quinta-feira, 26 de março de 2020




                      EXISTENCIALISTAS 3
 
       E dizem… li num dossier organizado pela revista Magazine LIttéraire… dizem os críticos, ou aqueles que tudo sabem da vida sexual das grandes personalidades, os historiadores, os investigadores… dizem… disseram… que Sartre nunca terá proporcionado especial prazer sexual a Beauvoir. Deu-lhe, isso sim, quanto a isso tenho a certeza, um imenso prazer intelectual. O que, em certos casos, pode funcionar como um elemento supletivo de sensualidade, também estou convencido disso, uma overdose de líbido… ai que bom estar na cama como este homem (mulher) tão inteligente… ai esta sensibilidade, estas magníficas e tão bem torneadas frases que ele, ou ela, diz… qualquer coisa assim.


E como já se deixou ver, não é precisamente sobre a obra e o pensamento de Sartre e de Beauvoir que eu quis organizar esta minha conversa.
Questão de moral, isso sim, pode ser. E este factor humano que é comum a génios e a destituídos, o desejo, a repulsa, o afecto, o ódio, a liberdade, a solidão e a alegria, o que não for literário nem imediatamente filosófico – sem deixar de o ser, aí é que está a piada; sem deixar de o ser e de intervir na letra e no pensamento. A vida privada. Uma autonomia de vida. Uma soberania pessoal. Liberdade, ora aí está! A existência apela à liberdade individual, a tocar aqui e ali a libertinagem e a felicidade (le bonheur) no desprezo possível dos códigos de classe e de sociedade, das convenções sempre capazes de castrar impulsos e contribuir, quantas vezes, para muito do nosso mal-estar de vida.


Também acho que já o disse, que quando (os cafés!) comecei a ouvir falar das relações deste casal singular, assim por alto, isto do amor livre, anos 60, eu pelos meus 18, 19 anos, a impressão foi de uma idealização dessas míticas vidas de Sartre e Beauvoir. Quando mais recentemente, com os meus 18, 19 anos muitíssimo distantes, me fui às fontes, o meu desconsolo, não posso negar, foi algum. Havia, à superfície da letra, pouco ideal e muito material, e muito físico. Disse à superfície da letra, porque no profundo do espírito é difícil, ou impossível, penetrar. É que as teorias de amor caem sempre em cheio sobre o maravilhoso. É a prática do amor que nos dá a volta à cabeça.
Mas a prática amorosa, ou, talvez melhor, o princípio amoroso Sartre/Beauvoir, foi uma moda conjugal, por assim dizer, para os baby-boomers filhos do pós-guerra, como eu, nesta Lisboa dos anos 60.


 No memorial A Força das Coisas, Beauvoir confirma. Há muitos casais que estabelecem mais ou menos o mesmo pacto que eu fiz com Sartre: manter, a despeito de todos os desvios, o caminho principal, uma certa fidelidade. E um compromisso destes tem os seus riscos. Questão de moral pessoal, sim senhor. Um pacto baseado na verdade, não na paixão, insisto.
Se porém os aliados mantivessem relações sexuais esporádicas, passageiras (contingentes), não haveria crise. Mas isso também quereria dizer que a liberdade deles nem mereceria tal nome. Sartre e eu fomos mais ambiciosos, queríamos viver também os amores contingentes.


Contou Beauvoir que em 1945 o existencialismo andava na boca dos franceses. Uma filosofia da consciência, consciência que era abertura ao mundo e perda nesse mundo. O existencialismo era o existir fora de si. Ou para além de si. O Homem que é atirado para as coisas, para os fenómenos. Coisas, fenómenos, que são o cerne da existência mesma. E se a existência é um dado gratuito, o sentido só poderá ter origem no Eu, nos actos e nas escolhas de um Eu para sempre condenado à liberdade.
Num café de Paris, uma senhora enerva-se, solta um palavrão, depois cai em si, pede desculpas aos circunstantes. Dizendo: perdão, eu devo estar a tornar-me existencialista.


É por essa altura que Sartre profere uma conferência, sob o título O Existencialismo é um Humanismo – que veio a dar em livro e chegou a ser publicado em Portugal (eu li-o no intelectual café, e não me perguntem o que na altura tirei dele).


O existencialismo era, portanto, e essencialmente, um humanismo (o que hoje nos parece mais do que óbvio), e Sartre declara à vasta e douta assistência que a filosofia dele não era a priori positiva nem negativa. Mas o caso é que Deus não existia, e o Homem construía-se a si próprio, sem tutelas espirituais, e assim se tornava responsável pelo seu destino, por aquilo que era ou que viria a ser, sem alibis, sem desculpas.


O Homem estava condenado a ser livre – uma chatice. Porque a existência lhe precedia a essência. E a existência era um absoluto de liberdade pessoal. E tal circunstância tinha fatalmente aplicação aos lances do amor. Amor só haveria aquele que era construído. O amor só se manifestaria no decorrer de uma relação amorosa… ui, onde esta conversa nos levaria… e nessa conferência houve desmaios, desacatos, cadeiras pelo ar…


E do companheiro Sartre, Beauvoir disse que no plano literário ele sonhava ser ao mesmo tempo um Stendhal e um Spinoza. Segundo ela, Sartre teria lido a Chartreuse pelo menos vinte vezes. Aliás, Beauvoir elevaria Stendhal às alturas no seu Segundo Sexo. E mais porque Stendhal nos seus livros nunca fez das mulheres simples e irrelevantes objectos, fez delas sujeitos de parte inteira. Stendhal não se limita a descrever as suas heroínas em função dos seus heróis, antes lhes confere um destino próprio. Para ela, Stendhal era o mais moderno dos romancistas, comparado com Lawrence, com Claudel ou Breton, a quem chama de escritores machos, odiosos ou ridículos, embrenhados no mito do Eterno Feminino.


Não nascemos mulher, tornamo-nos mulher. Frase forte do livro O Segundo Sexo. E não se pode esquecer que, não obstante todas as iniciais dúvidas, Beauvoir era existencialista, pensava existencialista. Logo, não jurava pelo que se costuma chamar de natureza humana. Tudo seria construído e a feminilidade também seria uma construção pessoal e social. E em todas as culturas que estudara o homem era o sujeito e a mulher era o Outro. Porquê?


A unidade de medida do existencialismo, já se viu, era a liberdade. Mas a liberdade era um nunca-acabar de obstáculos para as mulheres, e a sociedade ainda não estava preparada para encarar a mulher como ser livre – isto em 1949… hoje já deve estar (ainda não?).


E o livro O Segundo Sexo, em 1949, foi um escândalo. Beauvoir tinha ido longe, mais longe do que as escritoras a que os franceses chamavam travestidas, George Sand e Colette.


Dessa obra – como já da escrita de memórias – ressaltavam certos mal entendidos. Beauvoir perguntava-se: alguma vez eu escrevi que as mulheres eram como os homens? Alguma vez eu pretendi não ser uma mulher? Não. Nunca. O esforço assentava na definição das particularidades individuais de uma condição feminina, que era a dela. Que a feminilidade não era em si mesma uma essência, uma natureza inelutável. Que a feminilidade era, sim, uma situação criada, histórica, civilizacional, a partir de certos elementos fisiológicos, bem entendido. Eu não negava a minha feminilidade. Mas também não a assumia. Nem pensava nisso. Eu tinha as mesmas liberdades e as mesmas responsabilidades que os homens.


Oh, mas será que pesava alguma maldição ancestral sobre as mulheres? Pesava, sim senhora. E era o sofrerem. E era o acomodarem-se. E era o felicitarem-se até pela dependência. Uma dependência a que eu fui poupada. Ser feminina era apenas um dos dados da história pessoal de Beauvoir. Não era uma explicação.


Recuando a 1946, parece que estou a ouvir Beauvoir a discorrer com Sartre. Que significa ser mulher? Sartre a objectar que para ela nem significava assim tanto como isso. Omessa! Pois não, ela levava o mesmo tipo de vida que os amigos homens, era uma privilegiada. Alguma vez você se sentiu inferior por ser mulher? E o resultado desta conversa foi Beauvoir ter posto de lado tudo o que planeava escrever e passar várias semanas encafuada na Biblioteca Nacional a recolher materiais para o que desejava fosse um extenso ensaio. E foi. O Segundo Sexo. E até ganhou a fama de ter sido um marco literário do século XX.


Tudo muito bem. Ou tudo muito mal para as feministas mais radicais, que criticaram com desassombro os valores masculinos em que Beauvoir fundava o seu feminismo, nomeadamente a indulgência para com esse execrável chauvinista-machista que era o Sartre.
A Beauvoir a escrita romanesca começou por não convir muito. A princípio. É Sartre que a convence a experimentar o romance – como já vimos. E enquanto o desenvolto Sartre, heterogéneo e saltitante, dá à evidência a capacidade de transitar calmamente de género para género, romance, teatro, ensaio, tratado filosófico, e até o script para um filme de John Huston – que se realizou de facto, Freud, mas não com o guião de Sartre.


 Beauvoir concentrou-se na coerência e no rigor de pensamento. Ensaios escritos de 1949 a 1974, está muito bem, mas fundamentalmente romances e memórias, desde sempre até à velhice, até aos últimos alentos.

Bom, a escolha deles, deles os dois, estava feita há muito – desde 1929. Prioridade de vida: a literatura. Cada um tinha a sua obra para cumprir, a sua vida de trios e quartetos amorosos, o seu destino, enfim, para viver. Juntos. Livres.
Em 1938, Sartre irrompe pelas consciências contemporâneas quando publica o primeiro romance de grande sucesso, A Náusea. O existencialismo. A angústia. O Nada. A chatice da liberdade, da responsabilidade. Onze anos depois, é Beauvoir quem revoluciona o pensamento francês com O Segundo Sexo. Em 54, Beauvoir ganha o Prémio Goncourt com Os Mandarins.


E dez anos depois do Goncourt de Beauvoir, Sartre ganha o Nobel. E recusa-o.
Desculpar-me-ão, mas… eram tempos infelizes, é verdade, mas podia-se pensar, pensar autonomamente, sem ter que seguir qualquer cartilha de correcções ou corrente de bom comportamentismo, de formatação, de unicidade de pensamento. E até é muito por isso que gosto de falar destes tempos imperfeitos da sociedade humana – ah, sim, imperfeitos para as bitolas de hoje: a perfeição parece que é hoje o mercado soberano, os investidores anónimos, as redes sociais, o pensamento único, a chamada democracia, o santificado Estado de Direito, a inovação tecnológica… só.
Ah, e os vírus... mesmo a calhar para a economia liberal, que (a crer nas estatísticas) se vai vendo livre dos velhos improdutivos que só andam por aí a sobrecarregar os orçamentos de Estado.


Bom, mas eram tempos, aqueles, em que se pensava, sim, mas pensava-se, digamos, comunicativamente. Quer dizer, um pensamento que ultrapassava a cavilação escolástica e era publicado, publicitado, lido, posto ao alcance do vulgo para suscitar adesões e repúdios. Um tempo de intelectuais próximos do homem mediano, apesar de todas as densidades filosofantes. De Sartre, Beauvoir, Camus, Merleau-Ponty, Raymond Aron, e muitos outros, pensadores conhecidos, apreciados, criticados, eram-lhes conhecidas as posições.


 Pois é… é verdade… os tempos não são comparáveis…

   
E vem a ser o pós-guerra a trazer finalmente a fama mundial ao duo Sartre/Beauvoir. O Homem estava para ser recriado e era essa a missão do casal Sartre/Beauvoir – o homem e a mulher, para sermos mais politicamente correctos. Beauvoir chega a dizer que Sartre vivia, viveu, para escrever e mais nada, como se tivesse mandato para testemunhar sobre todas as coisas que aconteciam, que existiam – existencialismo, está bem.
Ora então, mundialmente famoso, Sartre nunca mais pára e é convidado para conferências por esse mundo fora.





 A primeira viagem é a Nova York, como jornalista, e curiosamente em serviço tanto para o esquerdista Combat – de Camus – como para o conservador Le Figaro. E pronto, apaixona-se por uma americana. Dolores Vanetti – o homem medularmente racionalista era inesgotável nas paixões: vai à União Soviética e apaixona-se pela tradutora Lena Zonina; vai ao Japão e enamora-se pela intérprete japonesa, Tomiko Azabuki; vai ao Brasil e cai de amores no Recife por uma jovem jornalista brasileira, Cristina, 25 anos, ruiva, virgem, com quem pensa logo em casar - ele, que se enchia de urticária em 1929 quando se falava de casamento...
Beauvoir diz-lhe: em quase todas as viagens que fizemos, ou que você fez, houve sempre uma mulher que foi a encarnação do país.


A guerra dividiu a minha vida em duas, diz ele. E foi. Antes da guerra, tirando o círculo apertado dos amigos intelectuais e dos confrades, quase ninguém o conhecia. Depois da guerra, a bem dizer da noite para o dia, Sartre passa a ser um nome mundialmente conhecido. Beauvoir não passa sem comentar: tive pouco peso nisso, mas Sartre foi brutalmente lançado para a arena da celebridade e o meu nome ficou associado ao dele.
Todas as semanas os tabloides parisienses passam a publicar boatos sobre o célebre casal existencialista. Sartre e Beauvoir mal podiam andar na rua sem verem os paparazzi a persegui-los como se fossem estrelas pop. E sai o romance de Boris Vian, A Espuma dos Dias, em que as personagens principais são duas estrelas da intelectualidade parisiense Jean-Sol Patre e a Duquesa de Bovouard. O jornal sensacionalista Samedi Soir chamava a Beauvoir La Grande Sartrienne ou Notre Dame de Sartre.
Caso engraçado, contado pelo escritor espanhol Jorge Semprun, foi que, naquela vaga de existencialismo, havia um homem parecidíssimo com Sartre que batia as mesmas ruas lá de Montparnasse, parava nos mesmos cafés que Sartre costumava frequentar, e que costumava gritar, furioso, da mesa do café onde estava, ou quando na rua alguém passava e olhava para ele, eu não sou Sartre!, sósia, sim, mas não sou Sartre!


E o mais engraçado ainda é que esse homem era mesmo Sartre, no auge da celebridade, a não querer que o incomodassem com conversas ou a pedir autógrafos.
Nova York. Aventuras americanas. Sartre aterrou em Nova York no dia 13 de Janeiro de 1945. Não sabia inglês, nunca tinha andado de avião e apanhou logo uns sustos valentes com os poços de ar, numa viagem que durou dois dias, com três escalas.


E depressa se encantou com essa tal  Dolores Vanetti, moça ainda mais baixinha que ele, de pais italianos, que falava francês e lhe serviu de intérprete. Viria ela a recordar que Sartre estava num estado de tensão e efervescência, sempre a falar e a contar histórias divertidas, e a puxar-me para a vida dele.
Quando a comitiva dos jornalistas franceses volta para Paris, Sartre não descansa enquanto não regressa a Nova York à procura da Dolores Vanetti. E por lá fica algum tempo. E como Sartre não havia meio de voltar a casa, as comunicações eram más e ainda havia guerra – e não havia telemóveis nem internetes, e hoje é sempre bom recordar isso a quem não viveu, ou a quem já não se lembra que houve tempos na História humana sem essas coisas – Beauvoir cumpre a cartilha libertária do existencialismo e a correlativa liberdade individual, e cai nos braços de um actor meio russo que estava justamente a representar um papel numa peça de Sartre, o Huis Clos. Nos braços desse e, já agora, nos braços de outro com quem em tempos idos, antes de Sartre, e platonicamente, ela tinha namoriscado, René Maheu.


Sem querer fazer a parte da alcoviteira, tenho a dizer que nesse entretanto, em Nova York, Sartre (acabadinho de fazer 40 anos) está desgostoso com Dolores, porque ela quer acabar com tudo. Note-se que ainda não havia tempo para ela se ter tornado existencialista, e da moral de vida dela ainda fazia parte a fidelidade tout court e, assim sendo, não podia levar à paciência a existência de outra mulher, a Beauvoir, na vida de Sartre.
Mas é claro que Sartre regressa a Paris. Regressa a Paris, e, apesar das juras que tinha feito a si próprio de nunca mais querer saber dela, não se contém e escreve à Dolores. Ora nessa altura a Dolores (certamente a acusar os primeiros sintomas de existencialismo) começara a dormir com o amigo de Sartre, Bost, sempre ele (se estão lembrados ex-paixão de Beauvoir), que também estava na América como jornalista.


 Mas mesmo assim, Dolores responde carinhosamente à carta de Sartre. E as bombas atómicas caem em Hiroxima e Nagazaki, e Beauvoir sente que para ela o mundo nunca fora tão terrificante como nesse momento.


Com respeito a ciúmes, Beauvoir declara que aquela Dolores foi quem mais a mortificou. Porque a sentia como uma mulher hostil. É que a Dolores queria mesmo casar com Sartre, e é evidente que também nutria ciúmes fatais da Beauvoir, a pontos de proibir Sartre de lhe falar na Beauvoir. A paixão dela assusta-me – escreve Sartre de Nova York. Em especial por não ser esse o meu forte. Estou ansioso por chegar a casa. Estou meio morto de paixão e de tantas palestras. Oh, mas espera aí, a Universidade de Columbia estava a acenar-lhe com um belo contrato de dois anos, e ele, em segredo, já tinha pedido a Dolores Vanetti em casamento.


Honestamente, diga-me lá – a Beauvoir a falar, desabrida, num café de Paris. Quem é mais importante para si, essa Dolores ou eu? Sartre responde, circunspecto: Dolores é muito importante para mim, mas é consigo que eu estou. O que ele queria dizer, pensou ela, é que estava a respeitar o pacto de 1929, quando o casamento para ele eram facadas, e não se falava mais nisso.


Sartre está apaixonado pela Dolores, sim senhor, mas uma coisa era estar apaixonado por uma mulher, e outra coisa era desistir da vida que levava para se casar com ela. Sim, casar com ela, Dolores não fazia a festa por menos do que isso.
E Sartre paga do seu bolso o caro e difícil divórcio de Dolores de um primeiro marido americano, e Dolores fica a viver em Cannes, à grande e, evidentemente, à francesa, à custa de Sartre, e à espera da hora em que ele se case com ela. Mas o pior para ela era que Sartre se tinha entretanto apaixonado pela mulher de Boris Vian, Michelle – Vian viria por muito tempo a chorar-se e a acusar Sartre de lhe ter roubado a mulher.


Vamos lá a ver… sexualmente, o confessado herói da vida de Beauvoir não julguem que foi Sartre. Não, senhor. Foi um apagado escritor americano, de seu nome Nelson Algren. A quem ela até chegou a chamar de marido. De quem ela guardou um anel até à hora da morte.


(Pois é isso, existencialismo, amor livre, amigos, amantes, trios, quartetos… mas a sombra do casamento e da vida burguesmente sossegada não lhes saía da cabeça…)
Já se vê que Sartre não lhe ficava para trás nos projectos com a Dolores. Mas o certo é que se fartou dela. Por uma vez na vida, Sartre ficava pelos cabelos com uma mulher. E rompe com ela – ao que se diz com a ajuda da Beauvoir. E viria o tempo em que o tal plumitivo americano também ficaria pelos cabelos com a Beauvoir e a deixaria. Para os dois existencialistas o mais importante de tudo mantinha-se intocado, ora bem: o pacto de 1929.


Até às três da manhã bebo whisky docilmente. O whisky é uma das chaves para a América. Assim mesmo, Beauvoir também teve a sua conta de aventuras americanas. E resolve tê-las pelo cair da noite de Manhattan, a pensar que o melhor para penetrar aquela cultura estranha era arranjar um amante americano.
Estava lá para fazer conferências, já se percebeu. Mas foi encontrar-se com a rival, Dolores Vanetti. Relutantemente. Se recuarmos só um bocadinho no nosso tempo narrativo, diremos que nesse momento a Dolores estava em vésperas de partir para Paris onde se encontraria com Sartre na expectativa de vir a casar com ele. No encontro dela com Beauvoir, em Nova York, o whisky também escorreu a jorros. E Beauvoir faz o relatório para Sartre: pois olhe, gosto muito dela, fiquei contente, compreendi-lhe os sentimentos e consegui valorizá-los, e a si também, por senti-los. E mais notou que a pequenina e reboluda Dolores Vanetti lhe fazia lembrar um ídolo anamita.
É nesse entremeio que alguém lhe dá - a Beauvoir - a morada e o número de telefone de um escritor americano, o tal Nelson Algren. Quando chegares a Chicago procura Nelson Algren, disse-me um jovem intelectual quando estive em Nova York, em 1947. E ela enche-se de coragem e telefona-lhe. E atende uma voz de homem. E ela fala. E o homem desliga. E ela torna a ligar. E fala mais alto (com o imprescindível sotaque, claro). E o homem diz-lhe que é engano. E ela não desiste e pede ajuda à telefonista. Tenho alguém em linha que deseja falar-lhe, Mr. Algren. Por fim, Algren atende.


Atende e aparece. Aparece para mostrar a Beauvoir as vistas da cidade, clubes de strip tease, bares de negros e pubs de gangsters.


E confessa-lhe: era em sítios daqueles que se sentia em casa. E assim foi. Paixão de caixão à cova.


Mas Beauvoir não se esquece do pacto de 1929. E escreve a Sartre – então já em pulgas para se ver livre da Dolores: mais do que a libertação dos nazis, mais do que a minha viagem à América, é sempre você a experiência mais extraordinária da minha vida, a mais forte, a mais profunda e verdadeira.
Isto é bonito.


Anos passados, bastantes, mesmo assim, Algren vem a ler o livro de memórias de Beauvoir em que é contado o primeiro encontro entre eles, e vá de escrever, ele também, um artigo numa revista americana. Quando chegares a Paris procura Simone de Beauvoir, recomendou-me um pseudo-intelectual. E Algren escreveu estas e outras coisas engraçadas. Diziam-me que para uma boa escritora ela era surpreendentemente sentenciosa, desprovida de sentido de humor e tirânica. E se calhar era mesmo.


É preciso ver que aquele escritor americano, Algren, não fazia a mais pequena ideia, em 1947, de quem fosse Simone de Beauvoir, de quem fosse Jean-Paul Sartre, e muito menos que raio vinha a ser essa bizarria do existencialismo. Mas Beauvoir até se sentia muito bem, muito feliz por essa ignorância do amante. Feliz, pois claro, estava com um homem que a desejava antes de mais como mulher. Como já disse, foram dias e noites de arrebatamento. Diz-lhe ele assim: tem piada, estamo-nos a dar tão bem. Eu, que nunca me dei bem com ninguém.


No regresso a Paris, Beauvoir amaldiçoa aquele Oceano Atlântico que a separava do homem do seu ideal. Mas jura voltar. E volta. Volta a Chicago. E Algren quer que ela fique lá por casa a viver e que juntem os trapos e se case com ele. E ela tem que lhe explicar, num paralelismo flagrante com a aventura de Sartre com Dolores, que a vida dela não era aquilo, não era Chicago coisíssima nenhuma, a vida dela era Paris, eram os cafés, os amigos literatos, as amiguinhas livres. Algren não engole a explicação. Ela fica pesarosa com a incompreensão dele. Se não lhe podia entregar a vida, também não era merecedora do amor dele – coisa linda, coisa fatal, romanesca. Sou muito ambiciosa, Nelsinho querido. Quero tudo da vida. Quero ser uma mulher e ser um homem, ter muitos amigos e estar sozinha, trabalhar muito e escrever bons livros, e viajar, e divertir-me, ser egoísta e ser altruísta.


E já se sabe que se viu obrigada a dizer-lhe o que Sartre representava para ela. E que Sartre precisava dela. Era ela a verdadeira amiga que ele, coitadito, tinha na vida, a única que o compreendia, que lhe dava paz e trabalhava com ele. Há quase vinte anos que ele fez tudo por mim. Ajudou a encontrar-me comigo própria e a viver. Não posso abandoná-lo, estás a compreender Nelsinho. Não posso comprometer a minha vida com outra pessoa. Detesto falar nisso, Nelsinho. Sei que estou em risco de te perder e sei o que significaria para mim perder-te, Nelsinho…
E com as coisas neste pé, Algren farta-se dela, de a ver chegar e partir, chegar e partir. Até ao dia em que a vai esperar com indiferença, sabendo que alguma coisa, muita coisa, estava a morrer entre eles.


Conversa de faca e alguidar, porque, coitado, também tinha a ex-mulher à perna, e ele, que até se dizia já farto de mulheres, começava a cismar se não seria melhor voltar para a ex-mulher e casar com ela outra vez.
 
                      CONTINUA
 

terça-feira, 17 de março de 2020


 
 
                         EXISTENCIALISTAS 2
 
 
Os tempos passavam, paulatinos. Colocada em Paris, no Liceu Moliére, Beauvoir não tarda a deslumbrar outra aluna, de seu nome Bianca Bienenfeld, 16 aninhos, loira, bonita, delicada de modos, e depois fascinada com a história dos trios que Beauvoir lhe ia contando. Ao mesmo tempo que Sartre seduzia a tal irmã mais nova de Olga, Wanda, e se deixava seduzir por uma jovem actriz, Colette Gilbert, confessando-lhe que a ama, mas que não há lugar para ela na sua vida, onde já estavam Olga, Wanda, e Beauvoir, claro, Beauvoir primeiro que todas e que tudo. Os trios ampliavam-se, multiplicavam-se.


Quando Sartre se apaixona por Wanda, diz Beauvoir que no Flore as pessoas olhavam de lado para mim.



E a jovem Bianca acabará também por ir parar aos braços de Sartre. E Sartre declara-lhe o seu amor e quer saber se será possível ela vir a apaixonar-se por ele – histórias de cordel, não? Bom, possível era, que a jovem se apaixonasse por ele, o que ela não queria de maneira nenhuma era magoar mademoiselle de Beauvoir. Mas Sartre desvaloriza. Não, Castor não se importaria nada com isso.


E pronto. Era um novo trio fundado por Sartre às escondidas. Sartre passava a noite com Bianca e de manhã ia bater à porta de Beauvoir, no Hotel Mistral, a contar-lhe como tinha sido a noite. Mas também a jovem Bianca se abria com Beauvoir, admitindo que estava apaixonada por Sartre e que tinha medo de o perder. Beauvoir que falasse com ele. Depois de ela me dizer isto descemos para o meu quarto, onde nos envolvemos em carinhos ilícitos. Mas penso que, em última análise, não sou homossexual, uma vez que, sensualmente, não sinto quase nada.


Sartre está na tropa, longe de Paris. Beauvoir vê-se e deseja-se para estar com ele. Para ir ter com ele ao quartel passa estafadeiras entre camionetas e comboios. E num fim de semana da tropa, Sartre mostra-se preocupado. Por causa dessa coisa das mentiras, as mentiras que andava a impingir a Wanda. Parecia-lhe que a rapariga o amava a sério. Começava a questionar-se. E se fosse melhor ficar fiel a uma só pessoa? E é quando o jovem Bost salta da cama da Beauvoir e cai todo juntinho na cama de Olga.


Mas mesmo no meio da balbúrdia de corpos e camas, Sartre não deixava, de pensar, de escrever. E tanto assim que chegamos a 1938 e Sartre, passadas muitas tentativas e cunhas poderosos junto da editora Gallimard, lá consegue ver publicado o primeiro livro, um romance, o celebérrimo A Náusea.


E nem os seres de alta compleição intelectual têm meios de escapar à parvoíce e à toleima barata. Depois de saber que a Gallimard lhe vai publicar a obra – sim, vai, porém na condição de aceitar a sugestão do patrão, Gaston Gallimard, e mudar-lhe o título de Melancholia para A Náusea – sai-se com esta: hoje sim, posso caminhar pelas ruas como um autor. Alguém saberá melhor do que eu a diferença entre o andar na rua como um paisano vulgar e o andar na rua como um autor.


 No caso de Beauvoir, rejeitada pela Gallimard e logo em seguida pela Grasset, demorava a encontrar editora para o primeiro romance. Oiça, Castor, porque não se coloca a si própria na sua escrita? – pergunta-conselho de Sartre. Você é muito mais interessante do que essas olgas, wandas, biancas, lisas. Sobressalto de Beauvoir: cale-se lá homem!, o quê, lançar-me a mim própria num livro, não preservar as distâncias, comprometer-me? Só a ideia de se expor lhe punha os cabelos em pé, Ousar, ousar – recalcitrava Sartre. A minha maneira de sentir, de reagir, era tudo isso o que eu deveria exprimir num livro? Nunca! (Pois, desde então não fez outra coisa em toda a vida e obra.)


A relação de Sartre com Wanda era pública e notória, mas a paixão de Beauvoir e Bost era clandestina, enquanto as relações de Bost com Olga eram oficiais. Mas a relação de Sartre com Beauvoir, estranhamente, também era consumada um pouco às escondidas, porque Sartre não queria que que Wanda soubesse demais. E Sartre e Beauvoir lá continuavam a pagar todas as despesas daqueles trios, ou, sei lá, quartetos, quintetos, às escondidas ou às claras.


Acreditavam firmemente no socialismo, mas o individualismo (em que acreditavam ainda mais) refreava-lhes as posições progressistas, e assim se mantinham no papel de testemunhas silenciosas dos acontecimentos políticos. A guerra! Haveria guerra ou não haveria guerra?


Apoiavam platonicamente as manifestações operárias, as greves nas fábricas, porque eram justas, mesmo sabendo que essas manifestações e greves lesavam gravemente o outro apoio platónico que davam ao governo socialista de Léon Blum, o Front Populaire. Que viria pouco depois a cair por acção da extrema direita.


Numa viagem pela Alemanha ainda lhes custava convencerem-se da realidade, que o nazismo não era aquele fogo de vista político que os comunistas propagandeavam. E assistiram às paradas, viram os braços estendidos e os olhares fixos de um povo em transe.


Sartre já profetizara: se Hitler não fosse derrotado, a França teria a mesma sorte da Áustria (entretanto anexada por Hitler, como se sabe). Mas havia outras correntes de pensamento, a dizer que uma França em guerra seria bem pior do que uma França nazificada. E Sartre continuava a bradar, sem abandonar o seu individualismo burguês e filosófico, somos intelectuais, uma dominação nazi roubará todo o sentido às nossas vidas.


E profetizava mais: aquela seria uma guerra moderna, sem massacres; como a pintura moderna, sem personagens; como a música moderna, sem melodia; como a Física, sem matéria. Profecias erradas. Acontece aos melhores.


Por outro lado, Beauvoir ia dando nota das transformações (e conversões) que se estariam a produzir nela perante a ameaça nazi. 1939 era ano de rupturas pessoais. Renunciava ao individualismo – não percebo como uma pessoa pode renunciar a uma condição que lhe está, digamos, na massa do sangue. Mas Beauvoir, vá lá, dizia estar a aprender a solidariedade.


Mas também retrospectivava os últimos dez anos de vida e as transformações e conversões de 1929, a saída da casa dos pais, a independência económica, o fim das amizades da infância e adolescência e o começo das novas. E Sartre. E a felicidade assegurada por via do pacto com Sartre. E a ambição literária, vamos lá, ainda que baseada, segundo ela, numa vocação abstracta. Queria ser escritora, muito bem, mas iria escrever o quê? Admitia nunca se ter curado dos males do moralismo, do puritanismo, ou de um universalismo tão abstracto como a vocação literária. E era o sonho de felicidade pessoal que a cegava para as realidades políticas.


E por uma bela tarde de domingo, 3 de Setembro de 1939, a França segue a Inglaterra e declara guerra à Alemanha. Beauvoir estava no Café de Flore a escrever, e o primeiro pensamento dela foi para o jovem Bost, a grande paixão contingente do momento. Bost que estava no serviço militar e que lhe inspirava o pressentimento de que iria morrer na frente. De caminho, escreve-lhe: meu amor, se lhe acontecer algum mal nunca mais sentirei qualquer felicidade nesta vida.


Sartre já tinha acabado o tempo de tropa normal e estava na reserva. Mas, sendo um caso de guerra, também estava à bica para ser mobilizado e enviado para a Alsácia. E se Sartre morresse também? As probabilidades não eram muitas, Sartre não tinha uma especialidade de combate, era meteorologista, mas, mesmo assim, nunca se sabia. Se Sartre morresse, Beauvoir não tinha que pensar senão numa coisa: suicídio. E até achava reconfortante essa ideia suicidária. Ao ler a carta em que ela lhe revela essa intenção, Sartre responde que aquelas ideias de suicídio lhe transmitiam uma paz profunda. Não gostaria nada de a deixar para trás. Nunca senti tão intensamente que você e eu somos um. Ela replica: meu amor, você não é apenas uma coisa da minha vida, pois a minha vida já não me pertence, você é sempre eu.


Mas quando Sartre pensava em Wanda e imaginava a vida no pós-guerra sem ela era como se o mundo ficasse encolhido. Faltar-lhe-ia a dimensão vital.


Ora Wanda entrara para os cursos de teatro de Charles Dullin e andava a ser cortejada por um actor da companhia. Uma corte que não fazia sentido a Sartre. É óbvio que a vida dela sou eu, não pela ternura que lhe possa inspirar, mas pela necessidade intelectual e material que tem de mim. Isso mesmo, Sartre continuava a sustentá-la, como sustentava a irmã Olga, e talvez o jovem Bost, tudo a meias com Beauvoir. Nos tempos desgraçados de guerra e ocupação, sem o apoio financeiro deles, os amantes cairiam na miséria mais negra. E nas notas que tomava para uma próxima obra filosófica (que viria a intitular-se O Ser e o Nada – eu sou o Eu que os outros conhecem), Sartre escrevia que as relações humanas envolvem sempre conflito, e que o amor entre duas pessoas é necessariamente um conflito… cada uma quer que a outra o ame, mas sem levar em conta que amar é querer ser amado, e cá está a perpétua insatisfação do amante. O amor era uma batalha. Dois sujeitos livres a tentarem apoderar-se da liberdade um do outro, e ao mesmo tempo querendo libertar-se do domínio do outro. Nem mais. O Mal existe, e foi inventado pelos homens de bem.


Sinto o avanço alemão como uma ameaça pessoal. A minha única ideia é não ficar separada de Sartre, não ser caçada como um rato numa Paris ocupada.


Claro, vem mesmo a guerra, a derrota, a consequente ocupação E vem a vida tornada um inferno de sobrevivência e de subsistência.
Sartre é feito prisioneiro pelos alemães. Beauvoir tem pesadelos, sim, ele volta, volta mas já não me ama e eu encho-me de desespero.


E de facto, Sartre volta. Volta depois de uma libertação com as estranhas aventuras que mais parecem de uma evasão. Volta e toma uma consciência nova das coisas.


Paris era o enfrentamento da realidade da ocupação alemã, do recolher obrigatório, da penúria, da fome, do risco, dos atentados, da Gestapo, das perseguições, das torturas. E diz que não voltou a Paris para se gozar da liberdade, não, voltou para agir. E como os alemães têm que ser expulsos da França, organiza um minúsculo grupo de amigos como uma célula (privada) de resistência. Reúnem secretamente no quarto do hotel onde Beauvoir está hospedada.



Daí a uns tempos, Sartre vai à zona livre para contactar alguns notáveis possivelmente próximos da verdadeira resistência.


Malraux – que lhe responde que só os tanques russos e os aviões americanos podem ganhar a guerra e salvar a França, nunca os intelectuais pequeno-burgueses.


Gide – que muda de conversa quando Sartre lhe conta os planos da célula privada dele.


Vai falar com os comunistas – que desconfiam abertamente dele; passou o tempo de prisão a ler Heidegger, um nazi; se os alemães o libertaram alguma coisa ele com eles colaborou; e a mesma conversa dura dos intelectuais: do que a resistência menos precisava era de intelectuais pequeno-burgueses. E assim a micro-célula de Sartre se dissolve.
Não era que o epíteto de intelectual pequeno-burguês o incomodasse particularmente, mas tal classificação não era bastante para lhe definir as posições pessoais e a atitude cívica.


Até aí, tinham vivido na militância existencialista, a liberdade individual e sexual acima de tudo, finalidade suprema de vida. Ilusões classistas, já se sabe. Filhos de uma burguesia de privilégio, podiam entregar-se a luxos intelectuais, um deles esse mesmo: o primado absoluto da liberdade individual. E já nos idos anos 30 se tinham perguntado se seria justo contentarem-se intelectualmente com as simpatias que sentiam pelas classes operárias, eles, burgueses bem instalados na vida. Sartre ainda nessa altura pensou em aderir ao Partido Comunista, mas… as ideias dele, o projecto de vida dele, o próprio temperamento dele, recusaram tal hipótese. Dois intelectuais pequeno-burgueses invocando a sua obra, o seu futuro, para evitar o compromisso político: era essa a nossa realidade – lúcido reconhecimento de Beauvoir.
Começavam agora a sentir a História carregar-lhes sobre a consciência, a realidade pungente dos mortos, dos estropiados, dos torturados, dos refugiados, da ocupação pelo inimigo da cidade onde tinham nascido. A História.


Está bem, mas já em pleno tempo de ocupação nazi, Beauvoir, apesar de escrever a Sartre que o sexo com jovens bonitas era só um pobre substituto do artigo genuíno, entusiasmara-se com outra aluna, Nathalie Sorokine, também esta de pais russos. Alta, loira, corpo musculado, arrapazada, ladra de bicicletas. Não há nada a fazer, ela quer dormir comigo. Nas cartas para o jovem Bost minimizava Beauvoir o interesse por aventuras lésbicas. Era estranho ser amada por tantas jovens, mas certamente que não era a ela que amavam, era o reflexo do próprio futuro delas que ela representava.


Da fama de abusadora de raparigas à denúncia não se livrou Beauvoir. Em Março de 42, a mãe da nova conquista, a Sorokine, entra no Ministério da Educação de Vichy com uma queixa contra ela. Mademoiselle de Beauvoir andava a corromper-lhe a filha menor. Ou mais: Mademoiselle de Beauvoir seduzira a filha e a seguir, em acção proxeneta, passara-a para as camas dos seus amigos Sartre e Bost.


Foi-se a ver e a mãe da jovem sabia quase tudo dos trios e dos quartetos e das rebaldarias do casal Sartre/Beauvoir. Um ex-namorado da filha tinha-lhe contado tudo. E o caso meteu polícia. E meteu interrogatórios a todos os envolvidos, e até ao pessoal e aos residentes dos hotéis, e aos reitores dos liceus onde Beauvoir leccionara. Os do núcleo dos trios, olha que meninos, mestres da mentira, combinaram cuidadosamente as estratégias, e, claro, negaram tudo. Pois, mas era tudo verdade.


Muito mais tarde, testemunhas abalizadas (Bianca e Nelson Algren, o amor americano de Beauvoir) confessariam que era isso mesmo, que Beauvoir actuava como atravessadora, seduzindo as amiguinhas e atirando-as para os braços de Sartre, que, coitado, feio como uma noite de trovões bem precisava dessa ajuda. E devia essa ajuda a uma cláusula secreta do pacto de 1929.


O reitor da Universidade de Paris considerou inadmissível manter Beauvoir nos corpos docentes. A França queria restaurar valores morais e mademoiselle de Beauvoir vivia há anos em relações de concubinato, não tinha casa, vivia em hotéis de má nota, corrigia os trabalhos dos alunos na mesa dos cafés e ensinava a obra de autores homossexuais, Proust e Gide. Em Junho de 43, o governo de Vichy expulsa Beauvoir do ensino – o que lhe acrescentou prestígio, diga-se, nos meios da esquerda. Viria a ser reintegrada depois da libertação, mas sem nunca ter voltado a dar aulas.


Tenho 32 anos, sinto-me uma mulher feita, mas gostava de saber que mulher. Sou mulher, sim, mas em que sentido eu posso não o ser?
Sartre alinhava novas profecias para o que viria a ser aquela guerra, mas já pensava no pós-guerra. Não poderia mais esquivar-se à participação política. Um homem tinha de assumir aquilo a que chamava de “uma situação”, e assumir uma situação era passar à acção. Ia construindo uma filosofia. O Ser e o Nada. Desejar o Absoluto e sofrer da ausência dele no desolado caminho da inutilidade do Ser e do Nada. Qual a relação entre situação e liberdade?
A jovem Olga, que, como já se disse, não tinha préstimo para grande coisa na vida, frequentava também os cursos do Théatre de L’Atelier e fez uma pontinha numa peça dirigida pelo então jovem prometedor Jean Louis Barrault.


Barrault não desgostou dela e ela perguntou-lhe como poderia vir a fazer papéis mais importantes. O melhor, na opinião de Barrault, ainda seria arranjar alguém que escrevesse uma peça para ela. Olga conta o caso a Sartre e está feito, Sartre não perde tempo: e porque não eu a escrever essa peça para si?


É verdade que já não tinham nada um com o outro, mas o que começara por um trio já era uma família, e Olga fazia parte da família. E é assim que nasce a primeira peça teatral de Sartre, As Moscas, uma inspiração bebida na tragédia dos Átridas, o regresso de Orestes para matar os assassinos do pai – quer dizer, a própria mãe e o amante dela -, e com evidentes alusões à situação política que se vivia.


O doloroso segredo dos deuses e dos reis é que os homens são livres, tu sabe-lo, Egisto, eles é que não. Se o soubessem deitariam fogo ao meu palácio. Represento esta comédia para lhes esconder o seu próprio poder.


Barrault era para montar a peça, mas entendeu que Olga não tinha cabedal técnico-artístico para o papel de Electra e barafustou contra Sartre, alegando – com razão - que o que ele pretendia era promover uma amante. Sartre não cedeu, pôs os pés à parede, queria Olga no papel e acabou-se.


E Barrault abandona o projecto, e a peça vem a ser dirigida por Charles Dullin, grande nome do teatro francês da época. E a estreia dá-se em Junho de 43, com uma certa Olga Dominique no principal papel feminino.


Teve pouco público, mas foi um acontecimento teatral histórico. Críticas mitigadas. Crítica que, aliás, fingiu não ter percebido o panfleto político dissimulado no texto. A palavra liberdade na boca de Orestes explodiu sobre nós como uma bomba – escreveu Beauvoir na noite da estreia. Sou livre, Electra, a liberdade abateu-se sobre mim como um raio.


Nesse verão de 43, Sartre publica o ensaio O Ser e o Nada – dedicado a Castor. Ser é tomar consciência de ser olhado. É o olhar do outro que me conduz a mim mesmo. E em Agosto sai enfim o primeiro romance de Beauvoir, A Convidada – e a despeito das muitas reservas da editora Gallimard. Um romance que de tão autobiográfico lança a público as primeiras luzes sobre as reais relações Sartre/Beauvoir. A teoria que Beauvoir formula, depois de publicado aquele primeiro livro, dizia que o indivíduo não se podia conhecer a si mesmo, só se podia contar.


 E a Wanda, a tal irmã de Olga, e então amante principal de Sartre, também lhe dá para o teatro, também frequenta os cursos do Atelier, e também já fizera um pequeno papel.


Daí que Sartre se sentisse tentado a escrever também uma peça para ela, uma coisa breve, um cenário único, um acto único, duas ou três personagens, uma situação de beco sem saída, ou, como no título original, um Huis Clos.


Ou seja, um inferno – o inferno são os outros: sentença final da peça. Que é uma obra-prima. Que é um sucesso. O maior de Sartre até então. Wanda integra o elenco sob o nome de Marie Olivier.


Numa tarde de princípios desse ano de 43, no Flore, um sujeito que quer editar uma obra sobre as tendências ideológicas do momento, vira-se para Beauvoir e pergunta: e você, é existencialista?
Muitos anos passados, ao contar a peripécia, Beauvoir ainda se lembrava do embaraço dela. Sim, quer dizer, isto é, pois claro… lera Kirkegaard. Sim, sabia que quando se falava de Heidegger, além da palavra fenomenologia, vinha associada a palavra existencialismo, sim, sabia disso. Mas também reconhecia que naquele momento de 1943 ignorava o sentido dessa palavra existencialismo, uma palavra, sim, sabia, acabada de lançar no mundo intelectual francês pelo católico Gabriel Marcel. Também sabia das suas (dela) limitações filosóficas e não se atribuía importância suficiente para ostentar uma etiqueta filosófica.


E agora, a grande sensação. As vidas estavam num tempo de crises demasiadas e, para ajudar à triste festa da vida sob a ocupação, Sartre declara unilateralmente o fim da relação sexual com Beauvoir. A minha relação com Wanda é perfeita, declarou. Wanda a quem a Beauvoir tinha um pó dos diabos, como também o tivera à irmã, a Olga, quando a disputara com Sartre. E filosofava, a Beauvoir: é evidente que nos homens o hábito mata o desejo. Mas estava com 33 anos e custava-lhe engolir que o homem que mais amava não a desejasse. Mais tarde viria a concordar que nos últimos anos, antes da guerra, as relações deles já eram mais de amizade profunda do que de amor.


Até podia aceitar que Sartre fora para ela um substituto do pai – e que Olga lhe funcionara como sucedâneo de uma filha. A dialéctica que corre da infância à idade adulta transforma as relações afectivas, conserva-as e ultrapassa-as. A minha ligação com Sartre reverte à minha infância, mas também ao que ele próprio era. Para me interessar por Olga seria preciso haver em mim uma disponibilidade, um desejo de me dedicar a alguém, mas foi a personalidade de Olga que determinou a singularidade da nossa relação.


Beauvoir viria a assassinar Olga. Calma. A assassinar literariamente. Assassinar a personagem ficcionada para aplacar os rancores, as irritações que a pessoa real lhe causara, e que era bem assinalável enquanto personagem romanesca. E isso foi logo no romance de estreia, A Convidada, que não era muito mais do que o conto das inter-relações daquele trio. O assassínio da personagem inspirada na pessoa real de Olga foi uma libertação. A passagem do meu coração às palavras (como Sartre lhe havia aconselhado), por momentos, pareceu-me um obstáculo intransponível. A ligação maníaca de dois adultos a uma criança de 19 anos não era explicável senão pela efabulação. Lá estava: o indivíduo não se podia conhecer a si mesmo, só se podia contar.


E vamos do individualismo militante ao compromisso político. Era o que a situação histórica exigia. E tal como nós, Camus passara do individualismo ao compromisso. Sabíamos que ele já tinha responsabilidades no movimento Combat. E acolheu com naturalidade o sucesso literário, a notoriedade, parecia não se tomar muito a sério.


Camus era um tipo engraçado, contador de histórias em linguagem picante, em luta contra a tuberculose, um homem que atraía as mulheres. Atraiu Wanda. E atraiu Beauvoir. Talvez ele e Beauvoir tenham passado os seus bons bocados. A palavra dela a esse respeito é ambígua até mais não. Jantámos Chez Lipp e levámos uma garrafa de champanhe para o quarto do Hotel Louisianne
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Ocorre dizer que a notoriedade literária também viria a ser festivamente acolhida por Beauvoir. Entrava verdadeiramente no mundo intelectual, as novas amizades, e todas importantes, eram uma festa para ela, que se sentia no huis clos daquele mundo acanhado dos trios, das manigâncias sexuais, das mentiras, as amantes tornadas amigas e as amigas tornadas amantes.


A notoriedade literária proporcionava-lhe a qualidade de vida, e a qualidade de visita de casa e de festas de gente de renome, Picasso, Salacrou, Cocteau, George Bataille, Michel Leiris, Lacan. Foi então que começou a vestir bem.


E é nessa altura que ela e Sartre descobrem os talentos poéticos de um fulano acabado de sair da prisão por roubos e outras malfeitorias de delito comum, um fulano chamado Jean Genet.


Queria que no meu livro entrasse o mundo inteiro, embora não tivesse nada de preciso a dizer, a não ser uma revolta individualista contra uma sociedade corrompida.


Depois, ouviu-se dizer que a bandeira tricolor já tremulava na Torre Eiffel, que o general De Gaulle já tinha chegado a Paris e se preparava para desfilar nos Campos Elísios.


Foi por uma sexta-feira de Agosto de 1944.   
          
                                CONTINUA