terça-feira, 24 de dezembro de 2013

E AQUELE DIA DOS LOUCOS ANOS 20,                                    EM PARIS, 
QUANDO RUBINSTEIN LEVOU STRAVINSKI              A UMA CASA DE MENINAS?



Arthur Rubinstein, o grande pianista (quem leu um dos posts anteriores já o sabe), era amante da famosíssima e explosiva contralto italiana, uma das grandes carmens do tempo, Gabriella Besanzoni. Mas nesta história (aliás real) entram mais duas artísticas personagens. E essas duas personagens são Igor Stravinski e Karol Szymanovski.
Stravinski é Stravinski. Não é preciso pôr mais na carta. E Szymanovski é um compositor polaco amigo (e compatriota, claro) de Rubinstein.

                 
  
Conta Rubinstein que um dia, em Taormina, na Sicília, Szymanovski viu um grupo de jovens sicilianos a tomar banho, e de tal maneira belos que poderia pensar-se neles como modelos de um escultor grego, Antínoo, por exemplo. “De tal maneira belos, Arthur, que eu não conseguia tirar os olhos de cima deles!” Isto foi só para introduzir a personagem e o respectivo calibre em certas matérias. Claro. Está-se mesmo a ver. Mas há mais, já agora…
Mas deixem—me alargar-me só um pouco mais sobre as particularidades sexuais do compositor polaco em plenos e loucos anos 20, uma época em que, para os lados lá mais da Europa oriental, na plena barafunda revolucionária, os camponeses esfomeados, enfurecidos e iletrados  se podiam dar  ao horrível acto de mutilar os homossexuais - houve um príncipe polaco a quem isso aconteceu. Pois Szymanovski desfalecia de terror só de pensar nisso.
Agora está ele a falar com Rubinstein…
- Acreditas, Arthur, que em Kiev vivi os dias da minha maior felicidade? Um rapaz de deslumbrante beleza. Um poeta, cuja voz era música pura, Arthur. E que me amava, Arthur. E que me amava! E foi só por esse nosso amor que eu consegui escrever a música que escrevi até hoje. Nunca mais soube nada dele.


Mas enfim. Guerra acabada. Anos 20. Paris. Gerações perdidas. Gerações achadas. Loucura. Gosto destemperado de viver. 
Ah… mas também, já agora… já agora, deixem-me que lhes conte mais um pouco desta outra história que mete Szymanovski…


Em poucas palavras… Rubinstein metera em cabeça interessar Diaghilev – o célebre empresário dos Ballets Russes e de Nijinski, como é sabido – pela música do seu compatriota e amigo Szymanovski. 


Pois bem. Um jantar. Diaghilev convida Rubinstein e Szymanovski para irem jantar com ele ao Continental. Rubinstein e Szymanovski chegam e esperam pelo importante Diaghilev. Diaghilev aparece daí a pouco. Vem acompanhado de um jovem. Szymanovski, que até aí tinha estado um tanto apático à espera do grande homem, fica subitamente petrificado, à beira de um fanico. Mas recompõe-se depressa. Apresentações. Diaghilev apresenta aos outros dois o jovem assombrosamente belo, um seu novo colaborador.


Sentam-se para jantar.
Num repente, Rubinstein realiza o sentido da situação, apercebe-se do que está a acontecer. Já adivinhou quem é aquele belíssimo jovem que acompanha Diaghilev na qualidade de colaborador. Diaghilev parece aperceber-se de que alguma coisa anda no ar. O tal jovem lindo faz trinta por uma linha para dar a entender que nada sabe de Szymanovski, que nunca o viu em dias de vida. Szymanovski vivia aquela hora numa tortura inaudita, temeroso de, de alguma maneira, trair o seu segredo. Aquele era a beleza de rapaz de Kiev por quem se apaixonara, por quem fora capaz de compor e de quem perdera o rasto. Estava com medo de se traír, de irritar Diaghilev, e de arranjar um trinta e um que fizesse o moço perder o emprego.
A conversa flui. Chega Stravinski. O mal estar dissipa-se um pouco. Stravinski arrasta Diaghilev para os seus assuntos pessoais, para os negócios que ambos têm entre mãos, e Szymanovski e o rapaz podem trocar alguns olhares de entendimento. Mas moita carrasco. Segredo absoluto. Tudo fica por aí.
Mas o principal da minha história de hoje tem não Szymanovski mas Stravinski como figura central, como motor da acção, digamos assim.
É preciso dizer que, estando Rubinstein em Paris, a sua amante dessa época, a já conhecida Gabriella Besanzoni, estava em Roma, a cumprir contrato. E estando Rubinstein em Paris, palavras não eram ditas quando ele recebe uma carta de Gabriella. Daí a três dias, Gabriella chegaria a Paris acompanhada da irmã. Umas curtas férias para te ver, meu amor, depois de uma tão longa separação.
Surpresa muito agradável para Arthur.
Arthur estava evidentemente na gostosa disposição de servir de guia às irmãs Besanzoni e desvendar-lhes os encantos da cidade-luz. Mas, bem vistas as coisas, talvez elas não tivessem grandes interesses intelectuais e não lhes apetecesse assim muito ir passar um bocado da tarde no estúdio do amigo Picasso, ou encontrar Cocteau num bistrot de Montmartre, ou ouvir o Grupo dos Seis discorrer interminavelmente sobre as composições de cada um deles – eram logo seis, digo eu, se um só, já de si, sabe Deus… agora seis… que rica seca…


                                                                             

Depois de ter chegado a estas conclusões, Arthur acha que, na verdade, nada de melhor para atraír as irmãs italianas na capital do mundo do que uma jantarada no Maxim’s e a seguir uma saltada às variedades das Folies Bergères.


                                                                

Pronto. Rubinstein está de banho tomado, aperaltado, perfumado, para ir à Gare de Lyon buscar as manas e irem cumprir o programa. Nisto, toca o telefone. Quem é que me vem chatear a molécula logo numa altura destas?
Era Stravinski.

- Arthur, preciso urgentemente de ti. Vem aqui ao  meu hotel tão depressa quanto puderes. Urgente. É muito urgente!
- Igor, meu velho, tem lá santa paciência, mas esta noite não tens sorte nenhuma. Esta noite é impossível…
         - Ouve, Arthur…
- Completamente impossível
E Rubinstein conta rapidamente a Stravinski a situação, o seu caso com a Besanzoni, etc. E Stravinski está-se nas tintas para a história. Tem que ver Rubinstein nessa noite dê lá por onde der.     
- Arre que é chato! Ó homem, ó Igor, eu já te disse o que tinha a dizer, gaita!
- Arthur! É um caso de vida ou de morte. Estás a ouvir? De vida ou de morte. A vida ou a morte de um amigo teu, an?
Um caso de vida ou de morte? Mas que diabo de coisa poderia ser? A brincar a brincar, Rubinstein fica alarmado. Será que Stravinski está ameaçado de grave perigo e conta com ele para o salvar?
Rubinstein tira-se das suas tamanquinhas e vai ter com Szymanovski.
Na opinião muito refinada de Szymanovski, Stravinski era um casca-grossa insuportável.
- Olha, sabes que mais, Arthur, esse Stravinski não passa de um mal criado e de um indiscreto de alto lá com o charuto para exigir isso de ti…
Rubinstein implora a Szymanovski:
- Karol, Karolinhos da minha alma, eu peço-te, eu imploro-te, faz alguma coisa hoje, tu, por mim, desengoma-te, filho, faz uma coisa que eu sei muito bem que tu odeias fazer entre todas as coisas, mas que eu te peço que faças esta noite, em honra da nossa amizade. És tu a única pessoa que conheço que me pode salvar a face perante Madame Besanzoni e a irmã. De contrário, estou feito ao bife. Elas nunca me perdoarão.
Rubinstein já tinha reservado mesa no Maxim’s para jantar com as Besanzonis antes de as levar ás variedades. E vai disto, puxa de uma carteira recheada de notas e passa-a para a mão do pobre Szymanovski que, evidentemente, o que mais odiava fazer na vida era passar noites com mulheres - mesmo que fosse só nas variedades.
Szymanovski fica parvo com a carteira na mão, a olhar para Rubinstein.
- Mas olha a minha vida, an? Que mal fiz eu a Deus para me sair este na rifa. E logo hoje? E logo com gajas!
Rubinstein recomenda-lhe:
- Dás-lhes a melhor comida que lá houver no Maxim’s… nada de carapaus, nem de escabeches, nem de orelha de porco, nem pataniscas, nem chicharro frito, nem cá bacalhaus à Narcisa, nem nada disso. Tudo o que houver de mais fino. Dá-lhes o melhor champanhe que eles tiverem. Quero tudo do bom e do melhor, an? Tudo. E todo o champanhe que elas quiserem enxugar. Depois, acompanhas as senhoras ao respectivo camarote nas Folies… já mandei reservar… pega lá os bilhetes… não os percas, ouviste? Deixa que se sentem na frente, encostadas ao parapeito e tu sentas-te atrás… assim podes dormir mais à vontade. Karol amigo, vou fazer os possíveis e impossíveis para ir lá ter com as irmãs um pouco mais tarde. Faz isso por mim, Karol, não estejas com essa cara, juro-te que nunca esquecerei o que fizeste por mim esta noite. Ah… e conta-lhes! Ouviste? Conta-lhes a verdade, an? Diz-lhes… diz à Madame Besanzoni o quão infeliz eu fiquei… an?… por não poder ir buscá-las à estação e ir levá-las a jantar e às Follies. Conta-lhes. Não te esqueças.


Rubinstein sabia que mais alegremente Szymanovski se deixaria levar para a prisão do que passar uma noite ao pé de mulheres. E logo duas. E logo italianas. E logo uma delas uma fatal cantora lírica, e daquelas de voz grossa, contralto, com toda a certeza uma devoradora de homens.


E Rubinstein põe-se a caminho até ao hotel de Stravinski – na volta não era hotal era pensão, se calhar uma espécie da A Tabuense da Rive Gauche… não sei…
Quando chegou, Stravinski nem bom dia nem boa tarde e entrou logo no que lhe interessava, o caso de vida ou de morte que o consumia.
- Vamos mas é a um lado qualquer onde possamos estar sossegados e conversar à nossa vontade – disse ele.
Foram para um restaurante nas docas do Sena chamado Laperouse. Era onde Rubinstein de vez em quando levava a jantar uma ou outra galdéria. Um restaurante daqueles que havia então, com compartimentos fechados.
Apareceu o chefe de mesa. Stravinski estava sem pachorra, vira-se para o homem e diz-lhe:
- Você só aparece aqui quando a gente tocar a campainha a chamá-lo, ouviu?


Mas então o que é que se passava?
Fala Stravinski:
- Sabes lá da minha vida. Se soubesses da minha vida ias roubar para me dar. Desde o princípio da guerra que eu vivo num medo constante de não ganhar dinheiro para sustentar a minha família. As nossas propriedades na Rússia, adeus ó vindima, foi tudo confiscado. E nós vivíamos do dinheiro que vinha de lá. Esse sacola desse Diaghilev… com respeito a pagar-me… está quieto ó mau. Não paga o que deve. Ainda me deve uma quantidade de coisas que compus para ele. Esse também está praticamente falido. O auxílio que tu me mandaste da América tão generosamente, já se foi à viola. Neste momento, meu caro Arthur, sabes de que é que vive este teu amigo? Não sabes. Vive de promessas. Promessas para o futuro. Graças a Monsieur Lyon da Casa Pleyel, ainda tenho um sítio onde trabalhar. E trabalho sim, trabalho numa encomenda do Diaghilev. Uma ópera-ballet. Devo acabá-la no verão. Já viste a minha situação, rapaz. Tesinho que nem um carapau.
- Estou a ver estou. Ó homem, tu...
- Mas ouve lá, julgas que isto me tira a coragem? Não. Não me tira esta força de carácter que sempre tive. E que sempre terei. O meu maior pavor, o que me deixa fora de mim e me faz saltar a tampinha ainda é outra coisa… pois é… é ter contraído uma doença incurável. Nem tu sabes…
- Ó homem, uma doença incurável? Mas que raio de doença incurável é que tu apanhaste?


Stravinski baixa a voz e murmura:
- Apaixonei-me recentemente por uma mulher e descobri, para maior desespero de vida, que estou completamente impotente.
Rubinstein desata a rir às gargalhadas.
- Tu estás é gaseado, filho. Isso de que tu falas já me aconteceu uma quantidade de vezes. Sabes lá. Parece que não estás habituado a essas coisas, aos nervos que a gente apanha quando é das primeiras vezes, com uma nova pessoa. Tu não percebes é nada do funcionamento desta gigajoga que a gente aqui tem, pois não?
- Ouve, Arthur, não sejas parvo, esta manhã eu tinha chegado a um ponto em que pensei que o melhor, enfim, o que o bom senso me aconselhava, era que pusesse um fim à minha vida.
- Cala-te com isso, Igor, tu é que pareces parvo!
- Não sou nada parvo. Foi o instinto que me disse que só a tua presença amiga me podia impedir de perder a cabeça e fazer um disparate. E só o contar-te estas desgraças já me fez sentir melhor.

                            

Rubinstein, todo sorrisos, fez soar a campainha e o chefe de mesa apresentou-se.
Um jantar para dois com o que de melhor houvesse na casa. E uma garrafa de vodka, se faz favor.
- Vamos lá a ver, Igor, a dama Misia Sert é uma mulher de recursos, estou-te eu a dizer. E não me resta a mais pequena dúvida de que quando eu falar com ela ela vai-te desenrascar. Vai-te arranjar um subsídio, uma subvenção, umas coroas, uma coisa que se veja. Basta dizer que o Diaghilev e a companhia dele nunca poderiam ter sobrevivido à guerra se não fosse a dama Misia Sert ajudá-los. Bom, e quanto à tua saúde… olha, não terias a mínima vontade de trabalhar, nem esse apetite que eu estou a ver daqui, nem a tua proverbial vitalidade… nada disso… se houvesse alguma coisa com a tua saúde. Vai por mim. Vai por mim, Igor, vai por mim!
A garrafa de vodka marchou quase toda.
Depois vieram duas grandes malgas de café.
Por fim, pediram a conta e pagaram – Rubinstein pagou, foi o mais certo.
- E  agora, a seguir, Igorzinho da minha alma, ainda vais tu fazer alguma coisa por mim.


Igor Stravinski e Arthur Rubinstein entram a correr nas Follies Bergères e voam até ao camarote onde era suposto estarem as manas Besanzoni e o pobre Karol Szymanovski morto de tédio com as variedades e de desconsolo com as companhias. O show estava quase a acabar.
As manas Besanzoni, quando eles entraram muito festivos no camarote, nem para eles olharam. Szymanovski parecia um aluno de escola primária que o mestre tivesse posto de castigo.        
    

Gabriella Besanzoni só disse com uma voz de gelo:
- É o sr. Szymanovski que nos vai acompanhar ao hotel. Mais ninguém.
O show terminava. As manas italianas saíam do camarote em passo imperial. Rubinstein e Stravinski estavam feitos parvos encostados à parede. Szymanovski olhou-os como quem pede socorro e seguiu com as damas e saíu com elas do teatro.
- E para onde é que nós vamos agora, não me dizes? -  pergunta Rubinstein.
Rubinstein e Stravinski chegam ao número 12 da Rue Chabanais. Entram o portal. Sobem dois lanços de escada.


É a sub-madame que os atende. Conhecia de gingeira aquele pianista polaco que alegrava os salões das melhores famílias ao tocar umas espanholadas, uns tangos, e até umas coisas estranhas chamadas sambas que aprendera nas suas viagens pelas sete partidas do mundo. Não conhecia era o outro.
- Como está, minha senhora, está bem? Todos os seus, bem? - antigamente era assim. – E agora, Madame, faça-me a fineza de chamar a menina Madeleine.
A bela Madeleine aparece. Rubinstein, sempre muito mesureiro, cumprimenta-a e diz:
- Madeleine, mon ange, fazes-me o favor de tomar conta deste cavalheiro?
E Stravinski, interdito, deixa-se levar pela bela Madeleine. Rubinstein acena-lhes com dois dedos e senta-se na sala.


Pega num jornal.
O tempo passa, passa.
Estava demorado. Ainda bem. Rubinstein podia pensar na sua música.
Caramba, nunca mais!
Além da música, Rubinstein começa a pensar na vida, no ressentimento de Gabriella. Mas quer afastar de si os maus pensamentos. Com o tempo, as coisas iriam ao seu lugar.


E nunca mais. E nunca mais era sábado.
Dois jornais lidos de ponta a ponta.
Entram e saem meninas acompanhadas de clientes.


Rubinstein, esquadrinhando o salão à procura de outras leituras. Clientes a ir e vir. As meninas a chilrear pelo salão.

                               

Era a primeira vez que se achava num lugar daqueles sem participar activamente nos trabalhos. Como são as coisas. Como é a vida. Pela primeira vez a sua missão num lugar daqueles era esperar. Nunca lhe passara pela cabeça que tal pudesse acontecer.


Ainda não é desta?
Até que lá aparece Stravinski.
Vem radiante. A desmanchar-se a rir sozinho, como um maluco.
- Ó homem vê lá se tens termos.
E nem uma palavra acerca de íntimas hostilidades.
Stravinski só disse (já estavam na rua):
- Arthur, meu amigo, meu grande amigo… aquela Madeleine… uff… é genial.
E assim terminava para Rubinstein um dia absolutamente para esquecer – só que ele lembrou-se desse dia nas memórias que escreveu muitos anos depois.
Stravinski foi à vida, satisfeito que nem um perú, e Rubinstein foi tristemente para casa. Em branco.
Manhã seguinte. Casa de Rubinstein. Um boy traz uma mensagem para Monsieur Arthur Rubinstein. O que era? Um bilhete de Gabriella.
Arturo, ho capito tutto, começava o bilhete. Arturo, percebi finalmente tudo, escrevia Gabriella Besanzoni, a grande contralto. Percebi finalmente que tu não passas de um nojento pederasta. Por acaso, cá por umas coisas, já me tinha passado isso pela cabeça, uma vez, em Nova York. Mas não liguei. Agora tenho a certeza. O teu amante, aquele polaco, aquele Szymanovski, bem nos deu a entender o frete que fazia em acompanhar-nos, o quanto odiou a noite que passou na minha companhia e de minha irmã. Ele o que queria era ter passado a noite contigo. Espero nunca mais tornar a ver-te. Gabriella.
An? Vejam lá bem como é a moral destas coisas; como um homem pode levar roda de mariconço sem ter culpa nenhuma no cartório – que se saiba, bem entendido. E bem sei que se estava na loucura dos anos 20. Mas mesmo assim.

E não. Tão  cedo não se tornaram  a ver. Gabriella voltou para Roma no dia seguinte, e ela e Rubinstein só voltaram a ver-se anos e anos depois, estava ela casada com um multimilionário brasileiro, Henrique Lage; estava ele casado com Nela Mlynarska.  

                                         
     

Por esse casamento, a Besanzoni chegou a ser proprietária de uma ilha inteira na baía de Guanabara e dona da maior frota mercantil da América do Sul, com direito a ter o nome numa rua de São Paulo – Rua Gabriela Besanzoni Lage.


No que toca a Stravinski, saiba-se que o homem recuperou totalmente a confiança. Foi contemplado de facto com umas massas jeitosas pela tal senhora e famosa mecenas, Misia Sert, e foi de tal monta que Stravinski, com esse dinheiro, e eventualmente com energias sexuais renovadas, pôs os pés ao caminho e passou o verão que nem um senhor, em Biarritz. E acabou a encomenda para Diaghilev, que veio a ser a opera-ballet Mavra.


Szymanovski foi à sua vida dele, para Londres, foi lá ter com uns amigos polacos, os Kochanski’s…
E Rubinstein foi dar concertos para Espanha.
Mas Rubinstein e Stravinski continuaram a encontrar-se com frequência ao longo dos loucos anos 20 parisienses. Não sei se no mesmo restaurante – que ainda existe, como se viu pela gravura acima – nem sei se na casa onde a menina Madeleine dava consultas de impotência viril a cavalheiros geniais.


Rubinstein e Stravinski continuaram a encontrar-se e a discutir duramente a respeito de música, estética, concepções. E mais do que tudo – pelo menos da parte de Stravinski – a respeito de dinheiro. Dinheiro: eis a grande questão de moral de Stravinski.
E ainda há uma outra história verdadeira e levada dos diabos passada com o cunhado, que um dia apareceu a Stravinski em Paris com uma mão atrás e outra adiante e se fez à vida em Biarritz graças aos empenhos do amigo Arthur… uma história engraçada…


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

               DE MAL COM OS MERCADOS
                      POR MOR DO DIREITO
               

      Ou parafraseando os tempos e os modos quando o dilema nacional atingir o gravíssimo: de mal com a democracia por mor dos credores; de mal com os credores por mor da democracia. Ou vice-versa, tanto faz, como dizia o outro no dilema da escolha entre os homens e El-Rey.

    
      Pode pensar-se num quadro hamleteano, porque não? Como pode pensar-se numa cena de tragédia grega – e quando os gregos também navegam por águas semelhantes.


         A ser verdade o que dizem, o trágico conflito português já se desencadeou há muito. A tragédia da viabilidade. A tragédia da existência. Tragédia aprofundada pelas exigências dos credores internacionais e dos mercados representados pelos três implacáveis anjos da visitação (troika).


         Um conflito trágico igual a um conflito identitário. Portugal é Portugal, e existe mais ou menos, desde que alguém estrangeirado lhe queira emprestar dinheiro para existir.
Contraindo dívidas, Portugal vai existindo mais, porque melhor paramentado de símbolos de modernidade e de prosperidade.
Não contraindo dívidas, Portugal existirá menos, porque cada vez mais desataviado dos ditos símbolos e remetido aos orgulhos de uma solidão neo-salazarista, modestinho, pobretanas, cinzentinho, tristonho, sombrio, pacífico, temente a Deus, oprimido. Mas honrado.
E por três (ou quatro?) vezes o cutelo jurídico do Constitucional se abate sobre o ambicioso sonho de um Portugal disposto a pagar as suas dívidas, desenxovalhado, nas vias do desenvolvimento económico, moderno, próspero e promissor, consumista. Cá está a quadratura impossível do círculo de fogo para o meio do qual Portugal foi atirado pelo brilhantismo, pela ambição e pela equívoca honestidade financeira dos seus governantes democraticamente eleitos.
De mal com os credores por mor da democracia; de mal com a democracia por mor dos credores.
Se for verdade o que dizem, a solvência nacional só será efectiva à custa do rasgar das normas que fazem de Portugal um país democrático, um Estado de Direito. E normas essas que não são mais do que pontos cardeais de dignidade e honradez moral.
A confiança! A confiança dos homens no ser e no existir das instituições.
Os mercados financeiros sustentam-nos desde que Portugal se lhes prosterne aos pés, e lhes pague os juros que eles impõem, e nem que esse pagar lhe custe os olhos da cara e a condição de ser e existir. Nem que seja preciso desprezar os seus velhos (idosos), os seus trabalhadores, os seus homens e as suas mulheres, justamente os agentes que realizam o que chamamos Portugal, aqueles que não têm alternativa senão confiar naquilo a que chamam Portugal e em tudo o que sejam normas de ser e de existir daquilo a que chamam Estado de Direito.


E o governo ficará de mal com os homens, com o seu povo, por mor dos interesses dos mercados e dos credores internacionais; e o governo ficará de mal com os interesses dos mercados e dos credores internacionais por mor dos seus homens, do seu povo. O círculo irremediável de fogo. E sendo que nesta tragédia nacional moderna a moral dos homens aparece figurada nos juízes do Constitucional, e os interesses dos credores são representados pelas misericordiosas senhoras visitadoras da troika.
A ser verdade o que dizem, e a cumprir-se o exigido pelas instâncias internacionais do crédito, já ninguém poderá confiar nem a primeira camisa que vestiu ao Estado de Direito, porque o Estado de Direito se apropriou dos sacrifícios que os homens lhe confiaram de empréstimo, fê-los render na promessa de os devolver, majorados, a quem lhe confiou esses sacrifícios, e quando chegou a hora de os devolver fez-se desentendido, estraçalhou as regras de si próprio, e traiu as promessas, e violou as leis que lhe permitiam ser chamado Estado de Direito.

A ser verdade o que dizem, e a não se cumprirem as exigências das instâncias internacionais do crédito porque o Estado de Direito quis ser pessoa jurídica de bem e honrar os compromissos que assumiu com os seus homens, as tais instâncias credoras recusam os seus empréstimos, o Estado continua a ser de Direito, mas os homens que o constituem cairão progressivamente na miséria, porque esse Estado de Direito não dispõe de haveres que bastem para alimentar todos os homens que o constituem, tratar-lhes da precária saúde e dos sossegos da velhice - e ainda menos para os fazer prosperar às alturas do Audi A5, do condomínio privado com piscina, das férias no Brasil, dos fatos do Rosa &Teixeira.



De mal com o Estado de Direito (os homens) por mor dos credores; de mal com os credores (El-Rey) por mor do Estado de Direito.

                       

E então, a ser verdade o que dizem, Portugal só será viável quando não se pretender como Estado de Direito; quando optar pelo regresso ao ascetismo pobre e salazarista que dispensa perfeitamente os luxos de ser Estado de Direito?


Portugal e os seus homens não trabalham nem produzem suficientemente para se afirmar como Estado de Direito em prosperidade económica e sem ajudas externas?
Portugal e os seus homens não trabalham nem produzem suficientemente para sustentar uma democracia constitucional?
No dilema entre democracia e constitucionalidade por um lado, e imposição dos mercados (e investidores e credores) por outro, qual a escolha política e socialmente desejável? A democracia e a constitucionalidade, naturalmente.
E dentro do mesmo dilema, qual a escolha económica e financeiramente desejável? Os mercados, os investidores, naturalmente.
E não será então possível quadrar o aparentemente impossível círculo de fogo, de forma à coexistência do desejável político-social com o desejável económico-financeiro? É capaz de ser.


A preferência pela satisfação dos mercados o que é que impõe realmente na prática? O empobrecimento gradual – dez ou quinze anos, segundo dizem - dos homens; um redimensionamento da economia nacional; uma regressão da eventual qualidade de vida a que o pós-25 de Abril nos habituou, com diminuição de salários, corte de pensões, restrições ao consumo, e assim até a parâmetros parecidos com os da economia da sociedade salazarista
A preferência pela democracia e pela efectiva realidade de um Estado de Direito o que é que impõe na prática? Impõe uma independência económico-financeira que só os credores internacionais, ou os mercados, nos poderão outorgar. Mas que não outorgam antes que sejam consagrados procedimentos económico-financeiros que o Estado de Direito, na figura dos juízes do Constitucional, recusam por uma questão que é técnica, mas que também é de moral social e jurídica.


Quem sairá vencedor do temível confronto? Sem dúvida: os mercados, os credores, os investidores internacionais.
De mal com os mercados por mor da democracia e do Estado de Direito; de mal com a democracia e com o Estado de Direito por mor dos mercados.

                   

E que significará ainda a vitória dos mercados, dos credores e de toda essa ilustre gente anónima no trágico combate com o nosso Estado de Direito? Significará (não nos iludamos) a derrota da democracia. Porque a democracia não é muito mais do que um Estado de Direito. E se desse Estado de Direito se fizer letra morta e tábua rasa, far-se-á letra morta e tábua rasa da democracia mesma.
E que significará a derrota da democracia? Evidentemente: a vitória de uma ditadura. Mas que será pelo menos uma ditadura nova e pouco prevista formalmente pela História.
A nova ditadura que se avizinha – ou que já vai funcionando informalmente – é uma ditadura natural. Tão natural como as leis do mercado, como as leis da selva. É, ou já está a ser, a do século XXI.  
         A nova ditadura não será como as outras e será até muito bem aceite pelos homens do dinheiro, pelos investidores, e mesmo por algum do populacho mais miúdo. Não será como a outra que alguns conheceram e de que outros ouviram falar sem acreditar piamente que tivesse existido. Essa era uma ditadura política, uma ditadura imposta por imperativos ideológicos.
A nova ditadura não será concretizada à custa de opressão, e até permitirá gostosamente eleições de quatro em quatro anos. Não precisará de comissões de censura, nem de polícias secretas, nem de tribunais plenários. A nova ditadura, posto que eminentemente pragmática ao primar pelas eficácias do dinheiro, veste-se relativamente bem de democracia.


A nova ditadura será a ditadura do consumo, da abundância, porque é pela abundância e pelo consequente consumo que uma economia moderna sobrevive, ou vive melhoradamente. É a probabilidade do consumo o que motiva os homens que votam, os homens que para consumirem a contento desprezarão, loucos de alegria, todo e qualquer princípio de um Estado de Direito e se vergarão a todos e quaisquer ditames de credores, de mercados e de investidores.
A ditadura do consumo é contrária à ditadura que muitos dos agentes da praga grisalha (velhos) conheceram, a salazarista, fundada na parcimónia, nas economiazinhas, nas poupançazinhas, na restrição natural e obrigatória do consumo, mas também na orgulhosa solidão de uma pobreza limpinha e honrada.


Se é verdade o que dizem, e a menos que aconteça um milagre – que na velha vida portuguesa não seria originalidade por aí além -, já devemos estar preparados para a ditadura da abundância que nos fará mais pobres ainda do que já somos. 
        A ditadura da abundância, e paradoxalmente, não tenhamos dúvidas, vai implicar uma vida de penúrias para os que, por mor dos investidores, dos mercados e dos credores, serão excluídos da parte da abundância e serão plenamente incluídos na parte da ditadura. Falo dos mitificados jovens que procuram emprego; falo dos velhos (idosos) que já não prestam para nada e que só andam cá a empatar o funcionamento dos mercados, e depois de roubados pelo Estado que vai perdendo a sua qualidade de ser de Direito; falo dos empregados e dos trabalhadores menos prendados de qualificações e de rendimentos; falo de todos.
         Ou quase.
De mal com os homens por mor d’El-Rey; de mal com El-Rey por mor dos homens.