muito mais dinheiro a ganhar do que a música.


         O director deita as mãos à cabeça e quer demovê-lo, suplica-lhe pela rica saúde que não deixe a música; com as qualidades inatas dele não tem que ter medo, a carreira musical dele ia ser de grande sucesso. De certezinha.
         - Poderá ser. Mas, senhor director, eu prefiro a segurança. 
         E pelo que conta Karl Böhm, desde então esse jovem nunca mais na vida pôs os pés numa sala de concertos. Era a sua maneira de se proteger da música.


         (Sim, há coisas maravilhosas de que precisamos nos proteger.)
         É preciso dizer – porque muita gente não sabe e tudo lhe parece fácil – que seja qual for a especialidade, o instrumento, ou o grau de excelência de um músico, o ofício da música é um dos mais duros e ingratos que se possa conceber desde que uma vocação musical se revela até que se transforme numa actividade profissional.


         Valerá mesmo a pena, do ponto de vista material, o sacrifício de dar ouvidos à doce voz ideal da vocação para a música quando, mais tarde ou mais cedo, a pureza apolínea dessa vocação vier entrar em conflito sério com a assustadora realidade de uma profissão?

                                
         
        Já lá vão uns anos, uns bons anos, na viragem do milénio, em Paris (que não é propriamente uma cidade do Terceiro Mundo), mil músicos das orquestras francesas permanentes realizaram um concerto-manifestação a defender a existência de um serviço público de música. Ou seja, os músicos profissionais procuravam consagrar para a música o reconhecimento de uma necessidade social; e por consequência, o reconhecimento e o prestígio social da sua profissão num mundo cada vez mais material e cada vez menos, muito menos, musical.
         Não sei no que deu o concerto-manifestação. Não deve ter dado grande coisa nesta era de considerandos económicos-financeiros extremados que então se inaugurava.
      Já então, na realidade musical francesa, se criavam menos escolas de música e as que já existiam começavam a não ter vida fácil em tempos de restrições financeiras continuadas.
        Não tenho em mão números nem elementos concretos, mas quero crer que o panorama do ensino e da prática musicais vivem dias ainda mais entroviscados e que a angústia se tem instalado na consciência dos jovens, mesmo os mais dotados e que legitimamente possam sonhar com o desenvolvimento de uma feliz carreira na música.
         Mas também tem que ver com o instrumento que se cultiva.

              

      Claro que neste âmbito de profissões musicais a oferta de emprego é  sempre, e consideravelmente, inferior à procura. As orquestras precisam de menos instrumentistas do que aqueles os conservatórios fornecem. Por exemplo: para 14 flautistas, 10 clarinetistas e 9 oboístas saídos com boa nota de um - bom – conservatório, o conjunto das orquestras estáveis (quatro ou cinco, francesas, para manter o nível com exemplo de um país onde a música é levada a sério) oferecia dois postos de trabalho por cada um um destes três instrumentos. Foi há uns anos, está bem, mas não sei se a realidade melhorou até hoje. O mais certo é ter piorado.

                           

Quem não consegue garantir o seu ganha-pão como instrumentista de orquestra é certo e sabido que se volta para o ensino, desviando de si, e logo nos começos, o sentido de uma possivelmente poderosa vocação de executante musical. Poderosa e frustrada, como digo, logo desde os primeiros embates com a realidade profissional.
O talento musical frustrado sofre em silêncio, resigna-se, e volta-se para o ensino, muito bem. Mas vai ensinar o quê, a quem? Obviamente: vai formar futuras vocações frustradas e futuros resignados e desenganados professores. Professores estes, também, de quê e de quem? Daqueles outros que profissionalmente também não vêem alternativa senão dar aulas a alunos que (na esmagadora maioria) não terão onde exercer a vocação por não terem onde exercer a profissão, futuros professores de outros que também não terão para onde se voltar senão para o ensino.
As estruturas da organização e do ensino musical podem atingir o ridículo estádio evolutivo de formar profissionais de uma profissão que vai deixando de existir, ainda que as vocações continuem a despontar com grande força?
                                                             
Sim, claro, no meio disto tudo há os que apanham um tempo histórico favorável, conseguem lugar numa orquestra e se governam muito bem (ou até como free-lancers). E nem é preciso falar dos casos de génio, do grande concertista de piano ou violino, do grande cantor, do grande chefe de orquestra, precisamente os que fazem parte da mini-mini-minoria dos escolhidos de uma vocação que chama muitos e escolhe poucos.
No que respeita, por exemplo, à questão do piano, instrumento que não tem lugar numa orquestra sinfónica, as coisas podem ser, são com certeza, mais complicadas e menos felizes. Nem todos as anualmente laureadas vocações que saem dos conservatórios podem aspirar a uma gloriosa carreira de concertista. E então… serão obscuros professores de piano; governarão a sua vida como obscuros pianistas acompanhadores em teatros de ópera (se os houver em bom número no país), ou em aulas de canto; tocarão musiquinhas da moda ao fim das tardes em salões de hotéis de luxo. E já não fazem tanta falta nas aulas de ballet como fizeram noutro tempo, e isso em razão do recurso cada vez maior  à música gravada para o acompanhamento das aulas.
Por outro lado, o elevado número de alunos que procuram a disciplina de piano nas escolas de música leva a concluir que a formação pianística faz falta ao ensino e é uma via de escoamento profissional de vocações inequívocas.
Mas lá fora queixam-se os directores dos teatros de ópera quanto à escassez de bons pianistas acompanhadores, porque uma coisa é arranjar no mercado cinco, dez, quinze ou vinte jovens pianistas acabadinhos de sair do conservatório e ainda cheios de ilusões de carreira, e outra, abissalmente diferente, é encontrar um acompanhador com experiência e métier há muito desenganado pela vida quanto a uma vocação concertística irreprimível.
E chegará o tempo – já deve ter chegado – em que o número dos laureados de vocação, qualidade e talento será de longe superior à quantidade de postos de trabalho disponíveis, tanto para tocar nas orquestras quanto para ensinar nas escolas de música.
Vocação, talento, ou mesmo génio, e patenteado desde a mais tenra idade e de forma tão absoluta, não o há noutra actividade mais evidente do que na música – pode ser que na pintura. E todavia uma vocação que tão grandes contratempos  sofre na idade madura, depois de lançada nas realidades profissionais.
O free lancer, ou o trabalho a “gancho”, o biscate. É uma saída profissional também para um músico preparado, e em muitíssimos casos uma saída bem lucrativa, pesando embora a incógnita de alguns fins de mês e a falta de vínculos estáveis. Por outro lado, é bem certo que proporciona a sensação de liberdade que faz falta como pão para a boca à vocação artística, sem dúvida. E os lucros são rápidos e substanciais, embora incertos, irregulares.
O instrumentista free lancer foi um recurso caído do céu quando começaram a aparecer os conjuntos especializados na música barroca, Arts Florisants, Musiciens du Louvre, Chapelle Royale, etc., propiciando interessantes saídas profissionais de grande elasticidade contratual e flexibilidade artística. (Continuo a falar de um país musicalmente civilizado, a França.) A circulação de pessoal artístico bem preparado e potencialmente contratável é muita, agrada a maestros e empresários. Mas já se sabe que no caso de uma zanga ou de uma incompatibilidade com maestro ou empresa, a porta será para esse prontamente aberta, porque há outros, há muitos outros por esse mundo em ambulatório vocacional, de instrumento às costas à espera de vaga, a oferecer aqui e ali os seus serviços, a sua maravilhosa vocação.
A vida material de um músico pode muito bem ser uma magnífica apoteose do provisório, volátil e perecível como o som que ele produz.
Claro que como tudo nesta vida grande parte dos sucessos se devem ao factor sorte (já nem falo da cunha), ou à sorte que cada momento ou época da vida do indivíduo pode ou não pode oferecer. Os free lancers são muitas vezes contratados a termo como reforços para esta ou aquela peça mais exigente em quantidade de som. E são bem pagos. E tal pode dar numa perversão: as instituições musicais programam a sua vida orçamental, os seus concertos, em função da realidade da oferta e da procura e da facilidade de achar reforços de bom nível no mercado vocacional flutuante. E, naturalmente, como medida de boa gestão, evitam o mais que podem alargar o número de vagas nos quadros estáveis.  
A condição de free lancer pode ser aliciante para um músico. Muitos embarcaram na miragem de uma vida sem compromissos e sem obediências demasiadas, o que deu na inflacção do mercado free lancer. E o que acabou por facilitar a vida aos patrões da música, dificultando em contrapartida a dos músicos.
Mas também os músicos efectivos das mais importantes orquestras atravancaram o mercado dos free lancers acorrendo nas suas horas vagas aos ganchos musicais que iam aparecendo fazendo reforços noutras orquestras.


Daqui se percebe o risco contido na profissão de luxo que é a de músico: desenvolver uma vocação nos encantadores paludes profissionais do desemprego, da precarização dos vínculos laborais. O que deu desde sempre na respeitável instituição da diversidade ocupacional: ser músico executante e acumular com o professorado. E ser professor de um instrumento não como corolário de uma capacidade musical extraordinária, ou de uma forte disposição pedagógica, mas, mais rasteiramente, como adjutório aos encargos de cada fim de mês.
A encruzilhada moral é esta: um conservatório de Estado produz profissionais altamente qualificados, mas sem que o mesmo Estado lhes acene com uma perspectiva profissional mínima, fazendo-os correr o risco da pobreza, da inutilidade, desbaratando por conseguinte o investimento neles feito enquanto alunos cheios de vocação.
(Pode acontecer com as faculdades de Direito, Letras, quem sabe se de Medicina. Pode? Não sei.)
A realidade será sempre um factor autónomo à capacidade de sonho para as vocações musicais. E essa realidade é a imoral realidade das verbas que sempre escasseiam para a Cultura. E quando se fala de racionalização, seja em que actividade for, já se sabe que se fala de desinvestimento, de penúria e de incultura.


Os conservatórios (pelo menos os franceses, e já de há tempos), sendo o mercado e as encruzilhadas profissionais aquelas que são, deram em preparar os seus instruendos para competir no mercado da música antiga (quando ela começou a tornar-se popular, leia-se lucrativa), no mercado do jazz, no mercado do rock, no mercado das indústrias do som – ou, ainda mais catita, no mercado da musicologia. E no mercado mesmo do ensino. Preparava-os para uma contingência profissional e já não tanto para uma vocacional paixão; adestrava-os como técnicos de música (ou fosse do que fosse relacionado com a música, cientistas!) e não tanto como os artistas românticos que a maioria queria ser ao decidir-se em tenra idade pela música, quer dizer, pela vocação avassaladora.
Enfim, e evitando outros temas sempre imponderáveis e difíceis de quantificar, tais como quanto pode ganhar um instrumentista estável de orquestra, de que orquestra, de que país; ou quanto pode ganhar um free lancer, um pianista acompanhador, um pianista de jazz, digamos que é o mercado, essa entidade mítica, apavorante e bonacheirona a um tempo, que em menos de um fósforo realiza automática e espontaneamente a selecção natural, consagrando ou destruindo vocações musicais da infância.
Os bons nunca terão demasiadas dificuldades em ganhar menos mal a sua vida – bem como os que não sendo tão bons assim são de boas famílias e/ou têm boas cunhas; os muito assim-assim e os desajeitados de todo (apesar das cunhas) serão impiedosamente sacrificados à regra do jogo, e eliminados. E a regra do jogo é a regra do mercado.
É o que eu digo: não aconselharia a ninguém mandar de ânimo leve um filho estudar música. É melhor certificar-se previamente de que é pai ou mãe de um talento fora de série – para a música, e paralelamente para as relações públicas e para a gestão da sua vidinha. Se assim não for, pode estar a alimentar no seu descendente uma indigesta paixão e a contribuir para acrescentar a este mundo cheio deles mais um depressivo inadaptado. Não será bom para ele nem bom para o público. Nem bom para o Estado, que mantém (vai mantendo) em funcionamento os conservatórios, os teatros. De qualquer das formas, será o mercado a dar a esse jovem potencialmente genial a ensinadela que ele e os pais merecem.
Lá porque o meu pequenito entoa com facilidade as melodias que ouve, vou pôr-me com ideias, a pensar que ele é um novo Mozart, o sobredotado que irá lançar para as alturas da Arte uma família que regularmente só produziu honrados contabilistas?
        Será melhor pensar para ele outra profissão. Outra moral, queria eu dizer. Uma moral mais acessível. 



                                                             
                                                         

         Pondo os olhos no pobre do Mozart aprendemos que, produzindo ele o que produziu, nunca na vida lhe deram um prémio de produtividade; nunca na vida lhe pagaram ajudas de custo; nunca na vida viu senhas de gasolina, nem senhas de presença fosse onde fosse, nem telemóvel, nem tão pouco alguma vez se gozou de um BMW da empresa. E, inconcebível, nem nunca passou férias no Brasil!

Pois não. Só teve uma vocação louca, maior do que ele. Maior até do que o mercado. Maior do que o mundo. E escolheu – ou escolheram - para ele uma vida e uma profissão que de tão moral que é chega por por vezes a não ter moral nenhuma.