segunda-feira, 29 de abril de 2013


       A JUSTIÇA DE VENEZA

Antes de ser doge, Francesco Foscari, membro de nobre família veneziana, desempenhou importantes cargos na administração da Sereníssima, embaixador, presidente do conselho dos Quarenta, inquisidor, procurador e cabeça do Conselho dos Dez. Na hora da eleição de um novo doge, no seu leito de morte, Tommaso Mocenigo, o doge cessante, advertiu os notáveis do perigo da eleição de Foscari como seu sucessor. Foscari foi eleito doge aos 49 anos e foi olhado como um perigoso jovem a ocupar aquele cargo.


A questão das beligerâncias. Mocenigo sabia que Foscari não tardaria a precipitar-se em guerras sangrentas contra Milão e contra Génova, coisa que ele sempre evitara. Mas o Senado e o Conselho não ligaram às advertências de Mocenigo e elegeram Francesco Foscari. Elegeram Foscari e com ele o pendor expansionista e guerreiro.  E é com o doge Francesco Foscari e a sua beligerância que começa realmente a grandeza e a maior influência económica e política de Veneza.


Escrevendo acerca dos doges de Veneza, um que fora embaixador  de Milão na Sereníssima, deixou dito: os patrícios venezianos não precisam de se cansar por causa das eleições; o que eles elegem é um sócio vitalício e não um duce. E é claro que, comparado com  o senhor de Milão, o doge de Veneza era um figurante. Por isso muitos afiançaram que todos os príncipes italianos eram tiranos com a excepção do doge de Veneza.
                                                     
                                    
                                                       
Francesco Foscari casou duas vezes. Teve muitos filhos e todos morerram com excepção de um, Jacopo. Jacopo Foscari é o centro da ópera de Verdi I Due Foscari.       
Passado o sucesso de Ernani, pelos anos 40 do século XIX, Verdi estava definitivamente lançado no galarim dos mais ilustres compositores transalpinos. As encomendas de novas óperas chegavam de toda a Itália, do Argentina de Roma, do S. Carlos de Nápoles, do La Pergola de Florença. Do próprio Scala.
       De igual modo lhe caíam sobre a mesa de trabalho projectos de novos argumentos, os de carácter histórico, as adaptações literárias, os tratamentos poéticos de episódios pertencentes à lenda.


      Dos registos desse tempo feitos pelo próprio Verdi constavam, prontas a ser musicadas, adaptações de Rei Lear, Hamlet, A Tempestade (Shakespeare), Kean (Dumas Pai), Caím (Byron), Fedra (Racine e Eurípedes), Ruy Blas e Le Roi S’Amuse (V. Hugo), Attila (Werner). Entre outras. E entre as outras tinha ele em carteira I Due Foscari, uma tragédia de Lord Byron com base em factos reais.  É sobre esse projecto, apreciado por Verdi como musicalíssimo e cheio de paixão, que recai a escolha.

                                                                         

Falando de factos, o doge Foscari escapa a pelo menos um atentado, em 1426, perpetrado por Andrea Contarini e desmonta várias conjuras para o eliminar, o que pode querer dizer que a figura dele não era assim tão inócua como isso. Estamos no ambiente altamente violento do Renascimento italiano.

                                                                    
Recuando  o tempo: em Veneza, no ano de 697, uma assembleia popular elege o primeiro duca, mas só no ano de 745 é que o doge Partecipazio estabelece perpetuamente a residência do príncipe, o Castello Ducale, e será perto dele que virá a ser construída a Basílica de São Marcos, para guardar os restos mortais do apóstolo, trazidos de Alexandria em 828 por dois marinheiros.

                                                              

Francesco Foscari é eleito em 1423 e Veneza abandona as suas anteriores posições de neutralidade no contexto político conflitual da península itálica. O poder não é para pessoas de bom coração e alma sensível e pacífica.
Foscari expande o território. Dá mais importância a isso do que a aspectos de política mercantil. Veneza junta-se então a Florença contra Gènova e contra a Milão dos Visconti, cuja ambição era o domínio total da Itália. Porém, a sucessão de campanhas militares proporciona rombos consideráveis aos cofres da república veneziana.
Foscari é eleito doge de Veneza em concorrência directa com Pietro Loredan. Mas mesmo já depois de eleito, Foscari vê-se constantemente confrontado e contraditado  pelo seu opositor, Loredan, ao ponto de dizer publicamente que nunca seria realmente doge enquanto Pietro Loredan fosse vivo – isto é histórico.


E logo calha que, meses depois, Pietro Loredan e seu irmão Marco morrem inesperadamente, e ainda por cima, segundo os boatos, envenenados. A suspeita da família Loredan evidentemente que se inclina para a culpabilidade do próprio doge e os sentimentos de vingança ficam em aberto.
Devido a vários descontentamentos com a política, Foscari solicita por duas vezes permissão de abdicar. Recusada.
E em 1444 começa o drama familiar dos Foscari que dá o assunto à ópera de Verdi, concebida com base no poema homónimo de Lord Byron e cujo enredo segue quase a par e passo a verdade histórica do caso dos Foscari, salvo algumas ínfimas questões de pormenor.
Jacopo, filho de Francesco Foscari, está encarcerado nas prisões do Estado e sobre ele impendem culpas graves.

                                                                                           

Francesco Foscari está velho e vem reflectindo muito acerca da sua real autoridade e no efectivo poder de um doge dentro das circunstâncias e do esquema institucional e político veneziano.
É esta exactamente a questão de moral: o poder efectivo (ou a falta dele) de um chefe de Estado ou de governo e as conveniências do interesse desse mesmo Estado em convencer a opinião pública acerca do funcionamento real e equitativo das suas instituições, mais os equilíbrios de poder e os compromissos indispensáveis de fazer com os aparelhos que rodeiam o poder e com as linhas mestras da cultura política dominante.




 
Lucrezia, uma nobre  Contarini, mulher de Jacopo, intercede junto do sogro, o doge, pede-lhe que faça alguma coisa a favor do único filho, segundo ela injustamente acusado de crime. Ignora ela que ao homem que governa e que dá a cara por uma política, por força do sistema de valores e de procedimentos que o suportam, não é permitida a liberdade de decidir totalmente segundo a sua vontade ou o seu próprio sentido de justiça. A verdade é que o doge de Veneza era quase um escravo do Estado, uma figura representativa e decorativa. Podia, sim senhor, dar os seus palpites nas assembleias dos vários conselhos, mas ninguém era obrigado a ligar meia ao que ele dizia, a palavra dele era tudo menos vinculativa nos assuntos de Estado. E era altamente vigiado. Os inquisidores da república estavam autorizados a entrar nos aposentos do doge a qualquer hora do dia ou da noite.

                                                                                        
                              
             
O doge nem era senhor de abrir as cartas que recebia das cortes estrangeiras. Não recebia sozinho os embaixadores, e nem era ao doge que os embaixadores apresentavam credenciais. E se o doge era presenteado a obrigação dele era desfazer-se rapidamente desses presentes. Nem podia ser dono do que quer que fosse que não fosse veneziano, e nem podia pôr um tostão de seu fora de Veneza.
A  moral de Estado impunha mais: assim que um doge era eleito, a família dele era imediatamente destituída de todos os cargos públicos, se os tivesse. E assim só para se ver aos pontos a que se chegava (nas aparências, pelo menos) com a moral de incorrupção da república que queria passar aos olhos do mundo por ser a mais democrática.
O velho Foscari diz à nora Contarini que a lei veneziana lhe deixa as mãos amarradas mesmo que se trate do seu próprio filho. Porque era  preciso que todos acreditassem que a justiça de Veneza funcionava. E que o melhor meio para obter essa finalidade era condenar gente importante, a começar pela família do cabeça do Estado.

                     

Anuncia-se a sentença contra Jacopo Foscari a ser pronunciada pela Junta e pelo Conselho dos Dez. O caso é delicado, visto envolver directamente um familiar do Doge. Mas também vem mesmo a calhar para os interesses da oligarquia dominante. Com a punição desse, outros crimes bem mais gravosos contra os interesses do Estado deixarão de merecer as atenções da opinião pública devidamente convencida do funcionamento da justiça da cidade.


É na noite de 5 de Novembro de 1450 que Jacopo Foscari é acusado de ter apunhalado pelas costas Ermolao Donato, chefe do Conselho dos Dez, quando, uma bela noite, este urinava calmamente ao pé de uma porta no campo de Santa Maria Formosa. É igualmente acusado de ter endereçado uma carta a Francesco Sforza, duque de Milão – de quem a Veneza de Foscari era inimiga, e este facto é absolutamente histórico.
Também não se livrava da fama de fazer espionagem para potências estrangeiras, Florença incluída; e dizia-se que nunca o muçulmano Maomé, o Conquistador, teria podido entrar em Constantinopla sem as informações secretamente transmitidas por  Jacopo Foscari, o filho do doge.
Tanto quanto se sabe, Jacopo nega o assassínio de Donato e argumenta que a carta escrita a Sforza era um pedido de intermediação em conflitos.
                                                                        
                         


Jacopo é submetido a torturas. Querem dele uma confissão em forma. Mas ele não confessa nada. Querem exilá-lo para longe de Veneza – para Creta, segundo o libreto verdiano; para Candia, segundo os dados históricos. O sistema jurídico-político veneziano quer dar bastas provas da sua imparcialidade e competência e tem que fomentar a sua própria credibilidade junto da opinião pública. É preciso que todos saibam que a justiça veneziana funciona. E a oportunidade que se apresenta é de ouro. É preciso condenar o filho do doge para salvar as aparências. Nem que ele esteja inocente. O sistema e a perpetuação desse mesmo sistema assim o exigem.
Bem, mas a justiça de Veneza tinha que se lhe dissesse. Eram os inquisidores da república e o Conselho dos Dez que tratavam da justiça democrática da Dominante. Trabalhavam em conjunto e os autos que levantavam eram secretos – segredo de justiça absoluto. Qualquer dos membros destas instituições podia mandar prender quem quisesse e sumariamente podia decidir sobre o destino desse que mandara prender, a menos que se tratasse de um patrício.


Os presos eram sujeitos a tortura mas apenas com vista à confissão. E a sentença que lhe aplicavam não lhe era notificada, nem a natureza do crime de que era acusado lhe era explicitada, e nem a identidade das testemunhas que o haviam incriminado lhe era revelada. E quanto à sua própria defesa, não tinha direito a dizer nem uma palavra.
Era executado em segredo, mas o cadáver podia ser exposto entre as colunas de S. Marcos.


Ninguém estava ao abrigo do braço justiceiro de Veneza. Nem o doge.


                                                                                         
                                             

Toda a coisa organizada supõe uma tendência para a oligarquia – portanto, para o poder de uns quantos sobre a massa dos restantes. Por mais que se diga, a tendência aristocrática do poder é real, seja ele qual for e de que sinal for, e até em partidos ou associações operárias. Em baixo, ficará sempre a massa. Tanto um partido como um sindicato, desde que estruturados, contam com uma clique dirigente que, óbvio, determinará os passos a seguir, dividirá os interesses e influenciará a massa para o apoio às iniciativas que mais beneficiem a clique do topo. E ficam assim as cartas distribuídas: uns serão sempre parte da minoria dirigente, enquanto outros ficarão para sempre como maioria dirigida. Não pode deixar de ser assim.
Começam por ser seis os membros do Conselho dos Dez, em 1178, e chamavam-lhe  então o Minor Consiglio. Mais tarde chamar-lhe-iam  La Signoria. Mas já em 1179 a eleição do chefe de Estado é realizada numa assembleia de onze membros.
 
Eleito por uma câmara de personalidades da elite, o povo reagiu ao processo de eleição do príncipe – mas então como é?, que raio de democracia é esta? E o povo insurgiu-se. E o doge, que tinha de ter alguma coisita de seu, não faz mais nada e manda atirar à multidão peças de ouro. E manda-se dizer que o povo haveria de conservar para sempre o direito de sanção dos actos do príncipe. E assim o povo se convenceu de que vivia num Estado democrático.
Em qualquer regime, incluindo a democracia representativa em que vivemos, uma minoria terá forçosamente que se impor às massas. As tais elites. A História não deve passar de um enredo urdido na luta dessas diversas elites pelo poder. É o politólogo italiano Wilfred Pareto que, opondo-se à luta de classes marxista, propõe uma explicação teórica da História como mera circulação de elites, ou uma permanente substituição de um grupo de privilegiados por outro nos lugares de poder. E sendo a característica primordial de uma sociedade precisamente a característica da sua elite governante.
                               

                    

 
Mas diz a crónica histórica que o filho de Francesco Foscari era rapaz inteligente mas um pouco estouvado, frívolo e irresponsável. Também o acusavam de aceitar demasiados presentes de certos cidadãos e até de príncipes estrangeiros interessados em influenciar a política veneziana. E quem rejubila com a desgraça da família Foscari é o antigo inimigo, historicamente morto, mas na ópera de Verdi ainda vivo, Loredan.
É na presença impotente do próprio doge, pai do condenado, que o Conselho dos Dez confirma a sentença de exílio de Jacopo. Jacopo apela ao pai, ao doge, o doge recomenda-lhe resignação aos interesses da justiça de Estado. Os filhos de Jacopo rojam-se com a mãe aos pés do avô doge, que assume a postura de Estado e continua impassível ante a dor familiar. A justiça de Veneza funciona: é essa a ideia que é obrigatório pôr a circular.
Mas Francesco Foscari atormenta-se, claro, em privado, com a sorte do filho. Sabe que as culpas do filho estão a ser ampliadas pela camarilha que envolve o poder e que é o filho a pagar o ódio que muitos dos notáveis nutrem pela figura do doge vitalício e intocável, e por imperativo de cargo condenado à impotência.

 
É assim. Oligarquia. Os dirigentes passam a impor as suas decisões aos dirigidos e formarão entre eles ainda outro círculo, la créme de la créme, devidamente fechado e blindado, cujo objectivo máximo não pode deixar de ser a sua perpetuação no poder, e porque a tendência de quem manda é perpetuar-se no mando, deixemo-nos de fitas, perpetuar-se e reforçar-se no mando, contando para isso com a inércia da massa dos dirigidos que com facilidade e docilidade espantosas se entregam nas mãos dos ditos especialistas do mando. E as coisas são, como sempre foram, assim, e não há volta a dar-lhes por mais nobres que sejam as intenções de todos, mandantes e mandados.
 
                                                     
 
Diz a História que os julgadores do caso de Jacopo Foscari (os inquisidores e o Conselho dos Dez) o trataram enquanto réu com um rigor desmesurado.



 
O Conselho dos Dez. O Conselho dos Dez propriamente dito e com este nome é criado justamente em 1310, na sequência de uma tentativa de golpe de Estado urdida por umas famílias patrícias. Viria depois a ser o Conselho dos Quarenta e depois ainda o Gran Consiglio, o grande conselho.
                                                          
                                      

 
Segundo os comentadores, porém, o seu número de dez ou de quarenta ou de quantos fossem, não significava necessariamente que tal órgão fosse uma assembleia popular muito representativa. Parece que não passava de uma espécie de clube político muito fechado, investido de poderes legislativos absolutos, que investigava, instruía, condenava e executava, e ainda habilitado a outorgar títulos de nobreza e de cidadania – além de ter a prerrogativa de nomear a seu bel talante para todos os empregos da administração pública.
O Conselho dos Dez dispunha dos orçamentos de Estado, dos dinheiros públicos e dos exércitos da Sereníssima. No seu seio estavam os inquisidores. E foi o Conselho dos Dez que humilhou os Foscari, provavelmente por algumas contas antigas.

 
Mas o veneziano acabara por se conformar sem murmúrios com o poderio decisor desse Conselho dos Dez. O braço policial dele era comprido, muito comprido, e mais, e no caso de algum suspeito escapar, ficava a família para pagar a culpa, e o Conselho dos Dez não fazia cerimónias com essa família. O Conselho dos Dez persistia em provar que as suas decisões não eram motivadas pela paixão ou pela parcialidade, mas pela justiça, e não houve Estado italiano renascentista que tivesse mais poder e autoridade sobre os seus cidadãos do que Veneza. Uma autoridade que os poderes não se contentavam que fosse secular e policial, mas também, e talvez sobretudo, moral.


                                          
 
Jacopo Foscari jaz no exílio. Mas a certa altura aparece uma carta.

 
Aparece uma carta assinada por um certo Nicoló Erizzo. Erizzo confessa-se autor do homicídio de Ermolao Donato, um dos crimes pelos quais Jacopo Foscari tinha sido condenado. Ao saber disso, o octogenário doge dá graças aos céus. Vai finalmente ver o filho em liberdade e completamente ilibado.
Já há senadores dispostos a rever o processo e a libertar Jacopo. A opinião pública pode começar a mudar de parecer. Por mais que odeiem Foscari, os senadores sentem-se constrangidos a considerar aquela carta como prova da inocência de Jacopo. Quanto mais não seja para fazer ver ao povo que a justiça veneziana funciona; e funciona quanto mais não seja pela admissão de um erro na investigação e na instrução do processo. 
 Jacopo, encarcerado longe de Veneza é que nada sabia do que se estava a passar.
Quando a boa nova da graça concedida pela justiça de Veneza chega ao cárcere, Jacopo Foscari estava morto. Morrera de desgosto.

 
Mas também  a solidez política e institucional de Veneza parece que não encontrou similares em toda a península itálica. Burkhardt diz que tal se devia a um conjunto de circunstâncias impossível de encontrar noutros estados. Veneza era uma cidade inatacável, que se mantinha sóbria nos negócios estrangeiros. Que se pusera de parte na maior parte das querelas que afectavam outras cidades. O apoio de Veneza era caro e as alianças que celebrava eram tácticas e no geral de pouca duração. Era um Estado altivo, aristocrático e desdenhoso dos problemas dos outros.

 
Mas, voltando ao nosso assunto, Loredan, o inimigo de Foscari continuava a conspirar na sombra contra o velho doge que agora vivia muito retirado, quase não aparecia em público e já pouco atendia aos negócios do Estado. Uma comissão de senadores, convocada e comandada por Loredan apresenta-se ao doge e convida-o a abdicar. Porque razão? Pela sua muita idade. Pelo seu cansaço. Pelos desgostos que ultimamente sofrera. O velho Foscari recorda-lhes que já por duas vezes quisera abdicar e que eles não lhe tinham aceite o pedido. Mas percebe que nada há a fazer. Sabe de experiência própria que as decisões do Conselho dos Dez são irrevogáveis e por isso a sua revolta é mais intensa. Porque, enfim, também ele pertencera ao mesmo Conselho dos Dez.
O velho doge atira-lhes então em cara com a sua obra em prol do engrandecimento da sereníssima república:
- É esta a graça iníqua que  concedeis ao velho guerreiro? É com isto que premeais o valor e a fé que fizeram expandir o nosso  império? Condenastes-me um filho inocente e agora quereis obrigar-me à desonra da abdicação?
É assim mesmo a política, senhores.

                                                            
 
Aliás, como aos outros doges de Veneza, a Foscari tinha sido imposto o juramento de morrer em funções.
O Conselho dos Dez é que não se demove. As insígnias do poder são arrancadas a Francesco Foscari, o anel, o manto, o corno. É forçado a deixar, e depressa, o palácio ducal.

 
O poder, o poder! Estranho e desvairado estado de espírito é o do poder em todos os tempos. O poder que deveria ser exercido no interesse dos homens, que de facto é, mas só de alguns desses homens. Inevitável. Seja qual for o regime.
E a liberdade e a autonomia de um poder também não deveriam ser exercidas à custa dos justos interesses de outros homens ou das regras da sociedade por que esse poder se rege. O pior é que hoje em dia cada vez mais interesses injustos, ou até perversos, são, por conveniência dos lobbies, considerados justos. E a questão do poder político colocou a questão da intervenção de cada homem no exercício desse poder. Uma questão de moral.
Spinoza e Locke, ou Montesquieu, ou Rousseau, postularam a interferência directa ou indirecta de todos no poder. A interferência só de alguns foi considerada, por exemplo, por Aristóteles, por Gobineau, por Marx e Lenine; enquanto Séneca, Maurras ou Mussolini sustentaram que o poder era para manter independente dos destinatários dele. Mas outros não estiveram com mais aquelas e e afirmaram que, lá por causa disso, o melhor ainda era destruir o Estado: Proudhon, Bakunin. 
                                                                    
                                                   
                                                              

Diz a História real destes factos venezianos que a 31 de Outubro (ou 1 de Novembro) de 1457, uma semana depois da sua abdicação, ao ouvir soar os sinos que anunciavam a eleição do seu sucessor (que viria a ser Pasquale Malipiero), Francesco Foscari teve uma forte comoção, o coração não lhe resistiu e morreu. E diz o célebre erudito destas coisas do Renascimento Italiano, Jakob Burkhardt, que o penoso martírio moral sofrido pelo doge Francesco Foscari perante o olhar de toda a população foi exemplar das terríveis vinganças políticas muito possíveis, ou muito mais possíveis em estados fortemente aristocráticos. 


Os funerais foram de esplendor, como se Foscari ainda fosse uma cabeça coroada. O novo doge acompanhou o préstito vestido apenas de senador. O grande inimigo dos Foscari, Loredan, escreveria no seu livro de assentos: os Foscari pagaram-mas. 
Foscari foi um dos raros doges a quem foi retirado o cargo,  acusado de cansaço evidente e reclusão demasiada no palácio que manteve o seu nome, Ca' Foscari, hoje sede da Universidade de Veneza.
E a ópera de Verdi, I Due Foscari, é estreada em Novembro de 1844 no Teatro Argentina, em Roma.

                                       


 

sexta-feira, 26 de abril de 2013


              A MORAL DE BAYREUTH – A ESTÉTICA

        


         Terminara a II Guerra Mundial. Para um tão singular empreendimento artístico como o Festival de Bayreuth outra guerra estaria para começar, uma guerra democrática, vamos lá, de sobrevivência moral, de redenção dos horrores, de recuperação de prestígios. Impunha-se uma profunda revisão estética – para não falar da inevitável actualização dos compromissos políticos. Impunha-se a tarefa de revalorizar aos olhos do mundo da cultura a intemporalidade de Wagner, e por consequência da missão do festival.
         A Europa não seria mais a mesma. E Bayreuth ainda significava uma legitimação dos pesadelos à mais excelsa escala espiritual e cultural.
Bayreuth fora parte de uma poética do nazismo. Reabilitar Bayreuth poderia ser também reabilitar a cultura alemã tão negregada naqueles tempos, tão conformada aos valores do racismo militante, do militarismo e do genocídio. E uma reabilitação da cultura alemã passaria sem a mais pequena sombra de dúvida por uma reabilitação de Wagner – da obra, que não do homem.
Empresa de ciclópicos contornos, quando tantos atribuíam a Wagner, à sua música e ao poderoso pensamento que lhe dava forma, boa quota parte da paternidade moral e cultural do nazismo agressivo e devastadoramente anti-semita.

Bayreuth, já se vê, era um teatro especial. Mais do que um teatro, era uma instituição e um templo do espírito germânico, e com uma estética específica e bem evocadora dos fastos hitlerianos. E tudo isso num mundo comunicacional, cultural e artístico em que os judeus nunca tinham deixado de pontificar moralmente, e agora com posição reforçada. Bayreuth era uma catedral onde, se não era permitido mudar de religião, haveria ao menos que tentar o (como agora se diz) branqueamento dessa religião reformando-lhe as liturgias.

Recuperar Wagner para a memória do mundo era recuperar a validade da sua música para os valores do pós-guerra, do parlamentarismo, da democracia representativa, do Plano Marshall, do mercado livre. Era, enfim, e por meio de uma formidável renovação estética, recuperar na sua música um universalismo que alguns punham vigorosamente em causa, de tão associados que estariam à tragédia do nazismo e do holocausto.
        
                                            

E dá-se a fundação do que se passaria a chamar o Novo Bayreuth. E, mais difícil ainda, será na família do próprio Wagner que germinarão as coordenadas reabilitadoras.


A partir de 1951, por acção dos irmãos Wieland e Wolfgang Wagner, netos do mestre, irrompem no imaginário dos melómanos menos renitentes as novas possibilidades de ouvir e ver o drama wagneriano sem demasiados agravos de consciência. No sagrado espaço de Bayreuth inaugura-se a alternativa redentora, o experimentalismo, a vanguarda estética (doravante a abarrotar de Freud), despojada tanto das cangalhadas naturalistas de Oitocentos como das comemorativas pompas nazis. Afinal, Wagner ainda poderia ser uma hipótese numa Europa devastada, mas, enfim, democratizada.

Toca a Wieland Wagner mostrar ao mundo novo do Ocidente a valência inesgotável da obra de seu avô, arrojando para longe da sagrada colina as concepções passadistas em favor da estilização. Wieland deixa Bayreuth e a cultura wagneriana no divã da psicanálise, instaurando a luz como elemento central de uma dramaturgia sobrecarregada. Dessacralizando o drama wagneriano dos panejamentos dogmáticos, Wieland vai acabar por sacralizá-lo de um modo, este sim, verdadeiramente cerimonial, litúrgico, acentuando-lhe as religiosidades virtuais pela esculturalização e pelo hieratismo dos oficiantes, os cantores-actores.

                                              

Para um teatro vivo e actuante não podemos conceber um estilo que não seja um estilo contemporâneo, disse ele, antes de pôr o seu genial avô no íntimo das consciências artísticas europeias mais insuspeitas e menos susceptíveis de serem confundidas com a ideologia maldita. 
Por outro lado, perde pontos para a velha guarda tradicional, encabeçada pela própria mãe, Winifred, racista e nazi até mais não. Winifred começa a duvidar da qualidade do sangue daquele seu estranho filho, de tal arte é a desfaçatez com que ele consuma a traição aos mais caros princípios do genial avô.
O celebrado maestro wagneriano Hans Knappertsbusch, em carta a Wieland Wagner, diria: a minha fidelidade a Wagner é absoluta, e maior, infinitamente maior do que a sua, Wieland. De modo que não sei se no quadro do novo Bayreuth ainda poderei ser útil. Em qualquer dos casos, sinto muita pena ao verificar que Wieland Wagner abandona o caminho único que conduz a Richard Wagner.

Wieland Wagner foi a mais importante referência inovadora na estética teatral de Bayreuth. A ele seguir-se-ia (em minha opinião) como mais marcante das renovações estéticas a do francês Patrice Chéreau, que em Bayreuth mostrará, já nos anos 70 (e com Pierre Boulez na direcção  musical), uma Tetralogia que em muitos momentos semelhará um drama burguês, de personagens ataviadas a época da Revolução Industrial, e inspirado em escritos do próprio Wagner datados do tempo em que concebia os seus libretos, e assim repondo, da mitologia wagneriana, uma outra forma de contemporaneidade ao sublinhar-lhe a óbvia categorização histórica.

                              

                                                    
Mas a verdade é que Wagner estava nesse tempo a compor uma nova música. Wagner tentava colocar sobre o tablado uma nova visão teatral, inconfundível e futurista. Wagner ansiava ter como público um novo Homem criado por  uma revolução. Wagner fazia construir novos instrumentos musicais. E no entanto – ou por isso mesmo – do ponto de vista técnico-teatral, há quem diga que essa tão aguardada estreia absoluta da Tetralogia num espaço cénico para ela expressamente construído, foi um desastre – no mínimo uma irrelevância – quando cenários e maquinaria não funcionaram convenientemente; quando houve sempre um pano de boca que subiu ou desceu tarde ou cedo de mais; quando foi visto um ajudante de maquinista a safar-se de cena no último momento com o seu martelo e balde de pregos em punho; com luzes, guarda-roupa e adereços aflitivamente medíocres; com cantores afinal a exibirem os convencionais vícios histriónicos – com o primeiro Wotan, o barítono Betz, a perder ridiculamente o anel, símbolo do seu poder e da sua fortuna.


De sublime? A música. 
Wagner inventara, a vários títulos, é certo, um novo drama lírico; ou, como ele gostava de lhe chamar, a música do futuro. Mas a estética teatral que presidiu ao primeiro wagnerismo não foi muito mais do que um repositório de naturalismos desvairados e de concepções cenográficas estafadas e tributárias em excesso de um romantismo a essa hora já bastante dessorado.
E a inovação – não sei se pseudo-inovação – que se seguiu à morte do mestre foi tímida, tolhida pelo conservadorismo da primeira geração dos herdeiros – os carnais e os espirituais. É, como já disse, no festival de 1924 que o filho único, Siegfried, se permite, e com todas as cautelas, arriscar alguma coisa parecida com inovação. Cenários tridimensionais. Acaba-se com a luz de gás e instala-se iluminação artificial. Porém sem outras rupturas  com a mais reaccionária tradição.
Mas a contestação dos lados da velha guarda não  impediria Siegfried Wagner de contratar, em 1927, um cenógrafo pouco convencional, de seu nome Kurt Söhnlein. Como também não impediria a conservadoríssima Winifred de contratar, em 1934, por entre a ganga estética do nacional-socialismo, um homem chamado Alfred Roller, já então famoso, e que viria mais tarde a influenciar a revolução de Wieland.


 
                                                              

Mesmo assim, Wieland, o reformador da estética de Bayreuth, não despreza as contribuições que ainda em anos nazis tinham sido acrescentadas ao wagnerismo. Em especial no domínio da luz. Wieland reiluminava a obra do avô e sujeitava-a sem complexos de culpa ao penetrante foco que a vai repropôr à discussão nos areópagos internacionais, que lhe vai emprestar validade para os novos tempos, permitindo-lhe nova respiração, nova visibilidade, e impressionando até os espíritos mais progressistas.


Wieland prestava atenção aos conceitos de Adolphe Appia quando este postulava (já em 1895) que todo o objecto se torna plástico apenas em função da luz que sobre ele incide, por ser a iluminação a paleta de cores de um encenador.  

Fundar em Bayreuth uma nova moral. Apagar em Bayreuth as evidências sinistras dos anos alemães mais recentes. Era esse o escopo principal de Wieland. E em 1951, com uma nova Tetralogia e com Parsifal, dava ele o primeiro passo para um movimento que ultrapassava a simples inovação cenográfica. Estava na hora da desnazificação de Bayreuth. Estava na hora do exorcismo dos demónios.
               

E como Bayreuth era, e ainda é, um negócio familiar, resgatando Bayreuth à História do nazismo, Wieland não se poupava a esforços para se resgatar a si mesmo e à sua família da culpa imperdoável de um muito estreito e amigável conluio com Hitler e o seu regime. É ver as memórias de um dos últimos descendentes de Wagner, Gottfried, que afirma sem rebuço que todos os da família, sem excepção (o próprio Wieland incluído), sempre foram, e continuaram a ser pelos tempos democráticos, renitentes e convictos nazis. Nem que fosse às escondidas e com uma linguagem familiar própria, e críptica, mas sempre evocativa da saudosa memória do seu tio Wolf – o próprio Hitler.


De todo o modo, Wieland, enquanto director artístico do Festival de Bayreuth, sempre diligenciou andar esteticamente a la page, sempre na crista da onda de tudo quanto era vanguarda artistica apadrinhada pelas esquerdas. 
Basta considerar o Tannhäuser de 1961, quando contrata Maurice Béjart e respectiva companhia - que deixaram em Bayreuth inolvidável memória; ou quando contrata para o papel de Venus – suprema audácia no alto bastião ariano – uma jovem cantora americana negra ainda pouco conhecida, Grace Bumbry.

Reabilitar Bayreuth pela esquerda, ou pela integração racial, era o mesmo que dizer à opinião pública mundial que Wagner não poderia de modo algum ser apropriável por uma ideologia, por mais total, salvífica, sanguinária, anti-semita que ela fosse; que a sua mensagem era tão universal e aglutinadora como universal era a mitologia de Eros, e que, por isso mesmo, tão bem ficava na figuração de uma cantora negra como na de uma branca. 

E um dos mais fortes apelos que a nova moral de Bayreuth faria à consciência asseada e progressista da nova Europa culminaria com a contratação de Pierre Boulez, exemplo acabado, e talvez raro na época, de músico alinhado pela esquerda pura e dura – e com quem Wieland não pôde colaborar tanto quanto desejava, por razão da doença que em breve o mataria, aos 49 anos.


A experiência mais óbvia de desnazificação teatral perpetrada por Wieland Wagner foi a produção de Mestres Cantores de 1956: uma encenação despojada dos signos que haviam incendiado as imaginações nacionalistas dos anos hitlerianos, esquematizando a sugestão das ruas de Nuremberg e diluindo a carga mítica do famoso sabugueiro. Valeu-lhe remoques da crítica: preço demasiado irrisório para o quanto, em termos familiares, estava em causa.

Wieland não esquecia que para bem comunicar a essência e complexidades do drama wagneriano havia que levar em atenção uma primeira coisa: o primado da música. À cenografia competia deixar no imaginário do espectador o âmbito de expansão da absoluta forma musical; e à encenação conviria não ser uma duplicação do que essa música, e o texto literário que lhe subjaz, possam exprimir, e sim um complemento do entendimento essencial.


Para Wieland, a luz, e a cor que dessa luz pode jorrar, funcionariam como uma alegoria do inconsciente. Wieland pretendia espectacularizar o inconsciente, tomando como fundo a perturbação  musical criada pelo augusto avô.
Um exemplo: o Tristão – os corpos a fundirem-se nos elementos míticos e intemporais da cena, sob uma iluminação difusa que os faz flutuar, suspensos na noite, fora de toda a contingência terrena. Ou política.
  
                     

Penso que reside na luz a grande magia de tudo.
E a luz desencadeia a cor. E a cor descerra a cortina dos mais escusos territórios da alma. Wieland centra a visão wagneriana nos imponderáveis do inconsciente dos heróis. Há bons e maus objectos interiorizados na psique das personagens. O vermelho violento que decorre da paixão de Isolda, em conflito com a crueza do verde que se projecta no ciclorama, testemunho do ódio inconsciente da mesma Isolda pelo ser amado.



Há bons e maus objectos interiorizados pela alma alemã que é preciso exorcizar. E desvenda-se o azul projectado no proscénio, o gélido azul da noite de todas as noites de teatro, a noite desse 2º acto de Tristão que virá a explodir no Nada.
Estatismo do gesto; imobilidade escultórica dos corpos. Pode exaltar-se uma premonição. Podem conter-se, sufocando-os, os transportes da paixão e da inevitável insensatez, contexto, somente, do movimento feroz de um inconsciente perturbado e relutante em comunicar-se, traço brutal do gesto suspenso e largo que completa a imobilidade e acrescenta memória ao sopro divino das estátuas.
Tudo se pode interpretar á luz da psicanálise, e nos nossos dias a psicanálise ocupa o lugar que outrora foi dos contos de fadas, das religiões.
Ou: por detrás de todo o drama estão os arquétipos. E parece-me profunda a interpretação segundo a qual Tristão era de facto filho do rei Marke.
Ou ainda: a eterna luta entre pai e filho, o mais célebre conflito da Humanidade depois da interpretação de Freud, julgo-a infinitamente mais trágica e mítica do que o adultério de Tristão com a mulher do seu tio.
  Wieland propunha montagens sugestivas de tudo quanto não estivesse na música nem no libreto. Em Tristão e Isolda, Wieland avança para uma moral complementar, se se pode dizer. Tristão leva a noiva ao rei Marke, sendo simultaneamente do rei Marke um vassalo. E se, no 1º acto, Wieland entende reforçar os ombros do fato do herói, fazendo-o permanecer junto do fálico mastro do navio, sugerindo-lhe o masculino poder, a vontade de penetração violadora, no 3º acto, esse reforço simbólico do poder é-lhe retirado do guarda-roupa. A união física é para Tristão e Isolda uma situação inssatisfatória, visto que os move uma aspiração essencial de unidade absoluta entre dois seres.
Nem Tristão nem Isolda aspiram na verdade à consumação do seu amor numa esfera terrena. A situação humana fundamental que me fascina é esse destino que obriga à existência entre o amor e a morte de uma relação tão directa quanto misteriosa. Eros e Thanatos.


“Onde estamos?”, perguntará Tristão. “Perto do fim”, responde Isolda.
Tem que se dizer que Wieland Wagner venceu todas as suas batalhas. O mundo livre do pós-guerra despertou e deu-se a discutir sem complexos e sem culpas um Wagner desnazificado e um Festival de Bayreuth mais culturalizado do que politicamente salpicado de sangue.

O universo wagneriano e a moral de Bayreuth, com Wieland Wagner, fosse por sua convicção artística, fosse por mera estratégia de preservação familiar – ou pelas duas coisas – veio a ser reequacionado à luz de uma contemporaneidade democrática. E com a subida ao poder em Bayreuth da última geração dos Wagner tem sido objecto de infindáveis experiências vanguardistas – e até brechtianas (Heiner Müller).
Nas experiências, por exemplo de Otto Klemperer de 1927, amaldiçoadas pela hierarquia familiar, viu Wieland Wagner a hipótese de sobrevivência e vitalidade cultural futuras para a obra de seu avô. Viu uma saída para a modernidade. Viu a oportunidade de uma redenção política.
   No final, a Isolda de Wieland Wagner estende os braços ao infinito. A luz destaca-lhe a materialidade do corpo, salva-a da ameaça das sombras do esquecimento que a circundam. Depois, a luz inunda-lhe somente o busto. Até aos compassos finais, quando se lhe concentra no rosto, intensamente, ferozmente.
Uma transfiguração, como propusera o mestre. Ou o doce e definitivo reencontro de Isolda com o cadáver de Tristão. Ou a descoberta de uma pulsão de eternidade sobre os êxtases da morte, o fôlego humano e a vida transcendente da música de Wagner em ambíguo triunfo sobre barbárie da História – o cheiro cadveroso das valas comuns de Treblinka, as câmaras de gás de Auschwitz…  
(À guisa de conclusão, diria que em Portugal, a linha estética de Wieland Wagner, tanto quanto posso saber, não teve expressão particular na casuística da programação wagneriana dos tempos do pós-guerra.  O que não quer dizer que não possa ter mais ou menos influenciado o trabalho de um ou outro encenador de terceira ordem  dos que se encarregaram de encenar Wagner em S. Carlos. 


Tivemos em S. Carlos, isso sim, alguns interessantes trabalhos encenográficos do filho de Wieland, Wolf-Siegfried Wagner, que nos visitou assiduamente pelos finais dos anos 70 e princípio dos anos 80. Um Wolf-Siegfried a meu ver algo distanciado das propostas estilísticas do pai e mais próximo das concepções de Chéreau, historicistas, materialistas dialécticas, talvez, se assim lhe quisermos chamar. O que pode ter sido, para o filho do renovador da estética de Bayreuth uma bela maneira de muito freudianamente renegar a família, matar o pai.)