quarta-feira, 25 de maio de 2016


shakespeare 400 – the globe theatre

 
 

        Tanto quanto temos notícia foi em 1592, no Rose Theatre, que Titus Andronicus e a primeira parte de Henry VI foram dadas ao público londrino. Rose Theatre a funcionar antes da inauguração do famosíssimo e histórico Globe Theatre.
 
 
        Os teatros isabelinos funcionavam então em sistema de repertório e os actores tinham que se haver com a estafa da mudança diária de uma peça para outra. Facto que, no entanto, e segundo os entendidos, proporcionou a subida geral do nível artístico das representações.
 
 
        O velho Globe foi então inaugurado em 1599, estava o reinado de Isabel I a dar as últimas representações. O Globe viria a ser dirigido por uma sociedade de actores constituída pelos irmãos Burbage (Richard e Cuthbert), por um tal de William Shakespeare, e mais por John Heminge, Henry Condell, Will Kempe, Augustine Phillips e Thomas Pope.
        Num dia de 1613, o Globe pegou fogo. E ardeu. E ardeu por razões de ordem teatral, quando durante uma representação de Henry VIII (de autoria partilhada por Shakespeare e John Fletcher) houve a ideia de disparar um canhão no palco e as centelhas do disparo voaram para os telhados – estava nesse dia, por acaso, Shakespeare de folga, na terra, em Stratford.
 

 
        O teatro levou apenas um ano a ser reerguido e a reabrir, e a manter-se em actividade até à chegada ao poder dos puritanos, em 1642, o que obrigou ao fecho de todos os teatros londrinos.
 
 
        A companhia do Globe Theatre, dirigida por Richard Burbage, produziu as estreias de grande parte das peças de Shakespeare. Mas não só, evidentemente. Muitos outros dramaturgos viram as obras estreadas no Globe.
 
 
        Richard Burbage foi o primeiro grande actor inglês – num próximo post voltarei a falar dele, e com a ajuda de Laurence Olivier voltarei ao que se pode chamar de grande linhagem aristocrática dos actores shakespearianos – e o mais certo é ter sido ele a criar as personagens mais altamente marcantes do mundo do mestre de Stratford, Ricardo III, Hamlet, Malvolio, Othello, Lear.
 
 
        Com a restauração da monarquia, em 1660, o rei Carlos II deu prioridade máxima à restauração da vida teatral e foi sob o seu magno patrocínio que se formaram duas companhias de drama, os King’s Men e os Duke’s Men, que vão dar origem à edificação dos dois principais teatros régios, o Drury Lane e o Covent Garden.
 
 
        A vida teatral londrina passava assim de Southwark para o West End e institucionalizava-se, e respeitabilizava-se, com a realização de espectáculos nocturnos em espaços nobres e devidamente fechados.
 
       
 
        Acontece então, numa vida teatral dominada pelos actores homens, a alteração decisiva, diria revolucionária, que foi a utilização de actrizes.
     

    
        Ainda que a rainha e as damas nobres costumassem representar nos teatrinhos da corte dos Stuart, é só em 1660 que aparecem nos tablados de Londres as actrizes profissionais. E sai um decreto régio: às mulheres,  e não aos rapazes, deveriam passar a ser confiados os papéis femininos.
        Shakespeare, entretanto morto (em 1616), muito poderia ter apreciado semelhante inovação, que lhe teria acrescentado mais verdade e maior verosimilhança aos trabalhos.
 
 
        Todavia, os historiadores não têm absolutas certezas para afirmar quem teria sido a primeira actriz da cena inglesa. Ainda assim, sabe-se que no dia 8 de Dezembro de 1660 foi uma mulher que recitou Desdemona na King’s Company, dirigida por Thomas Killigrew, e sendo as outras personagens femininas ainda desempenhadas por rapazes.
 
 
        E se esse Killigrew da King’s Company já mantinha quatro actrizes sob contrato profissional, o rival da Duke’s Company, William Davenant, já lá tinha seis.
 
 
        Foi esse Davenant o introdutor das mudanças de cenário – e da mobilidade dos próprios cenários para lá do proscénio.
      
 

      O que aliás já acontecia nas representações de máscaras na corte dos Stuarts por obra do afamado cenógrafo Inigo Jones.
 
 
        Thomas Betterton é quem sucede como vedeta da cena inglesa a Richard Burbage, em 1660. Era exímio quer em tragédia quer em comédia, e é ele que começa a fazer algumas modificações nos textos de Shakespeare, e n sentido de uma actualização, de uma adaptação aos gostos de cada época. Assim se inicia uma prática de revisões que seria norma pelos tempos a seguir.
 
        Anne Bracegirdle é consagrada pelos investigadores destas coisas como a maior das actrizes históricas do teatro inglês. Não era contudo menina para doses dramáticas muito fortes - o que é estranho para quem foi considerada a maior – e restringia-se ao repertório mais light das heroínas shakespearianas, Portia, Desdemona, Cordélia, Ophélia. Tinha uma amiga que lhe passava a perna nas personagens de mais peso, Elizabeth Barry, que ganhou alta fama em Lady Macbeth.
 
 
        As revisões, actualizações e adaptações do teatro shakespeariano continuavam, e algumas, pelo dizer dos sapientes, foram mesmo drásticas. E foram a normalidade no século seguinte até aos alvores do século XIX. Garrick, o grande actor do século XVIII, e verdadeiro devoto do mestre de Stratford, abusou dos cortes, das revisões e até das reescritas. Msmo assim, no que toca a Shakespeare, o século XVIII foi o século de Garrick.
 
 
        Entretanto, nascia o teatro americano. Na Virginia. Com a família Hallam, os primeiros shakespearianos americanos importantes. Que aliás eram ingleses.
 
 
        Fazem o Mercador de Veneza em 1752, em Williamsburg. Fazem o Ricardo III em Nova York no ano seguinte.
 
 
        Virá a ser Edwin Booth o primeiro grande shakespeariano das américas, e bate o record de 1000 noite seguidas a representar Hamlet em plena guerra civil. Um máximo que só vem a ser superado por John Barrymore, em 1922.
 
 
        Há um homem, William Poel, vivo entre 1852 e 1934, que se perfila como campeão da restituição dos textos de Shakespeare na sua pureza original. Não só dos textos, diga-se, também do estilo de encenação e representação deles.
 
 
        No meio disto tudo, havia que erigir um teatro especializado na própria cidade que vira nascer o Bardo, Stratford-upon-Avon. E esse teatro aparece. Em 1879. E abre no dia do aniversário do velho Willy, 23 de Abril. É em 1960 que o baptizam de Royal Shakespeare Company, fadado para produzir todas as 37 peças canónicas do Mestre.
 
 
        O mundo do drama shakespeariano conheceu há pouco tempo novos impulsos com a construção do novo Globe Theatre,em South Bank, mais ou menos no lugar do original Globe Theatre dos tempos isabelinos.


 
        Numa iniciativa visionária do actor e encenador americano Sam Wanamaker, foi desenhado igual ao original tanto quanto as pesquizas históricas e as escavações o determinaram, e também na intenção de replicar tanto quanto possível as técnicas encenográficas do tempo de Shakespeare.
 
 
        É um teatro aberto, quer dizer, ao ar livre, exactamente como o velho, com o público próximo da cena e dos actores num palco trilateral.
 
 
        Na sua maior parte, os espectáculos decorrem de dia, à luz natural. O que não implica forçosamente que não se façam récitas nocturnas, sob uma luz eléctrica a incidir uniformemente sobre actores e público, sendo porém de evitar excessos nos efeitos visuais.
 
 
        Também foi planeada alguma amplificação sonora para ajudar a projecção da voz dos actores. E igualmente música ao vivo quando necessário.
 
 
        Como era de tradição no primitivo Globe, previram-se algumas produções só com actores-homens, num regresso histórico à estranha e isabelina ideia de que o público viriaao Globe Theatre mais para ouvir a peça do que para ver…
 
 

       

       

sexta-feira, 20 de maio de 2016


  shakespeare 400 – george steiner
 


         Nenhuma actividade ou profissão se salvou do bisturi shakespeariano, médicos, advogados, agiotas, soldados, marinheiros, magos, putas, padres, políticos, músicos, carpinteiros, reis, assassinos…
         Shakespeare, no dizer do Prof. George Steiner, é um inventário da experiência humana. Um inventário inultrapassável. A obra de Shakespeare é uma soma do mundo.
 
 
Porém, para decepção de Steiner, a relação mestre-discípulo não chamou uma especial atenção do Bardo.
 
 
Está bem, há o didactismo sentencioso de Polónio em Hamlet. Ou sim, Próspero em A Tempestade. Caliban educado em dureza e rigores; Miranda criada entre ríspidas afeições. Mas tudo isso é incidental, ainda assim. Nada disto é fulcro central de uma peça.
 
 
Steiner arrisca que a ausência temática do binómio mestre/discípulo em Shakespeare releva de uma recusa subconsciente das reivindicações e pretensões do academismo autoritário sobre a mente do autodidacta universalista. É bem pensado.
Já em Montaigne Steiner destacava a mesma pecha, digamos assim, o mesmo reflexo.
 
 
E o mais intrigante é que essa eventual recusa inconsciente de Shakespeare contrastava gritantemente com o gosto que tinham pelo ensino formal os contemporâneos dele, Marlowe, Chapman, Ben Johnson…
E quem poderia ensinar Shakespeare nas verdades e mentiras da consciência humana?
Ah, os Sonetos…    

     E tu que conheceste as estrelas e a luz do sol,
      por ti mesmo instruído, perscrutado, honrado, seguro,
        sobre a terra caminhaste insuspeito – tanto melhor!

                      


sexta-feira, 13 de maio de 2016


shakespeare 400 – visconti

 
 
No imediato pós-guerra, Luchino Visconti esteve quase a escrever uma adaptação cinematográfica de Othello – a ser interpretado pelo grande actor francês da época Louis Jouvet. O projecto não foi para diante, e de novo, em 1965, esteve para sair um Mercador de Veneza, que também não fez.
 
 
Visconti também perseguia a miragem de um teatro total, por ver no teatro aquilo que, de momento (o pós-guerra), o cinema não lhe permitia, uma gama mais alargada de possibilidades expressivas. E será pelo teatro, e pelas libérrimas ousadias de interpretação de texto e encenação, que Visconti se impõe primeiramente às atenções do público e da crítica.
 
 
Forma uma companhia (Companhia Italiana de Teatro de Prosa), precisamente a 12 de Novembro de 1946, com sede no Teatro Eliseo de Roma. Arranca com Dostoievski, Crime e Castigo -  Rina Morelli, Paolo Stoppa, Massimo Girotti, Giorgio de Lullo, Franco Interlenghi e outros no elenco (Gassman e Mastroianni chegariam mais tarde). Segue com Tennessee Williams; Cocteau, Alfieri, Goldoni, Sartre, Camus, Ibsen, Musset John Ford, Dumas, Verga, PIrandello…
Era (foi) coisa artística importante, mas por agora só me interessa Shakespeare.
1948. Teatro Eliseo. Novembro e Dezembro. Shakespeare. Rosalinda, ou As You Like It, ou Come Vi Piace. As discussões e polémicas que suscita vão durar algum tempo no meio artístico romano, e sobre um nome que vinha marcado de neo-realismo cinematográfico desde Ossessione e La Terra Trema.
 
 
O realismo no cinema. A fantasia, o esteticismo, o formalismo no teatro. Quer dizer, o espectáculo pelo espectáculo. Quer dizer, a fuga ao real (como alguns críticos lhe apontaram), o recuo perante os temas políticos e sociais, o escapismo ideológico. E por isso criticado asperamente pelos próprios companheiros de jornada, a revista do PCI Rinascita.
 
 
Shakespeare era um veículo para o projecto de Visconti, a teatralização do real e consequentes problemas técnico-artísticos. E nessa teatralização do real Shakespeare seria incluído como pretexto para uma experimentação do fantástico.
Toda a representação era pontuada por comentários musicais. Depuravam-se os elementos naturalistas. Deslocava-se a representação dos referenciais históricos e ambientais. Dançava-se. Os elementos realistas transfiguravam-se em formas e cores. No palco, Gassman, Stoppa, RIna Morelli, Gabriele Ferzetti.
 
 
E o escândalo maior, por assim dizer: a cenografia de Salvador Dali.
Como a história é sem tempo, e tanto pode acontecer na grega Arcádia como numa floresta da Escócia como num bosque dos pintores venezianos, veio-me à ideia ambientar a peça num outonal século XVIII de cores, de alegria, de melancolia. Um século XVIII fantasiado e nada histórico.
Dali aceitara a proposta para desenhar cenários, luzes, adereços e guarda-roupa pela módica soma de um milhão de liras. E teve a sua quota-parte autoral na encenação pelo que respeitava à coordenação dos movimentos cénicos com a intensidade colorida da luz em crescendos e diminuendos de natureza musical. É-lhe portanto devida a atmosfera crepuscular a que Visconti se referia.
 
 
Parece que era uma festa para os olhos, um espetáculo total, quase uma ópera (a que Visconti chegaria uns anos mais tarde), em que o texto shakespeariano se não saía diminuído, quase.
 
 
É bom que se tente compreender (o crítico Vito Pandolfi) porque só assim se chegará a apreciar devidamente o esforço se não tivesse pesado tanto sobre o espectáculo a exibição supérflua, o gosto provinciano dos efeitos opulentos e da super-abundância dos meios.
 
 
Outro crítico, Vincenzo Talarico: a arte não se julga pelo gasto milionário da produção, e faz algum sentido ver grades actores como Rina Morelli, Gassman e Stoppa misturados com balbuciantes intervenções de amadores.
 
 
Foi uma oportunidade perdida (Giovanni Gigliozzi) para um Visconti que se mostra um verdadeiro poeta no insosso Adamo, ou no inconsistente Zoo di Vetro e fica como que paralisado por Shakespeare. Talvez por um respeito excessivo.
 
 
Era mesmo o que Visconti pretendia, o encantamento paralisante que se pode obter por meios puramente teatrais, as sensações visuais e auditivas que conduziam ao sonhado teatro total.
Há muito que me apeteciam umas férias do cinema, um tempo de repouso que só em Shakespeare poderia encontrar – notas de Visconti no programa de sala.
 
 
Para ajudar à festa, Visconti encontra Dali em Roma. Dali que estava e Roma para estudar Bramante, o arquitecto de São Pedro. Era ele o cenógrafo bizarro e mágico que era preciso. E assim Dali passa um mês a construir o que ele chama de floresta géometrique em árvores raphaelesques, mais pastores, cortesãos e cabras atomiques. E quanto a Shakespeare era preciso dize que As You Like It, ou Come Vi Piace, era uma comédia onde nada acontecia, em que as personagens viviam da caça, do amor e de canções.
 
 
Para Gianni Rondolino, conhecido crítico e estudioso de cinema, as circunstâncias da montagem de Come Vi Piace eram uma reivindicação de liberdade de poder frequentar paragens estéticas bem distantes das apertadas cartilhas do realismo socialista. Visconti arrogava-se o artístico direito a novas perspectivas sobre a realidade humana e social. Por exemplo, a análise estético-teatral da felicidade. E não, não era uma fuga ao real, era uma urgência de sondar outras componentes dessa mesma experiência humana.
 
 
Um artigo do próprio Visconti sai em Rinascita em Dezembro desse ano de 48, Do modo de encenar uma comédia de Shakespeare.
 
 
Consta que montando Come Vi Piace, de Shakespeare, eu abandonei o neo-realismo. Pois que me perdoem os que simpatizam tanto com estas terminologias imprecisas, mas… que quer dizer isso de neo-realismo? Deixando de lado a minha experiência cinematográfica, posso demonstrar que em teatro fiz neo-realismo até onde me foi possível fazê-lo, e foi quando me servi de objectos e memórias da realidade que tanto se tinham afastado da convenção teatral instituída.
 
                                                                      
            
 
No trabalho teatral de Visconti seguem-se montagens de As Bodas de Figaro (Beaumarchais), Um Eléctrico Chamado Desejo (Tennessee Williams), Oreste (Alfieri), Morte de um Caixeiro Viajante (Arthur Miller), La Locandiera (Goldoni), Medeia (Eurípedes), As Três Irmãs (Tchekov)até chegar a um novo Shakespeare, Troilus and Cressida, italianizado para Troilo e Cressida,  e aproveitando ainda a experiência de Come Vi Piace.
 
 
Convidado para um projecto operático, Orlando Furioso, de Vivaldi, no Maio Musical Florentino, Visconti não se deve ter sentido bastante preparado abordar o teatro lírico de modo marcante, e talvez porque tivesse ainda algo a dizer no teatro declamado, e especificamente no mundo de Shakespeare.
 
 
Foi o então director do Maio Florentino, Francesco Siciliani (um dos descobridores da Callas, por sinal), a propor-lhe nova aventura shakespeariana. Que pensa de Troilo e Cressida? Terei eu que lhe dizer do quanto um espectáculo desses se adequaria maravilhosamente às características do ambiente natural dos jardins de Boboli?
E foi, de facto, à cena Troilo e Cressida, entre 21 e 29 de Junho de 1949, justamente nos jardins do Palazzo Pitti, em Florença.
Um grandioso espectáculo, como era de esperar, ao ar livre, em cenografias de Franco Zeffirelli reproduzindo uma cidade oriental da Idade Média, com os actores a declamar, a correr, a baterem-se em duelo, entre cavalos e cavaleiros e fragorosas batalhas, no imenso espaço de uma renovada intenção não só de teatro total como de um conceito de teatro enquanto festa.
 
 
Outra vez o crítico Vito Pandolfi: Visconti, para lá de apreciar os ambientes faustosos por si próprios e deliciar-se em cerimoniais feudalísticos, tem tendência para menosprezar o ritmo e o equilíbrio do espectáculo.
 
 
Era uma encenação que se subdividia em partes distintas, em espaços diferenciados, dando ao espectador a liberdade de seguir mais de perto este ou aquele episódio, esta ou aquela personagem, ou ambiência.
 
 
Outra experiência de liberdade, ou libertação, em face do cânone do realismo socialista a que Visconti começaria a não querer enfeudar-se por demais. Uma libertação que, no entanto, compreenderia a contradição  aparente com as concepções dele de um teatro como totalidade.