segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016


             ZITA CONTRA ZÉ DOS BIGODES


                    
Bebia a bica no Apolo 70, foi vista a sair do Ginásio Clube Português. Logo, o Partido trazia-a debaixo de olho.
Só por isso? É de crer que não. Também foi à Suíça sem dar cavaco à direcção – não percebi se à pastelaria se ao país mesmo; também andava por ambientes hostis ao Partido, a casa de Helena Roseta, o Bananas, o bar da Natália Correia, também casava com um médico reacionário e rico – se fosse revolucionário e rico também eu queria, mas é difícil arranjar; se fosse reacionário e pobre era como o outro, suportava-se, pelo menos era pobre…
 
 
Mas também tinha relações regulares e dava apoio e razão aos Seis que levantavam a voz contra a direcção, e a esses passava informações sobre o que se dizia no mais alto nível de decisão do Partido.
Era demais. Se era tudo verdade não sei, mas que era de mais era, anda que não fosse verdade.
 
 
Ainda que não fosse verdade, era tomado como verdade que ela contribuía para alimentar uma campanha contra o PCP, inserida na “ofensiva ideológica universal do imperialismo e na sua tradução portuguesa”.
Chamada a palácio pelo secretário-geral. Que se pusesse à tabela. Ficava sabendo da existência de um processo de acusação contra ela e que o Partido só espera dela uma confissão.
                  
                                                                             
 
É julgada pelo comité central e demitida de funções na comissão política. A expulsão do Partido não tardou muito.
       Nos alfarrabistas de rua, num passeio matinal de sábado pelo Chiado, encontrei por 2 € um livro de Zita Seabra. O Nome das Coisas – Reflexão em Tempo de Mudança. E que por acaso vinha à conversa que a biografia de Álvaro Cunhal me tem suscitado.
 
 
Ao invés de outras eras, em Janeiro de 1988, tempo de imprensa livre e especulativa, a crise interna do PCP passou para a ordem do dia com a divulgação de um documento da autoria de um grupo de destacados militantes que passou a ser chamado de Grupo dos Seis.
 
 
O documento foi enviado à direcção do Partido. Apontava para a crise interna do PCP e preconizava as saídas para ela: voto secreto e listas com mais candidatos do que lugares disponíveis para permitir a escolha; limitação do número de mandatos no Partido; renovação dos corpos dirigentes; fim ao secretismo e fomento da transparência e da livre circulação de ideias.
Parecia pouca coisa. Mas não era.
E não era porque no Partido não seriam admitidas críticas ao que se passava no tempo presente. Não era essa a tradição dos partidos comunistas, a começar pelo PCUS. A crítica teria sempre que ser retroactiva. O que pudesse haver a criticar na vida de um partido comunista teria de se situar no passado. Krutchev criticava o falecido Stalin; Brejnev criticava o ainda então vivo Krutchev. Gorbatchov estava por essa altura (1988) a criticar o falecido Brejnev. O presente dos partidos comunistas era indiscutível, perfeito, não se lhe tocava para não dar trunfos ao inimigo, o pretérito é que seria imperfeito.

       Ora adeus, a crise dos partidos comunistas vinha anunciada desde há vinte anos, desde o infausto caso da Checoslováquia. Uma crise que nenhum colectivo dirigente poderia ter evitado, quanto mais não fosse por decorrer de vicissitudes da própria vida, do tempo e seus desgastes, da própria História.
       A propaganda existe para fazer crer à opinião pública como realidade o que pode não passar de projecto, ou de desejo, e estando aí incluida a possível ocultação da realidade tal como ela de facto é. A propaganda pode usar mitologias arcaicas, actualizando-as artificialmente na intenção de criar as mitologias modernas.
      

     
      Em 1988, o PCP ainda se propagandeava forte e coeso quando não o estaria tanto assim. O PCP propagandeava-se firme e inamovível como sempre na defesa dos interesses dos trabalhadores quando a grande massa dos trabalhadores o subalternizava e diminuía a cada consulta eleitoral.
 
 
      O PCP mantinha um programa de processo revolucionário ainda em curso e ainda a caminho do socialismo já nos anos 80, já quando, e por força da ilusão capitalista-liberal, ninguém queria ouvir falar em revoluções nem em socialismos.
       Estou como dizia o outro: de vitória em vitória até à derrota final.
       O PCP não reconhecia as derrotas do socialismo no mundo, os erros, os atrasos sociais e económicos. Mas como poderia reconhecer? Se os reconhecesse vibrava mais uma machadada na precaridade da sua razão de existir. O PC húngaro, por exemplo, então no poder, procedia a restruturações que a direcção do PCP via como passos seguros para uma restauração capitalista. As massas trabalhadoras na Roménia sofriam fome e privações diversas, uma evidência que o PCP negava. E por aí fora.

Mudar o Partido!, clamavam os Seis.
Mudar o Partido? Que é lá isso, meninos?, reagia a direcção. Mudar para quê, para onde? Social-democracia?
 
No ver dos dirigentes do Partido a rapaziada contestatária ia aos arames porque a direcção não estava virada para dar de mão da sua natureza de classe, operária. A direcção do PCP olhava de través a perestroika? Olhava. Então, se assim era, conviria aos contestatários acusá-la de ainda cultuar a memória do falecido Zé Staline – ou Zé Serralheiro, ou Zé dos Bigodes, como popularmente lhe chamavam em tempos de guerra.
As alegações da direcção do Partido em resposta à contestação interna teria, vamos a ver, alguma lógica. Pretendiam os contestatários mudar o Partido, mas mudar num sentido que o levaria a transformar-se noutro. Um sentido que lhe roubaria o sentido de partido revolucionário, de partido comunista, de partido vanguarda do proletariado. Mas isso era passado. E para os contestadores, o PCP não poderia mais continuar a ser uma figura patrimonial do passado. Teria de ser um motor das mudanças do futuro.
 
                                                                                                      
 
       Conversa. Acho eu. Os contestatários não queriam salvar o PCP enquanto partido comunista coisíssima nenhuma. Acho eu. Os contestatários queriam mesmo acabar com o PCP enquanto partido comunista. Lúcidos como eram, não lhe apercebiam lógica enquanto partido revolucionário. Lúcidos como eram, percebiam que o socialismo era um combate perdido. Lúcidos e oportunistas, também, queriam montar o mesmo cavalo mas disfarçado de outro cavalo.
 
      
 
Património político-cultural da resistência num passado que historicamente se ia distanciando era só o que o PCP, partido revolucionário, poderia ser, continuar a ser, posto que o capitalismo florescia e as massas não pareciam muito interessadas no socialismo.
 
 
       Por outro lado, razão tinham os contestatários ao vaticinarem que o histórico PCP estava a ser ultrapassado pela marcha inexorável da História. E estava. Os materialistas históricos não estavam (não estariam) a interpretar convenientemente o sentido de uma História de que se arrogavam ser guardiões, uma História que os relegava justamente para a condição de relíquia dos amanhãs cantantes.

                                                                       
       O Partido perdia força entre os jovens e entre os trabalhadores. O Partido estaria a perder militantes, a perder funcionários, a perder deputados, a perder até dirigentes. Impunham-se medidas imediatas para inverter a realidade factual e encontrar saídas.
 
 
       Que medidas? Que saídas?
       Seguir o exemplo do PCUS, glasnost, perestroika, busca de uma razão de ser, de existir? Mas no caso do PCUS era continuar a ser e a existir para um partido que estava há 70 anos no poder numa das maiores potências mundiais e cujas possíveis transformações teriam reflexos nos contextos políticos globais. Coisa muito diferente do caso do pequeno partido comunista  de um país pequeno, pobre, periférico, mal alfabetizado e em franca aceleração capitalista.
 
 
       Por causa das tentativas de democratização dos países e partidos comunistas é que aconteceu o que aconteceu em Praga (não será possível o desenvolvimento da democracia na nossa sociedade se os princípios democráticos não são aplicados na vida interna do próprio partido), e vinte anos passados a divergência estava ainda mais viva, propiciava a perestroika.
 
                                                              
 
       Ora pensando à distância no que deu a perestroika, e no que aconteceu à URSS e ao mundo comunista, tem de se concluir que, do ponto de vista dos interesses e dos valores da mesma URSS, a invasão tivera a sua razão de ser.
       Os actualizados contestatários da direcção comunista portuguesa em 1988 enchiam a boca de glasnost e de perestroika, o último grito da moda política da esquerda europeia. Mas as miraculosas soluções que a perestroika procurava para o futuro do socialismo não foram encontradas – a ser verdade que as soluções que procurava eram mesmo para o futuro do socialismo, do que também será legítimo duvidar.
                                 
 
       A perestroika era o último fôlego da desestalinização. Que o PCP fazia por ignorar ao entender que abria portas largas, também, ao capitalismo – e abriu, nisso tinham eles razão, acho eu. Porque toda a acção de democratização abre portas amplas ao capitalismo; e o capitalismo vive melhor em sociedade aberta (escancarada) do que em ditadura. Está mais que provado. A perestroika era a democratização da sociedade soviética. Democratização, liberdade empresarial, negócios, lucro, dinheiro fácil, corrupção desenfreada, crime, máfias. Foi o que foi.
 
 
É que em mais de meio século de existência a URSS não conseguira fazer nascer o Homem novo, ideal, solidário, sacrificial em prol do bem comum.
O proletário despolitizado pensava na sua ascensão de classe, tornar-se pequeno-burguês (melhor ainda se fosse grande burguês), boa casa, bom carro, belas férias. Para o Homem comum, e velho proletário, socialismo era sistema de igualdades em que o que havia era a distribuir por todos e assim todos ficariam económica e socialmente iguais, é verdade, mas pobres. Enquanto que em capitalismo o pobre (o proletário) podia sonhar com a chance de, pelo trabalho, pela engraxadoria de chefes e patrões, pela falcatrua, ou pela sorte na lotaria, poder vir a tornar-se burguês, ou até abastado, ou até rico, situação impossível em socialismo.
 
 
Não existindo em quantidade importante o Homem novo e perfeito e socialista, resultaria evidente que a democratização da sociedade socialista (voto secreto, abertura da imprensa, denúncia de violências antigas e modernas, libertação de dissidentes, anseio de novas aragens políticas) abria facilidades ao Homem velho, egoísta, oportunista e ganancioso, e sempre a caminho do capitalismo.
O declínio dos partidos comunistas europeus era uma evidência. E para obviar a esse declínio estava aberto e livre o debate na procura de soluções que fizessem reverter a situação. Soluções que nunca foram encontradas e debate que por cá o PCP evitou, não valia a pena, o problema não tinha solução.
 
 
Os PC’s da Europa capitalista, encostados à parede do seu impasse, foram desaparecendo, ou descaracterizando-se, perdendo identidade e influência, mudando de nome, abatidos pela tal imparável marcha da História.
Mas o PCP ficou. Ficou partido comunista como sempre fora, revolucionário, vanguardista. Porém, à nora, sem saber que revolução fazer – ou continuar a fazer -, vanguarda de uma rectaguarda cada dia mais reduzida.
 
                                                                                                
 
A imagem da URSS estava desgastada até mais não junto dos partidos comunistas ocidentais e da opinião pública, sem, e sintomaticamente, nunca se ter desgastado no seio dirigente do PCP. Essa é que é essa…
A indesejável democratização interna do PCP faria dele um vulgar partido social-democrata e eleitoralista a entrar no jogo da indesejável democracia burguesa, a funcionar num quadro de referenciais capitalistas. Claro que sim. Poderia até opor-se a algumas medidas liberais na economia, sim, mas sem ter na manga contrapartidas aceitáveis.
 
 
O óbice à democratização interna do PCP eram as memórias, o subconsciente colectivo da luta antifascista clandestina. Um partido que nos anos 40 e 50 fora vítima de inqualificáveis traições e se vira obrigado a defender-se de alguns dos seus mais categorizados militantes – e até a executar alguns, segundo todos os indícios. Abatidos na sua moral pelas condições da rigorosa clandestinidade, vivendo na desesperança de lutar contra uma ditadura que parecia cada vez mais solidamente instalada, alguns tremeram, quiseram retomar a vida normal e pagaram o preço entregando-se e entregando muitos camaradas à PIDE.
 
                                                                       
 
Estava-se bem contra o fascismo, disseram alguns, depois do 25 de Abril. E com certa razão, do ponto de vista da esquerda mais radical. Havia um inimigo. Não há melhor do que um inimigo para aviventar certos organismos – até a CIA abanou quando caiu o Muro de Berlim: estavam a roubar-lhe o melhor inimigo.
Para combater um poder ditatorial saído de uma revolução fascizante, fechado, repressivo, censório, só um partido ultra fechado, revolucionário, com práticas censórias e repressivas. É esse partido que só funciona em razão plena quando tem para defrontar um inimigo mortal. Se o inimigo desaparece, o partido lutador e altamente combativo perde a orientação.   

 
Encontrar para esse partido a quadratura do círculo, quer dizer, o modo de se exercer como partido comunista revolucionário mas em sociedades abertas, de economia liberal ou liberalizante e sem inimigos políticos (só com adversários) era a grande questão para o PCP ainda em 1988.
 
                                                                                                    
 
Questão nunca resolvida, parece-me. Democracia interna, circulação livre de ideias e unidade partidária na acção e no discurso seriam, a meu ver, estados de ser que se anulavam entre si.
Havia alguma coisa de religioso na vida dos partidos comunistas. A fé, primeiro que nada. A fé na possibilidade e um socialismo feliz suplantava muitas vezes a avaliação das realidades ingratas e desembocava numa burocracia hierarquizada a níveis pouco menos do que clericais.
Espezinhados os conceitos e as práticas estalinistas (infalibilidade dos comités centrais, recusa terminante do pluralismo das ideias, rispidez disciplinar máxima – sem recusa do assassínio -, eternização dos dirigentes, por exemplo) o que restaria de sentido aos partidos comunistas?
 
 
Que sentido para o marxismo-leninismo no quadro das sociedades abertas, capitalistas?
 
 
Que sentido para as noções de classe operária, de proletariado, de massas?
 
 
Não havia sentidos recicláveis para certos conceitos. Esses conceitos aspirariam a uma mais ou menos plena realização só num quadro de combates de vida ou de morte.
O confronto com a crueldade do tempo deu em angústia nos principais oficiantes do credo socialista/comunista. Como disse, não tinham logrado criar o Homem novo. O proletariado estava-se nas tintas para a eventualidade da sua própria ditadura. O proletariado queria deixar de ser proletário, queria fugir a sete pés das privações igualitárias, queria sonhar, esperançoso, com a vida dos capitalistas.
 
 
       Que o PCP não era um partido eleitoralista. Que com votos não se iria a lado nenhum. Estes, segundo Zita Seabra, eram estribilhos para consumo interno do Partido.
E de facto, como partido eleitoralista, o Partido só tinha trabalho e disciplina social para oferecer numa campanha eleitoral. E com votos ir-se-ia a muitos outros lados, porém só ilusoriamente.
 
 
Era bom saber onde quereria ir o PCP, e como. Ao socialismo? Só pela luta armada, para acabar o que faltava acabar do 25 de Abril, a revolução democrática nacional e o salto para o socialismo. Mas tudo isso depois de consumada a plena integração na Europa capitalista? Bem… só passando novamente à clandestinidade.
       Zita Seabra toca no ponto do vazio político. Em 1988 o PCP, e depois de todas as transformações políticas e económicas nacionais e internacionais que ele e os seus congéneres não conseguiram evitar, viu-se a esbracejar no vazio, ou talvez na mais severa crise íntima da sua longa e heroica História. E assim, e muito devido ao estilo de trabalho dos seus quadros, das análises enganadoras, das palavras de ordem descabidas e envelhecidas nos contextos que se seguiram à extinção do Conselho da Revolução (maioria absoluta do PSD, eleição de Mário Soares, adesão à CEE), o PCP não representaria para o eleitorado muito mais do que um vazio, uma impotência ideológica, um penduricalho decorativo que caucionava as amplas e duvidosas liberdades proporcionadas pela democracia burguesa.
 
 
 
                                           
 
Era hora de capitulação. Era o culminar da vitória esmagadora da contra-revolução iniciada ao entardecer do dia 25 de Novembro de 1975.
Partido revolucionário ainda, na nova ordenação de forças da política nacional, ou partido social-democrata a contre-coeur, chorando o tempo em que podia com legitimidade considerar-se revolucionário?
       A presente, e continuada, decadência eleitoral do PCP é um facto – o definhamento, como o caracterizava Zita Seabra em 1988.
 
                                                                          
 
A actualidade do PCP, e por força do vazio em que foi caindo e da capitulação a que foi constrangido, reduz-se em grande parte à negação. Se já não pode manter bem altas as bandeiras ideais, nem em curso qualquer processo revolucionário nacional a caminho do socialismo, e porque o 25 de Abril inacabado continua e continuará por acabar, então tudo tem que estar mal. Tudo tem que ser negado. Tudo será insuficiente. Todos são reaccionários incorrigíveis. Não há nem sombras de Homem novo na ordem liberal.
Terão por fim os comunistas que se exercer como partido de protesto, eterno e indignado protesto, porque nenhuma alternativa é válida para chegarem onde queriam há mais de 40 anos.
 
          
Partido de protesto, mas calma. Partido de protesto que pela qualidade de muitos dos seus quadros tem prestado altos serviços à democracia burguesa e ao parlamentarismo que sempre negou, embora nem por isso o eleitorado (as massas, os trabalhadores, o proletariado) lhe reconheça o valor. O que é mais desmoralizante do que todas as crises intestinas. Nisso tinham razão, em 1988, Zita Seabra e mais seis.
 
                      

Não faço, naturalmente, a mais pequena ideia do estado actual de democratização interna do PCP, mas lembro o definhamento eleitoral e de influência que vaticinava Zita Seabra ao PCP em 1988, no caso de persistir em não se democratizar internamente.
 
                    

É verdade que o Partido está a ser ultrapassado consecutivamente pelo charme, pelo pragmatismo esquerdista, pela brancura doutrinária e pela capacidade operacional das meninas do Bloco de Esquerda. Mas estamos cá para ver o que acontece ao PCP depois deste seu último desvio de direita.



sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016


                 PARIS, SETEMBRO DE 1968

 
 
(O Cunhal “de” Pacheco Pereira, última incursão.)
Maio em Paris. Primavera/Outono em Praga – Dubcek torturado e sujeito a aparecer morto numa viela da cidade. Esquerdismo em alta. Noção cada vez mais firme de que o PCP, amarrado ao PCUS, não dava um passo para revolução alguma; de que o heroico PCP da luta antifascista era uma entidade política obediente à burocracia soviética. Defecção de personalidades. Carlos Antunes, António José Saraiva (quantas coisas a gente come na nossa simplicidade de intelectuais), Eurico de Figueiredo, António Barreto, Manuel Alegre, Isabel do Carmo, Silva Marques, os “famosos”.

                                                      
      
 
Os comunistas portugueses de Paris, em todo o caso, e na sua maioria, estiveram com a direcção no apoio à invasão da Checoslováquia, invectivando os oportunistas dos PC’s francês e italiano, alertando para o perigo dos desvios de direita, e tocando no caso português, em que uma hipótese de unidade com os chamados católicos progressistas poderia indiciar o mesmo caminho desviante, dada a particular conjuntura nacional.
 
                  

Os militantes do interior dividiam-se entre apoiantes e discordantes da invasão. Havia qualquer coisa no ar. A guerra de África – julgo eu – chegava a um ponto de impasse militar em que declaradamente não se vencia nem se perdia, e sem solução política descortinável.
 
O ano seguinte era de eleições. A proximidade dessas eleições de 1969, que obviamente todos sabiam de antemão tão falseadas pelo regime como as anteriores mas que obrigavam o PCP a uma tentativa de estratégia unitária com forças e personalidades não comunistas da oposição ao regime.
 
                                                
 
Cunhal precisa deles, precisa de todos os antifascistas, mas para poder conversar com eles terá de fazer orelhas moucas à previsível contestação da invasão da Checoslováquia e mais à hostilidade a tudo o que cheirasse a soviético. Para evitar merdas, o melhor era falar com eles antes que a posição favorável do PCP à invasão devidamente se clarificasse.
 
 
A intermediação dos homens da FPLN de Argel seria aconselhável no sentido de um encontro em Paris com o que Cunhal chamava de “novos quadros oposicionistas”. Criar uma organização legal do movimento democrático: era essa a ideia.
 
                          

Na organização do encontro têm função operacional Pedro Ramos de Almeida e Piteira Santos. Jorge Sampaio, personalidade desligada de grupos oposicionistas mas líder das lutas estudantis de 1962 e advogado de presos políticos é um dos convidados. João Bénard da Costa, outro, oposicionista católico e influente no meio cultural.
                     
                                                               

Bénard e Sampaio chegam a Paris e logo são envolvidos nos procedimentos clandestinos e conspirativos tão do gosto de Cunhal.
 
 
Pacheco Pereira conta os casos pelo ponto de vista de Jorge Sampaio, que embarca no Metro até uma das portas de Paris e é encafuado num autocarro em que as cortinas das janelas são descidas; que viaja durante duas horas, possivelmente às voltas para despistar, sem fazer a mínima ideia do local para onde o levam; e que chega a uma espécie de quinta e é descarregado em frente de uma casa solarenga.
A reunião é numa vasta sala de jantar e demora três horas e tal. Estão vinte pessoas, Sottomayor Cardia, Virgínia Moura, Lino Lima, Maria Eugénia Varela Gomes, Piteira Santos, Lopes Cardoso, Manuel Sertório entre elas.
 

           
 
Cunhal chega de Citroën – “boca de sapo”, palpito – acompanhado pelo presidente comunista do município local.
E também palpito – erradamente, pode ser – que havia o sentimento de que alguma coisa de insólito estaria para acontecer em Portugal - ou até já teria acontecido sem ninguém saber; ou só com o PCP a saber. Era imperioso concertar posições.
 
 
Discute-se o momento político, o nacional e o internacional. Discutem-se as novas frentes de luta antifascista que é urgente criar em função de um regime que intoleravelmente se vai eternizando. Mas a mais quente das discussões centra-se na crise da Checoslováquia.
 
 
Nesse momento a posição do PCP quanto à invasão soviética ainda não era evidente. E por isso mesmo foi esse o tópico escaldante que dominou a reunião, para maior desconforto de Cunhal e dos comunistas presentes. Que a reunião tinha sido convocada para tratar dos assuntos portugueses e não da Checoslováquia, insistia-se. E é Carlos Brito que num passeio pelos jardins do castelo assume sem sofismas a posição do Partido no caso da Checoslováquia, o que deixa toda a gente estupefacta.
 
                                                                                                      
 
Terminado o encontro, Sampaio é enfiado na mesma camioneta das cortinas corridas, leva as mesmas duas horas de viagem, sai, mete-se no Metro, chega ao centro de Paris, compra o jornal, o Le Monde, e por uns segundos o coração deixa de lhe bater ao ler uma notícia de primeira página referente a Portugal: Salazar tinha caído de uma cadeira e estava internado em S. José em mau estado.
 
 
Salazar dera a queda em princípios de Agosto, como se sabe, mas tudo ficara no segredo e só em Setembro, ainda secretamente, foi em charola, sendo a notícia libertada para os jornais a 4 de Setembro. 
 
 
Pergunto: Cunhal e o PCP sabiam disso e terá sido essa sensacional mudança na situação política portuguesa a razão da reunião, e não as eleições do ano seguinte, que iriam decorrer seguramente como toda as outras? Pergunto.
 
                                                                                                    
 
Pergunto ainda: terá alguma vez a história da queda da cadeira sido bem contada ao pagode? Salazar caiu mesmo de uma cadeira de lona? O PCP terá tido algum papel nessa queda – ou, sei lá, nesse traumatismo craneano, com ou sem queda, com ou sem cadeira?
 
 
Teorias da conspiração, ah, ah, ah. Claro. Nada de admirar naqueles tempos conturbados, naquele ano de 1968 em que aconteceu tanta coisa inesperada e até imprevisível, tão eterno Salazar parecia a todos nós.

 
1968. Grande ano de acontecimentos que me apanharam à traição, confinado nas lonjuras do Leste de Angola, em armas, com tudo a passar-me ao lado e a chegar-me pelos jornais mandados de cá com semanas de atraso.
 
                                                                                              
 
Longe, longíssimo de todos os cenários, o que na minha ingenuidade esperei ansiosamente foi tumultos nas ruas de Lisboa, foi movimentações pré-revolucionárias aproveitando a circunstância, foi alguma acção, foi alguma mudança. E para maior desilusão dos meus vinte e tantos anos, nada, nada mudava – ou pelo menos nada de imediatamente perceptível.
 
 
Também era essa a opinião do PCP, segundo Pacheco Pereira. De que nada mudava quando alguma coisa já estaria a mudar.
Talvez sim. Marcelo Caetano. Ora bolas! Que grande mudança…
 
                                                                           
 
O que sub-repticiamente mudava sem que nas minhas circunstâncias de isolamento me pudesse aperceber era a posição que os mais lúcidos e informados dos cidadãos de esquerda tomavam com referência à URSS e aos partidos comunistas dela subsidiários.
O movimento comunista internacional, conforme bem nota Pacheco Pereira, envelhecia, as referências ideológicas desvaneciam-se, desmoronavam-se. Os que apoiavam incondicionalmente a URSS, e por tabela o PCP, continuavam firmes na sua convicção. Os que depois da Checoslováquia (para não falar da Hungria) e do Maio parisiense se tinham bandeado para outras paragens ideológicas à espera da revolução, olhavam mais para Oriente, para a China.
 
 
Mas na Europa era o impasse para as opções de esquerda. Quem tinha apoiado a invasão da Checoslováquia tinha apoiado e pronto, acabou-se, a URSS continuava para esses a ser o farol da esperança revolucionária. Quem tinha estado contra, quem tinha achado piada aos motins de Maio e se tinha virado para os chineses não se percebe bem o que esperava. Talvez a revolução para semana seguinte.
 
 
E quem nem tinha apoiado a invasão, nem se tinha impressionado com as consequências do Maio, nem se tinha virado para os chineses e se continuasse a reclamar do estatuto de cidadão de esquerda… estava sem saber o que pensar, para onde se virar, o que fazer. É nesse ponto, nesse ano de 1968, que a erosão das ideias de esquerda começa; é nesse vácuo ideológico que os princípios e práticas neo-liberais deixam de ter concorrência político-ideológica e acham terreno fértil para um novo alento, ganham consistência, vislumbram à distância histórica a consistência que têm hoje, o esplendor.
O PCP. Cunhal. A URSS. A China. Mao. Salazar. O vácuo – esse vácuo que escarnece das ideias e que convida às práticas.
Era o princípio do fim do primado da política. E, dada a exaustão da política, era a tecnocracia e a economia que se chegavam à frente para equilibrar e desequilibrar  as relações internacionais, estreitando consideravelmente a margem de escolha entre capitalismo e socialismo.
Anos antes, em 1965, no relatório ao VI Congresso do Partido, realizado na URSS, Cunhal tocara o ponto da previsível (e desejável) morte do ditador e caracterizara como vácuo político o que se seguiria a essa morte.
 
                                                                             
Pois então, em Setembro de 68 essa morte era o facto político mais previsível que se pudesse arranjar. Era a véspera do vácuo político que Cunhal previra. Havia que chamar a Paris as entidades antifascistas e com elas arquitectar estratégias. E ainda por cima na perspectiva de eleições.
Continuo na minha: em princípios de Setembro de 68 Cunhal já saberia o que pouquíssimos (os grandes do regime, só) sabiam: da queda de Salazar.
 
 
Mas o vácuo ideológico seria também onde ele mesmo, Cunhal, iria cair, arredio como era da solução do eurocomunismo que o obrigaria a desviar-se para a direita, também ele, empedernidamente fiel a um sovietismo que historicamente dava as últimas e que ele sabia melhor do que ninguém já não ter condições morais para conduzir o movimento comunista internacional para lá da burocracia conservadora e aparelhista em que mergulhara depois de Stalin. 
  
 
Havia algures um muro. Não sei se alguém já andava a pensar em deitá-lo abaixo. Porque também não sei se em Moscovo, em Praga ou em Paris, alguém nesse ano terá pronunciado duas palavras em russo… glasnost… perestroika…
Talvez não. Ainda faltavam vinte anos.