sexta-feira, 28 de março de 2014


     OS IRMÃOS MARX AFINAL ERAM SEIS


O cinéfilo que só se preocupe com a História do Cinema nem sabe disto.


O Groucho, o Harpo, o Chico, o Gummo e o Zeppo. Cinco. O Gummo e o Zeppo foram desaparecendo da cena já não me lembro porquê, se é que alguma vez o soube. E também não conto com o que morreu ainda miúdo, o Manfred. Mas vou contar com um outro menos conhecido, ou pelo menos pouco conhecido no ramo a que os outros cinco genialmente se dedicaram.


Claro, amigos, estou a referir-me ao Carlos, o dialéctico.
Às portas de Abril lembro-me sempre dos Marx, e em especial do Carlos, e ainda mais depois de ter lido não sei onde o mea culpa de Otelo Saraiva de Carvalho quanto à reforma agrária…


Bem gostaria eu de poder falar sobre os outros, o Groucho, o Chico, o Harpo, e até o Gummo e o Zeppo. Mas não tenho elementos. E por isso tenho de me contentar com o Carlos, com a loucura, o humor ou o non sense do Carlos, que alguns opinadores ainda consideram o mais sério e ajuizado dos irmãos Marx, enquanto outros, mesmo assim lhe acham pilhas, o dizem um estouvanado, e acham uma pena ele não ter feito filmes cómicos como os outros. E eu diria: sisudo, está bem, mas, apesar de doente crónico da dialéctica, não menos provido de loucura, humor, non sense… e irreverência, sobretudo. Embora sempre de palavras sérias e desencantadas, barbaçana respeitável e expressão façanhuda. O Carlos Marx. Ao tempo que não sei nada dele.  Pergunto-me, eu e alguns amigos: se ele ainda contasse alguma coisa no mundo destes anos 2000, que diria?
Talvez ele, Carlos Marx, apesar do aspecto e do que deixou dito, não fosse substancialmente um filósofo. O que não significa que não fizesse a sua perninha no pensar mais alto. Talvez fosse mais um economista, um sociólogo – ou, no fundo, um cómico que se entretinha e divertia mais pelas filosofias e pelas economias do que pelas pilhérias.

                                                                                            

Hoje, pelo menos nós, os mais antigos, os que ainda vimos os flmes dos irmãos, quando falamos dele pensamos logo num revolucionário de faca na liga e bomba aparelhada e fumegante na mão. Mas o bom Marx, o impagável Carlos, cismava muito. Era mesmo um pensador. E pensando, perguntava-se: que diacho de leis presidem ao comportamento humano? Como será possível mudar a vida dos homens sem infringir por demais essas leis?


E numa teoria geral do Homem, seu comportamento e suas leis, o Carlos, englobava filosofia, economia e sociologia. Uma totalidade que ele queria deslindar. E começava por filosofar, ele e o amigalhaço, o Frederico, o Engels, Friedrich Engels, outro barbaças, um metafísico que ria até chorar com a cena do camarote do navio em Uma Noite na Ópera e com o médico de Um Dia nas Corridas, quando às vezes acontecia falarem dos irmãos do Carlos, e porque o Frederico, afinal de contas, era um dialéctico em último grau e já desenganado pelos médicos – por isso é que eles se davam tão bem.

                                                                                           

Atribuem a um deles, já não sei se ao Carlos, se ao Frederico, ou aos dois, a expressão materialismo dialéctico – uma degenerescência grave dessa doença, a dialéctica. Está mal. É falso. Eles podiam sofrer disso, mas não falaram disso nesses termos. Pois não. O primeiro que falou em materialismo dialéctico foi um célebre paciente russo que deve ter apanhado dialéctica numa viagem ao Cáucaso, aos Urais, à Sibéria, não sei, e se chamou Plekhanov.
Marx, o Carlos, não ia à bola com a filosofia. Preferia Uma Noite em Casablanca. Por entender que não havia interesse nem proveito nenhum em estudar as ideias em si mesmas, só por si mesmas. As ideias eram uma parte da actividade humana. Uma parte. Só se nelas se contivesse a tal totalidade dessa actividade humana, fosse a do indivíduo isolado, fosse do grupo de indivíduos.


E lá vem então a dialéctica. Às vezes, O Carlos descuidava-se com os medicamentos e tinha ataques de dialéctica, pois. E lá vinha os sintomas dolorosos mas aliciantes da teoria e da prática. A teoria não vale um chavo por si mesma. E a prática pode não ser grande coisa sem o fundamento teórico. Logo, as ideias, as teorias não podem ser separáveis da prática, do concreto dos actos humanos. E os actos humanos, regra geral, não se regem pela madura reflexão, nada têm de reflexão teórica, as mais das vezes. Apenas acontecem. E quem diz actos humanos diz as humaníssimas fezadas, as crenças.


As coisas que existem acontecem e são só porque sim. Ele ainda falou disso ao Groucho, a ver se ele pegava na ideia para um filme, mas o Groucho não foi nisso.
Todos nós, os antigos amigos – e até alguns discípulos - do Carlos, sabíamos disso: não se pode isolar um facto, uma actividade, isolá-los para um exame sério, sem termos de considerar a posição desse facto ou dessa actividade em toda a evolução do conhecimento dos factos e das actividades humanas. Exacto: essa praga terrível e muito contagiosa a que se chama História.
Um facto e uma actividade são avaliáveis, estudáveis, no tal contexto, a contextualização de que se fala muito na televisão. Contexto histórico; evolução histórica. Se assim não for, estaremos a falar de abstracções, ou ilusões sociais, patologias que também afectam muito a sociedade.
Porque o Homem é capaz de inventar. É verdade, amigos. E ai, como o Carlos sabia disso ao dar-se com os irmãos. O Homem é danado para inventar instrumentos – e para os tocar, como o Harpo e o Chico. Eles inventavam instrumentos para intervir a cada momento no processo de formação da realidade deles, que era a fantasia deles passada ao celulóide. Inventavam esses instrumentos e não se ficavam feitos parvos a olhar para eles. Inventavam-nos e utilizavam-nos. Eram homens.


E o Homem desata a inventar instrumentos para quê, não me dizem? E utiliza os instrumentos que inventa exactamente em quê? Para satisfazer necessidades. E logo à cabeça necessidades do mais básico que se possa imaginar: comer, beber, abrigar-se, aquecer-se, sentir prazer, multiplicar-se (procriar). E foi essa capacidade de inventar instrumentos que pôs o Homem em conflito com a mãe-natureza. Os instrumentos permitiram-lhe relacionar-se com ela, natureza, conviver com ela, e depois, evoluindo, evoluindo, rivalizar em criação com ela, abusar da paciência dela, conflituar com ela, violentá-la a ela, natureza – o tal problema da violência doméstica. E até substituir-se a ela. Porque é que eu já posso comer cerejas todo o ano? Porque é que eu posso estar até cheio de calores dentro de casa se na rua, na natureza, estão não sei quantos graus abaixo de zero? Porque é que eu já posso ter vida sexual activa aos 75 anos?


E do Homem insatisfeito e curioso do que o rodeia e de si mesmo só pode esperar-se aperfeiçoamentos, e que uma invenção leve a outra e a outra (o Groucho, o Chico e o Harpo bem o ouviram), e sendo que cada invenção lhe sugere uma nova necessidade, que para ser satisfeita exige uma nova invenção. E quem diz o Homem está a dizer as sociedades que o Homem cria, os grupos, os clãs, as nações, os estados. E quem diz novas necessidades diz novos prazeres, novos gostos - lembrem-se de Duck Soup (não me lembro do título português)..
Disse-nos o Carlos (a nós, aos antigos, aos que o frequentámos) que a capacidade técnica do Homem é maravilhosa. E é única, como se sabe, em todo o reino animal.


Na opinião do Carlos constitui mesmo essa capacidade técnica a natureza humana fundamental. E é dessa capacidade técnica que derivam as mudanças, as profundas, as lentas ou as súbitas. A História, em suma.
A capacidade técnica do Homem para inventar instrumentos que acorram a necessidades, a criação de novas necessidades que implicam a invenção de novos instrumentos de onde decorrem outras necessidades, e mais a consciência que ele, Homem, vai ganhando de tudo isso chama-se o quê? Pois claro, chama-se História.
Ladino este Carlos, não acham? Se pensarem bem vão ver que é assim mesmo, que ele tinha razão. Pelo menos neste ponto. Foi uma pena não ter acompanhado os irmãos na vida de cinema…
E de tudo isso resulta o método chamado científico. Se formos a ver, desse método dito científico de avaliação, de crítica e de vida, já se começara a falar no séc. XVIII. Ciência igual a entendimento de uma matéria. Certo? Materialidade. O Homem do séc. XVIII, no caminho da sua evolutiva precisão de instrumentos, e na trabalheira de os inventar sempre novos para prover às sempre novas necessidades que os novos instrumentos lhe impunham, desata a desespiritualizar-se, a desmitificar-se (ou a desmistificar-se) e desata a chamar-se a si mesmo de materialista.
E, materialista, começa a reparar no seu passado de inventor de instrumentos e de necessidades. E no seu passado o Homem do séc. XVIII detectou uma quantidade de disparates, de loucuras mesmo, de ilusões e de alguns actos tresloucados nascidos do âmago desses disparates, dessas loucuras, e fundamentalmente dessas ilusões que ele julgara serem  necessidades básicas e para as quais inventou instrumentos, e necessidades que afinal nem eram básicas e nem eram sequer necessidades. (E disso falou o Carlos aos irmãos e eles bem se aproveitaram das ideias dele.)
                                                            
                                                    

E era preciso que alguém inventasse um novo instrumento para interpretar a razão de ser dos instrumentos inventados no passado e respectivas consequências. A esse novo instrumento chamaram os homens do séc. XVIII método.
Método que era observar, experimentar primeiro o funcionamento dos instrumentos e dos actos deles decorrentes – método empírico, disseram. Método que era os irmãos ensaiarem primeiro muito bem uma cena antes de a filmarem. Método que era observar rigorosamente, sem paixão ou preconceito, a materialidade dos instrumentos, dos factos e dos actos – método científico. Científico, sistemático, empírico, juntar dois mais dois, raciocinar, quer dizer, método rigoroso. E a partir dele interrogar-se, pôr-se questões quanto ao conjunto do instrumental humano até aí usado para prover necessidades e satisfazer gostos.
E o que o Homem do séc. XVIII viu do instrumental humano que a História contava para trás de si era uma quantidade de superstições e de crenças sem qualquer base de realidade e que os mais proeminentes do rebanho humano, cabeças coroadas, chefes militares, sacerdotes, tinham aproveitado para submeter os demais. Parece simples – só o Carlos para dizer destas. Parece simples mas para o Carlos não era nada simples.
Não havia afinal verdades eternas, verdades sem tempo. Não há sentenças universais válidas para todo o tempo e para todo o lugar. Cada passo novo na capacidade técnica do Homem implicará novas fronteiras, mais alargados campos de observação e acção. E não só no que à materialidade possa dizer respeito. Também ao espírito. Ao intelecto. À moral, ora aí está…


Nenhuma ideia pode nascer separada de um conjunto. Os irmãos perceberam. Cada gag haveria de ter um contexto e proporcionar novos gags. As ideias são instrumentos, podem determinar novas invenções e novos instrumentos, como podem impor outros e novos comportamentos sociais.

                                                             

Oh, quantas ideias e quantos instrumentos na História humana para satisfazer necessidades!
Os exércitos (excelente instrumento) e com ele e para ele, a pólvora (excelente invenção). A agricultura (olha que excelente ideia!). A escravatura (no contexto de uma dada época e no paradigma moral dela uma excelente ideia, certamente). O feudalismo: excelente instrumento, no quadro do tempo e da cena que se está a filmar, sempre no quadro do tempo próprio de cada piada, relativo, dinâmico e nunca absoluto e estático esse tempo.
Se a capacidade técnica, dom exclusivamente humano, determina as ideias e invenções humanas, e as formas de vida humana não são, por outro lado, nem as ideias nem as formas de vida a determinar a capacidade técnica do Homem, então são as necessidades que suscitam as ideias e não as ideias que determinam as necessidades.
As ideias. Não mais do que a parte superior da vivência humana. E não é pouco. Não é pouco nem é muito. É o que é. As ideias são a fonte do que o Carlos chama de super-estrutura, a estrutura do topo que é suportada pela estrutura da base. A cena filmada e montada pelos irmãos sobre a base de uma tomada de vistas, tomada essa assente num script  básico previamente escrito. É boa não é? E a estrutura da base das sociedades humanas é a forma económica que reveste um grupo humano.


A arquitectura da base ou a forma económica adoptada pelo grupo humano é condicionada pelo tipo e quantidade de instrumentos que lhe permitam manter essa forma económica, e igualmente pelos indivíduos que sejam donos ou controlem tais instrumentos – caso dos produtores de Hollywood nas actividades dos irmãos dele.
E às ideias, ao conjunto delas, produto da super-estrutura da organização humana, o Carlos chamava ideologia – do que ele se ia lembrar, diacho do rapaz…
E também há que ver que tais ou tais condições sociais podem não propiciar o aparecimento de tais ou tais ideias. E quem diz ideias diz mesmo invenções ou descobertas materiais, instrumentais. E algumas, já inventadas enquanto  apenas ideias, poderão esperar os momentos históricos mais propícios para assumirem materialidade e serem postas a uso – a dependência do Groucho, do Harpo, do Zeppo e do Chico da política dos estúdios, At The Circus, a propósito.
Leio que a máquina a vapor foi inventada, foi ideia, em Alexandria – e séculos e séculos foram passados antes que fosse materializada em instrumento para suprir necessidades básicas – o Carlos lembrou-se disto, vejam lá. Ou o submarino, ao que dizem inventado pelo Leonardo, o da Vinci, outro cómico impagável do nosso imaginário…
É o moinho movido pelo vento que vai engendrar o regime feudal. (E esta? Pena o Groucho não a ter aproveitado.)
É o tear mecanizado que origina a realidade de um mundo industrial.
Moinho, invenção que leva a um tipo específico de organização da sociedade. Organização da sociedade derivada da invenção do moinho de vento que origina pareceres, opiniões, comportamentos e vidas em conformidade. Opiniões, comportamentos e vidas que pretendem conservar esse tipo de sociedade, esse modo específico de aquisição e distribuição do poder.


Então e o espírito, grande Carlos? Isso não é vida humana?
É. O espírito manifesta-se materialmente em obras, obras de arte, por exemplo, obras do Direito, do pensamento. Os filmes dos irmãos, os Marx Brothers, também, claro. Obras e instituições. Instituições que podem até ser morais, como as instituições filantrópicas. Que podem também ser jurídicas, religiosas. E que são modo de vida global de uma sociedade humana. E que são necessidades.



Invenções e ideias transformam as necessidades – quer dizer as formas de viver. Transformam as necessidades que lhes deram origem. E segredam ao Homem um novo desejo/necessidade. E provocam no Homem novas invenções, novos instrumentos para suprir novas necessidades. E criam por isso novas formas de sociedade.
São as formas assumidas na luta pela sobrevivência – a primeira de todas as necessidades - ou pelo poder, e sua identificação,  o segredo da compreensão da vida social.
E com o Carlos Marx – e já antes dele com os chamados empiristas de Setecentos – passa a ser-nos proibido pensar e dizer de alguma verdade que é intemporal, ou atemporal. Depois do que o Carlos nos disse e do que os filmes dos irmãos dele nos mostraram, isso passará a ser um absurdo - vejam lá se se lembram do Go West, de 1940...
A verdade é uma relação.
A verdade é uma relação entre o pensamento humano e os objectos desse pensamento. E nem objectos nem pensamento são algo de estável, imutável. Eles mudam, olá se mudam, mudam e bem. Mudam à medida da mudança das condições históricas.


Aquele que está preso, vive e pensa na sociedade como um prisioneiro, porque alguma ele fez contra os modos de viver e a moral dessa sociedade; ele pensa-a de certa maneira e quer modificá-la. Ao passo que aquele que se sente bem numa dada sociedade, solto e em harmonia com ela, pensa de maneira diferente, e consequentemente age de maneira diferente, porque o seu ideal consiste em manter essa sociedade em que se sente tão bem tal como ela é, tal como ela está, e não quer ouvir falar em transformações. E até porque o fluxo das suas necessidades como que cessou. Enquanto, para o que está preso, o fluxo das necessidades aumentou de caudal, quer ver-se livre, e para se ver livre sabe que alguma coisa tem de mudar. Algo na sociedade – ou na circunstância - que o mantém preso terá de se transformar.
A liberdade. Que nos disse a isso o Carlos? De vez em quando é bom a gente lembrar-se do que ele nos disse há tantos anos…
Liberdade é vitória sobre os obstáculos que existem entre o Homem e as suas necessidades..
Boa!
Obstáculos que tanto faz sejam da natureza como sejam intrínsecos ao Homem, as suas paixões, a sua selvejaria auto-destrutiva…


Liberdade é controlar sábia e rigorosa e racionalmente os recursos ao dispor da sua necessidade. E liberdade tão mais risonha e compensadora quanto mais esses recursos forem abundantes, quanto mais homens possam controlar de facto esses recursos.
Lembrem-se daquela cena de Monkey Business – não me lembro do título em português – essa cena, exactamente.
Reside na História, e seu estudo, a chave do enigma humano.
Avaliar factos e verdades esquecendo ou ignorando contextos é jamais encontrar as respostas para esse enigma humano. E perder definitivamente o sentido. Quando estava nos dias dele o Carlos dizia coisas que nos deixavam de boca aberta, acreditem. Até os endiabrados irmãos pasmavam…
Liberdade individual… propriedade privada… pois, pois… é um caldinho de alto lá com ele… justiça económica… ui,pessoal!... direitos individuais… tudo expressões que podem depressa perder o sentido em certas sociedades primitivas, naquelas em que a ideia mesma de propriedade não passava pela cabeça de ninguém – isto no tempo do Carlos, já se vê. O primado da propriedade privada não é intemporal como nos quiseram, e querem, fazer crer. E muito menos universal.

                                                                                       

Mas já um amigalhaço intelectual e percursor que o Carlos  nunca chegou a conhecer pessoalmente, o Jorge, Jorge Frederico, mais conhecido pela alcunha, o Hegel, viera dizer ao mundo que um dos aspectos marcantes da História humana era o movimento das crenças, das culturas e correlativas mentalidades. E que tais coisas podem criar impulsos sociais e constituir influências decisivas, reflexos de um progresso da materialidade sobre a mente humana, e transmitindo às acções subsequentes uma mensagem de eficácia, isto é, o que mais e melhor contribuísse para uma vida social apta a satisfazer necessidades materiais.
Armas. Olá! A moral. A moral enquanto, por hipótese, juízo de valor. Bem, pode ser uma arma. Uma arma dissimulada mas eventualmente eficaz na luta pela supremacia – ou até na luta pela sobrevivência.


Cada marco na História do Homem é uma tensão entre a atitude dominante das instituições e tudo aquilo que se lhe oponha. Tensão que produz um conflito entre forças que separam a actividade humana – não esquecem os amigos dele que o Carlos era um fan do Heraclito. É o conflito constante entre os sentimentos, o pensamento e os comportamentos que determinam a mudança – ou, sublinhado por mim com sarcasmo, aquilo que é comummente designado por progresso… e quando eu, envelhecido amigo e admirador do génio do Carlos, já não sei bem se todo o progresso terá por força de consistir em mudança…
Ou sim, está bem… alguma mudança terá de haver, bem vistas as coisas…
E a questão das classes. Alguém se lembra do Carlos a falar disso? Oh, oh, os irmãos lá em casa mudavam logo de conversa…
 O Carlos falava explicitamente da burguesia, senhora dos poderes e dos instrumentos já no tempo dele. E para ele a moral podia ser um alibi, um instrumento disfarçado de uma classe preponderante para submeter outras.


Classes. Pff. Uma classe condenada pela História – estou a pensar na aristocracia dos tempos franceses pré-revolucionários, segundo o que o Carlos nos dizia, que podia não ser capaz de compreender o mundo em que se movia e que supunha dominar. Por causa dos naturais processos de defesa, processos psíquicos colectivos que lhe ofereceram o dom do optimismo e lhe concederam visões idílicas quando de derrocada iminente se tratava.
O que o Carlos nos contou a respeito deste assunto foi, se não estou em erro, que uma classe era um grupo de pessoas que se uniam por algum objectivo social que não era muito mais do que a necessidade de adquirir qualquer coisa que ampliasse a liberdade daquele que possuía essa coisa, aumentando assim a satisfação das suas necessidades.
E não será novidade para ninguém que a História da Humanidade, para o Carlos, também não era muito mais do que a História da luta de classes. Cá está. E foi a partir de uma forma primitiva de comunismo que o Homem deu início à sua fabulosa carreira sobre a terra. E essa forma de comunismo primitivo esvaiu-se à medida que a capacidade técnica do Homem inventava novos instrumentos. E instrumentos esses que os proprietários deles usavam para sacar daqueles que não os tinham uma coisa só: trabalho.
E os que inventaram e tomaram posse dos novos instrumentos passaram as passas do Algarve para conservarem os meios instrumentais que lhes permitiam explorar em seu proveito os que não os tinham.
E toma lá que já almoçaste, diria o Carlos, se fosse ainda vivo…



Simples e claro como água. Essa exploração quantificava-se através da diferença entre o custo do que era necessário para manter os outros capazes de produzir e o valor daquilo que eles produziam.
E ainda pode haver gente que fale a torto e a direito de mais-valias e não saiba o princípio simples em que ela foi calculada. E nem saiba que foi o Carlos que num dia de paródia com os irmãos definiu essa equação. 
Aquele Carlos!
E também talvez não saiba que é a essa dita mais-valia, que remonta às mais primitivas das sociedades humanas, que se usa chamar capital.
E ainda assim pode ser que muitos não saibam que é este chamado capital o fulcro daquilo a que o Carlos costumava chamar luta de classes -  e que agora todos fazemos por esquecer, porque todos somos induzidos a dizer como o outro, o socialista convicto: abaixo o capital, para a gente lhe chegar melhor…


Pois é. Moral. E classes. E Justiça. E piedade. E bondade. E liberdade. Parecem integrar o conjunto das tais categorias intemporais, valores humanistas universais.
Parecem. Para o espertalhão do Carlos não era assim. Para ele, como para os irmãos, não passavam de ficções e só a História poderia julgar tais conceitos. A História, evidentemente, quando correlatada com as necessidades humanas. E classes porque um acto que vá ao encontro dos interesses da classe que domina é considerado moral, bom, justo; e porque se o mesmo acto não for para esses mais do que um obstáculo, então passa a ser imoral, mau e injusto.

                                                                        

Quem segue na vanguarda material da posse dos instrumentos capazes de suprir as necessidades humanas mais básicas é quem determina todos os valores, toda a moral.
Toma lá que já almoçaste…



        Lembrei-me do 25 de Abril por causa do dilema do cabo apontador da metralhadora e por causa das disponibilidades do coronel Otelo para mudar de regime. E logo atrás da lembrança dessas personagens, dessa madrugada e desse dia veio a lembrança recorrente de todos os meus 25’s de Abril, o Carlos, o sexto irmão Marx, o que se dedicou ao humor de outra maneira…


terça-feira, 18 de março de 2014

              O ESTADO DA RAZÃO



Um Estado da Razão era o que seria suposto ser o estado de uma sociedade democrática. Ou, de outra maneira, o Estado que resultasse de um regime democrático. O pior podem ser as razões que uma razão de Estado comporta…
     

       Mas quem quiser levar os homens a agir racionalmente terá de aceitar levá-los de forma irracional, diz uma personagem, Mr. Scogan, de um romance de Aldous Huxley Férias em Crome (tradução portuguesa), que por acaso me apareceu entre mãos e a que não resisti chamar a esta descabelada prosa.
Resolvi aproveitar, com a competente vénia a Mr. Aldous Huxley, já falecido, apenas um diálogo entre duas das personagens, um jovem literato chamado Denis, e um mais velho e sabido que se pretende profeta, chamado Scogan.
Tudo o que se tem feito no mundo e na vida tem sido feito por loucos. Diz o tal Scogan a Denis durante um passeio por uma alameda de teixos.
        Scogan admite que o bom senso tem sido o principal defeito da sua existência, tal como virá a ser o defeito da existência do jovem Denis quando chegar à idade dele, e porque na idade dele ou se é ajuizado ou se é louco.
- Você sabe que… num mundo atilado eu seria um grande homem, mas sendo o mundo tal como é, não sou nada, para todos os efeitos não existo – diz Mr. Scogan.
Homens sensatos, como Mr. Scogan, não realizaram nada de importante neste mundo. São equilibrados demais. São simplesmente sensatos. Não possuem o dom da obstinação entusiástica que impulsiona os projectos, as massas, a vida.
E continua Mr. Scogan a discorrer: as pessoas até podem escutar de muito bom grado um sábio, um filósofo, mas apenas com a finalidade de se divertirem e passarem um bom bocado, como se ouvissem um solista de violino ou as piadas de um palhaço no circo. Quando é chegado o momento de agir de acordo com as ideias de um homem sábio e racional, não, não acontece nada.



- Meu caro Denis, sempre que a escolha teve de ser feita entre um homem de razão e um maluco, o mundo seguiu imediatamente o maluco.



Ora porquê… porque o maluco apela à alma das gentes para o que é fundamental, ou seja, para a paixão, para os instintos. Enquanto o filósofo só lhes inspira o superficial e o supérfluo. Isto é: a razão.



Scogan e o jovem Denis sentam-se num banco de madeira verde do jardim no meio de um maciço de alfazema.


                           

Lutero e Erasmo. Dois casos típicos.                 Erasmo é um homem de razão. As pessoas ouvem-no, em princípio. Scogan diz que ele aparecera como o virtuoso que tocava um sublime instrumento que era o intelecto. As pessoas admiram Erasmo, veneram-no. Mas Erasmo não consegue levar essas pesoas que o veneram a comportarem-se socialmente como ele entendia racional que se comportassem. Martinho Lutero, ao invés, um pregador exaltado, aparece então na vida dos povos. Lutero é um impetuoso, um apaixonado, um tipo mesmo violento. E Lutero, auto-convencido de coisas sobre as quais nem sequer pode haver certeza alguma, grita ao povo. E os homens seguem-no. Já ninguém se importa com a sensatez e a razão imaculada de Erasmo. 



      Lutero era real. Tão real e sério como uma guerra. Erasmo representava a moral superior, a decência. O povo deixou de o ouvir. Injuriaram-no até quanto à razão que tinha. Erasmo era um sábio. Faltava-lhe o poder de manipular e conduzir as massas.


A Europa segue Lutero e mete-se em guerras e perseguições por um século e meio entre banhos e banhos de sangue.



      Quem quiser levar os homens a agir racionalmente terá de levá-los por meios meios irracionais – é esta a perturbante moral desta personagem de Aldous Huxley.


Todo o que fundou uma religião cobriu a sua fundação de doutrinas e justificou, quer dizer, racionalizou o mais que pôde a religião acabada de fundar. Faltava transmitir a mensagem dessa nova religião. E se os fundamentos da religião nova eram racionais tanto quanto o podiam ser, os meios de transmitir a mensagem e conquistar prosélitos teriam de ser místicos, assombrados, a roçar a charlatanice, coisa detestável para um homem de razão.
Ora bem. A razão pura é impotente. Começa e acaba em si mesma. Não vai dar a nada. Não estimula uma acção colectiva.


- Mas é frívolo queixarmo-nos das coisas por elas serem como são – diz a personagem Scogan. - O que é absolutamente precisa é uma sã e racional utilização das forças da demência. Só assim, nós, homens de razão, conquistaremos o poder.


Como? Poder? O jovem interlocutor de Mr. Scogan declara com uma risada não estar interessado no poder. Aspirava tão somente a uma carreira literária. Mr. Scogan replica-lhe:
- Toda a gente quer o poder, meu jovem.
Queria ele dizer que toda a gente aspira de uma forma ou de outra a um poder. No caso daquele jovem tratava-se de um poder literário, perseguir as palavras, torcê-las, modelá-las, torturá-las, obrigá-las à obediência.


Canalizar as loucuras para o serviço da razão: missão de todo o homem de inteligência. O mundo não poderá ser deixado à sua sorte, ao arbítrio de maníacos apaixonados por si próprios, como Lutero ou Napoleão. Mais uma grande guerra e tudo será destruído. Os homens inteligentes deveriam combinar-se e conspirar para arrebatar o poder aos loucos imbecis que governam. Era tarefa inadiável fundar o Estado da Razão. E depois de fundado o Estado da Razão a tarefa era dividir os indivíduos em categorias. Mr. Scogan sugere uma sociedade repartida em três categorias, segundo as qualidades de espírito e de temperamento de cada um. Psicólogos devidamente treinados para o objectivo em vista dividiriam as crianças acabadas de nascer e elaborariam uma classificação delas. E cada criança teria uma educação adequada à sua categoria psicológica.

Aldous Huxley retoma depois o seu estilo profético e anunciador de uma nova ordem, ou das conveniências da instauração de um mundo moderno e perfeito e admirável e novo, e coloca na boca da sua personagem a ideal divisão das criaturas para um mundo que soubesse aproveitar as faculdades tanto dos homens de razão como dos místicos iluminados e tresloucados da comunicação. Classificação subtil e complexa, acerca de cujos contornos Huxley, com fina ironia, diz não competir aos profetas entrar em pormenores.
Inteligências dirigentes. Homens de fé. E rebanho. Eis as três principais divisões da população de um Estado da Razão.
Inteligências dirigentes: todos os que fossem capazes de pensar; todos os que soubessem e pudessem atingir um grau apreciável de liberdade. Uma selecção dos que conhecessem bem os problemas da vida prática. Seriam esses os governantes do Estado da Razão.
Os homens de fé. Eis o segundo patamar das competências no Estado da Razão. Aos homens de fé também Mr. Scogan chama os loucos que acreditam apaixonadamente em coisas que não fazem qualquer sentido, os que se dispõem a morrer pelos ideais e pelas ambições. Os donos de um formidável potencial de Bem e de Mal, que não podiam ser deixados a actuar ao acaso.


Fala de Mr. Scogan:
- Não existiriam mais Césares Bórgias, Luteros ou outros que tais. O desactualizado homem de fé e de ambição, produto acidental de circunstâncias brutas capazes de levar os homens às lágrimas, ao arrependimento ou ao crime, seria  substituído por um novo tipo de homem, aparentemente igual, mas diferente do homem de fé do passado.


Pois bem, o novo homem de fé empregaria paixão, ambição e entusiasmo na difusão de ideias razoáveis. Seria ele o instrumento das inteligências superiores que governariam o Estado da Razão.



       Claro que para tanto os homens de fé, depois de passados ao crivo psicológico, ou psicotécnico, logo à nascença, e seleccionados, teriam desde o berço uma educação específica, sob a supervisão das inteligências superiores. Seriam sugestionados e calcorreariam o  mundo como missionários pregando com todo o fervor obstinado as ideias frias e extremamente racionais das inteligências superiores que governavam a sociedade.
As ideias e projectos dos dirigentes superiores seriam realizados e uma década depois deixariam de ter préstimo, e então as inteligências superiores formariam novas gerações de loucos destinados a pregar as verdades eternas que se aplicassem à década seguinte.
Os loucos homens de fé, visionários de um suposto transcendente, o que fariam era agitar as multidões e conduzi-las. As multidões, precisamente. A terceira categoria dos indivíduos habitantes do imaginário e ideal Estado da Razão.
                          

      A terceira espécie de gente seriam os milhões, o rebanho, os desprovidos de algum tipo notável de inteligência criadora ou vocação, os incapazes da fé e do entusiasmo comunicante. Seriam evangelizados pela classe dos loucos e assombrados pregadores de um qualquer credo desde que ele fosse muito simples e muito satisfatório – assunto a decidir pelos superiores inteligentes.



       Interessante notar, primeiro, a cínica e anti-democrática visão de uma realidade: a grande massa dos indivíduos é destituída de assinaláveis qualidades e é mesmo estúpida e imprestável, quando, numa visão democrática de igualdades teóricas, não se admite a realidade dos incapazes funcionais e todos os homens são inteligentes à partida, porque todos têm o mesmo direito a sê-lo e a dizer publicamente as maiores bacoradas, quando não a ocupar os mais altos cargos e a assumir as mais custosas  responsabilidades.



Segundo: a divisão classista em três é muito comum no decorrer da História humana. Uma divisão que além de socialmente classista é historicamente clássica. Inteligências superiores governantes, homens de fé e rebanho na utopia de Huxley, convertíveis no discurso da História em nobreza, clero e povo. Aqui, embora, sem o determinismo hereditário nas classes superiores dirigentes. Mas, como digo, estamos a falar de uma utopia, bem entendido.
Seria igualmente necessário formar e educar os milhões que comporiam a categoria do rebanho. Seria preciso inculcar-lhes desde muito cedo que, por exemplo, a felicidade era impossível fora do trabalho e fora da obediência.
Seria preciso convencer os milhões do rebanho de que eram felizes, de que eram até pessoas muito importantes e que delas dependia muita coisa, ou quase tudo, e que não havia nada que fizessem que não fosse nobre, inteligente, útil, significativo. Seria esta a ideal plebe do Estado da Razão. Para esses, o mundo conhecido constituiria o centro do universo e seriam convencidos de que o Homem é superior à terra e à natureza e a ambas comandaria a seu bel talante. A plebe de um Estado da Razão trabalharia as suas oito horas por dia. Obedeceria cegamente aos seus superiores inteligentes. Viveria convencida da sua importância e, depois de doutrinada pelos homens de fé, estaria certa da sua imortalidade. Seriam indivíduos felizes como nunca outra raça o fora sobre a terra. O membros do rebanho, sugestionados sempre pelos homens de fé,  levariam a vida em estado de intoxicação ou de hipnotismo e desses estados nunca seriam acordados.



        Mr. Scogan acrescenta:
- Os homens de fé seriam os copeiros deste eterno bacanal, usando o vinho entorpecedor que os superiores inteligentes e governantes, atrás de cena, em sóbria, triste e ascética solidão, preparariam para intoxicar os seus súbditos.



- E qual seria o meu lugar nesse Estado da Razão? - pergunta Denis, o jovem literato aspirante à glória das letras.
E Mr. Scogan tem dificuldade em colocá-lo.
- Não poderias fazer um trabalho manual. És demasiado independente e és muito pouco influenciável para pertencer ao grande rebanho. Por outro aldo… deixa ver… também não tens nenhuma das particularidades requeridas para seres um homem de fé. E quanto ás inteligências superiores… - oh, as inteligências superiores teriam de ser maravilhosamente lúcidas. Teriam de ser penetrantes, impiedosas. - Meu caro Denis, na verdade não vejo onde pudesses ter lugar no Estado da Razão. Talvez só numa câmara de gás.


Não sei qual o ano de escrita e de publicação deste romance de Aldous Huxley, Férias em Crome.  Mas, pela alusão às câmaras de gás, pode inferir-se a proximidade do evento a que ele se refere. Podem concluír-se uma série de coisas. Quem seriam os superiores inteligentes – ou quem possam ter sido, ou quem poderão realmente - e actualmente - ser? Pode perceber-se bastante bem quem são os homens de fé desprovidos de razão mas com o dom de conquistar e arrastar as massas para a loucura e para a guerra.



      Huxley pode ter procurado nesta fábula o compromisso entre os dois modelos políticos dos quais a Humanidade nunca pôde saír. A democracia e a tirania, a ditadura, regime escaldante e capaz de levar os povos em estado de unanimismo a realizar alegremente os projectos mais  irracionais e violentos.
Huxley pontua as debilidades funcionais de uma sociedade extremamente organizada, racionalíssima e idealmente justa, todavia impotente no motivar os povos para qualquer projecto colectivo e transfigurador.



        Porque a razão pura é impotente. Como disse Mr. Scogan.
Nesta fábula sobre o trágico destino do homem comum, Huxley aponta algumas vantagens da ditadura – e quanto mais louca a ditadura mais eficaz – em mobilizar as massas para desígnios ilusoriamente redentores, para guerras purificadoras, nas quais o rebanho – que é rigorosamente comum aos dois regimes – se envolve sem murmurar, antes pelo contrário, cheio de entusiasmo. Todavia, seriam sempre ditaduras mobilizadoras e capazes de feitos notáveis de toda a ordem e no entanto sem respaldo na razão comum, no vulgar bom senso, na justiça, ou sequer na realidade.



      Huxley resume os problemas da governação das nações e escolhe de cada uma das formas incontornáveis de governo dos povos o melhor que cada uma possa ter para oferecer.
Oferecer a quem? Ao rebanho?
Mas a fusão é obviamente uma miragem, uma utopia irrealizável.



E em suma, o rebanho: a componente social a quem se destinam as virtuosas formas de governo, as teorias e as práticas políticas, e em função de quem actuam os superiores inteligentes e ultra-racionais tanto quanto os dementes obstinados e convictos de uma verdade. Uma verdade que o é, sim, mas sempre em alternância com a profunda e torpe mentira que também é.


O rebanho é o motor, a causa e o efeito, o beneficiário e a vítima, seja da razão pura, seja da demência mística. O rebanho é o sujeito e o objecto. O rebanho é a finalidade e é o meio que executa  os projectos dos superiores inteligentes como dos insanos homens de fé.
- É reconfortante pensar - diz Mr. Scogan - que milhões levam a vida a mourejar nas terras e nas fábricas para que nós os dois  possamos divagar sobre estas coisas.
Mr. Scogan pensa que, como todas as coisas boas deste mundo, o ócio e a cultura têm de ser pagos. De facto, alguém terá de pagar, sempre, de pagar tudo. Quem. O rebanho.
- Felizmente não são os ociosos e as pessoas cultas que têm de pagar – conclui Mr. Scogan. - Devemos estar profundamente agradecidos, meu caro Denis. Profundamente agradecidos.



       Pois cá para mim, na minha douta e insubmissa ignorância, perguntaria quantas vezes um Estado de razão se confronta com as razões que o suportam. Aquilo que mais nos pode atormentar  da parte dos estados, por mais fundados na razão, não é a razão ou sem razão dele, Estado, são as diferentes razões a que ele se submete quando procura a sua própria razão. Falando do Estado ou falando de muitas outras coisas, são quase sempre as razões que ofuscam o brilho da Razão.