terça-feira, 25 de agosto de 2020


          
         MORAL NACIONAL E DEPENDÊNCIA INFANTIL

 

Será que o indesmentível pendor narcísico-exibicionista compulsivo do nosso presidente da República pode configurar alguma distorção psico-patológica? A ser assim, como homem superiormente inteligente que é, o nosso presidente já há muito se deve ter apercebido desse transtorno. Será que já andou (anda) nalgum psicoterapeuta? Ou, optimista empedernido, está feliz e contente com essa sua compulsão narciso-exibicionista e a vê como mais valia admirável posta ao serviço do sempre depauperado moral nacional?



O moral nacional?

Pois regressei ao livro de que falei no post anterior. Estudos Psicanalíticos da Personalidade, do Prof. Fairbairn.



Porque razão haverá soldados que vacilam e se vão abaixo por completo se metidos em situações de perigo e outros não? Será que o sangue frio e a coragem de enfrentar e aguentar os momentos perigosos é variável com o grau de ultrapassagem que um militar conseguiu da sua fase de dependência infantil?

Há, sempre houve, e talvez ainda haja, apesar de tantas mudanças tecnológicas, três tipos de militar: o que gosta da tropa – e eventualmente da guerra – e mais de todas as coisas desagradáveis, incómodas ou perigosas que lhe vão a ela, tropa, por inerência; o que não gosta da tropa mas que, pronto, vá lá, o que é que se há-de fazer?, ainda pode aguentar; e o que tropa nem vê-la nem tolerá-la seja como for, nem com com molho de tomate.



Aquele que, não gostando propriamente da vida militar, ainda a pode tolerar é talvez o tipo mais comum – reparo agora no meu caso pessoal e percebo que foi nesse número que me inscrevi na minha época militar. Também fui o tipo que não gosta de fardas nem de brutezas, mas que, compelido e sem muita alternativa a juntar-me às fileiras em tempo de guerra colonial, é menino para suportar o embrechado, inclusivé em estados de guerra, aquele fulano que com jeitinho e algum êxito conseguiu vencer a inibição de um estádio de dependência infantil na sua vida.

O que não gosta da tropa e que nem por um decreto lhe passa pela cabeça aturar os mil sacrifícios precisos para minimamente a suportar e tem suores frios logo que pensa em fardas, casernas, botas, galões, cheiros corporais, disciplinas, superiores, continências, sacrifícios, marchas, armas, perigo… ah, esse poderá considerar-se do tipo neurótico que no seu desenvolvimento emocional estacionou num certo ponto e psicologicamente ainda não se libertou dos aconchegos da infância.



E depois há os que gostam da tropa, inclusive da guerra, os que se pode dizer que amam mesmo os estados de guerra – e conheci de perto uns quantos, entre profissionais e milicianos, oficiais de carreira e soldados rasos. Nesses, seriam de contar uma boa porção de heróis psicopatas sem tirar nem pôr. Foram esses que terminantemente recusaram a sua dependência infantil; ou os que, pelo menos no palco da sua vida, representaram melhor a recusa da dependência infantil, ao ponto de conseguirem apagar da estrutura das suas personalidades a sensibilidade, a simpatia humana, a compaixão. Ou mesmo o medo, não sei.

Soldado que gosta da guerra? Enfim, lá porque gosta dela não quer dizer que esse soldado tenha toda a estaleca para a suportar. Recusou as mariquices da dependência infantil, está muito bem, mas em alguns casos essa recusa não passou de uma pseudo-recusa, e no acto de demonstrar cabalmente ao mundo que não é um mariquinhas nem um sentimental reage aos estímulos da guerra com exagero, mata e esfola que se farta, e por vezes até ao ponto de se deixar caír sob a alçada disciplinar. E cá para mim será mesmo no número desses que haveremos de encontrar alguns criminosos de guerra.



Identificação. O indivíduo pode identificar-se emocionalmente de modo muito profundo com aqueles de quem depende. Identificação que remete para o estado psicológico da dependência infantil, já se vê.



O processo de identificação às relações emocionais da infância poderá representar a continuidade na vida extra-uterina de uma atitude emocional existente ainda antes do nascimento. Poderá representar uma tentativa de recuperação de um estado primordial de segurança e estabilidade, estado esse violentamente interrompido pela dolorosa experiência de nascer.

Nascimento. O nosso nascimento é uma primeira experiência de alta ansiedade. É também a nossa primeira experiência de separação.



No nascimento deve estar o núcleo inaugural de todo o sentimento de ansiedade de separação que a vida nos proporciona. O que não quer dizer que haja em nós lembranças conscientes do traumatismo que foi para nós o nascer. Será uma experiência a um nível mental muito profundo, reactivável sob certas condições de vida e de circunstância, e verificável nalguns fenómenos psicopatológicos.

O sonho de caminhar por uma passagem subterrânea que vai ficando estreitinha, estreitinha, até que o sonhador, incapaz de se mexer, acorda em estado agudo de ansiedade. O sonho de cair de um andar alto, que dizem normal nos soldados vítimas de neurose de guerra. Experiências traumáticas que remontam ao traumatismo primeiro de ter nascido. Dizem os sábios.



Na identificação com aqueles de quem dependemos, a figura primeira, original e indiscutível, é, sem dúvida, a mãe. O pai vem depois. E venham as figuras que vierem subsequentemente na nossa vida, a identificação original persiste e sobreleva todas as identificações posteriores. Mas quanto mais maduros nos vamos tornando menos o fenómeno da identificação se manifesta em nós.



Todo o ser incapaz de ultrapassar o estádio da dependência infantil sentirá muito altas dificuldades em estabelecer relações com os outros numa base de independência mútua. E até talvez, pela vida adiante, tenha dificuldade em estabelecer novas relações.

O dependente infantil, se assim lhe posso chamar - e que muitos de nós, todos nós, somos em grau variável – sente-se como parte dos seres identificados, figuras parentais ou não; e sente por consequência que esses seres são parte de si próprio. Na ausência deles, o dependente infantil tende a afrouxar a evidência do seu próprio ser e personalidade, omite-se nos contactos com o mundo, está incompleto, a sua inteireza de personalidade fica diminuída.



Em caso de um militar é patente a dificuldade de obter bases psicológicas de identificação e relações normais com o grupo, com a consequente recusa do espírito de corpo, fundamental à instituição e ao serviço militares. O dependente infantil, ou o militar paciente de neurose de guerra será sempre um diferenciado relativamente ao seu pelotão, à sua companhia. A sua identificação primeira com a casa e com as figuras parentais não suporta facilmente competidores.



Mas soldados há que conseguem surpreendentes identificações com o seu corpo de exército. E essa identificação é tão forte que eles se tornam extremamente activos e competentes. Estão absorvidos pela instituição. Exibem exageradamente o seu zelo. Querem ir a todas. Estão hiper disponíveis para o serviço. Querem estar na primeira linha de qualquer missão. São altamente disciplinados e intolerantes na relação com os outros e não encaram bem tudo o que no serviço seja rotina. Sonham com aventura, risco.


Isto é identificação total com o grupo. E esses esperam ver premiados a sua dedicação, competência e arrojo. E impacientam-se muito se tal não acontece com a presteza que entendem adequada. E se o reconhecimento e o prémio do seu mérito não lhes chegam no tempo justo sentem-se rejeitados pelo grupo, rejeitados afinal na sua desesperada tentativa de identificação e de independentização das tutelas mentais da casa e da família. É um problema levado dos diabos…

         Sente-se a rejeição evidentemente como uma recusa de aceitação por parte do grupo e de tudo o que esses soldados exemplares deram de si ao grupo, e, nessas condições, eis que começam também eles a desenvolver uma ansiedade de separação, e separação justamente daquilo a que se sentem mais chegados na sua actual fase de corte com o estádio de dependência infantil.



Não acontecerá também assim na nossa vida civil e burguesa, no  nosso clube, no nosso partido, no nosso trabalho, na nossa empresa?

Oh, sim, na empresa!



O inevitável Freud entra em acção. Já cá faltava.

Psicologia Colectiva e Análise do Eu – obra de 1921 que não recebe, à época, a atenção devida das autoridades médicas.

Freud pôe a tónica na quebra exactamente do esprit de corps - espírito de corpo: essencial nas relações militares.

         Dizem que há um estado de pânico associado à derrota iminente de um exército em campanha. Nas ânsias de uma derrota militar instala-se o espírito do “cada um por si e os outros que se lixem”. O espírito de corpo desintegra-se. Mas Freud interpretou inversamente. É quando o espírito de corpo falece que o pânico individual e a situação do cada um por si acontecem, e não o contrário, como era vulgar pensar-se. Ao sentirem a quebra do espírito de corpo, os indivíduos experimentam uma espécie de orfandade, deixaram de ser membros do grupo, estão a perder as referências identificativas. É o isolamento do Homem. É o pânico nas almas. E pode não acontecer só nos estados de guerra ou nas instituições militares, acho eu.



No soldado neurótico dá-se uma ansiedade de separação até quando os laços que unem o grupo estão intactos e fortes, porque esses laços entre o soldado neurótico e o grupo são precários. O soldado neurótico consumou um grau alto de dependência infantil e tão identificado se manteve com os seus objectos originais de amor no grupo familiar que nunca foi muito competente a contraír relações emocionais com a instituição militar.



E é nesta complicada relação de forças anímicas e psíquicas que assenta o moral. O moral das tropas, como o moral dos grupos de trabalho, ou até o moral de uma nação – em favor do qual o nosso presidente tenta capitalizar o seu exibicionismo televisivo.

A maturidade emocional parece que nunca é um absoluto. É uma questão de grau. A dependência infantil nunca está completamente ausente da nossa vida. O que é é que varia de pessoa para pessoa, e no nível de tensão sem experiência de ansiedade que cada pessoa pode suportar em condições de separação dos entes queridos. E, avaliado em si mesmo, todo o grau de dependência infantil do indivíduo pode ser nocivo ao moral. O das tropas. O das empresas. O das nações.

A existência de uma elevada motivação, ou seja, de um alto grau de moral num grupo, pode, por outro lado, neutralizar os efeitos da dependência infantil entre os membros desse grupo.

A incidência das neuroses de guerra era um critério aferidor do moral das tropas. E se transpusermos a questão para a nossa vida quotidiana de país – e nem será preciso forçar muito os raciocínios – verificaremos o nosso moral nacional na razão da corrida às consultas de neuro-psiquiatria nos nossos hospitais públicos e às crescentes necessidades de acompanhamento psicológico dos nossos cidadãos.



E quando uma nação conta com um exército de civis recrutados, o moral desse exército é inseparável do estado do moral de um país – quem viveu em idade adulta no Portugal de 1962 a 1974 pode tirar as parecenças.



A falta de espírito público e a hipotética baixa do moral nacional podem traduzir-se na relutância do indivíduo em sacrificar-se pelo interesse do grupo a que pertence, pelo grupo nacional que é a sua pátria, decorrendo daí as atitudes burguesas, o privilégio dos interesses exclusivamente pessoais, familiares ou corporativos sobre as exigências do bem comum.

Aliás, percebe-se uma decadência do moral nacional que pode ser acompanhada de um regressivo ressurgimento da dependência infantil da comunidade – e veja-se, de caminho e com atenção, o grau de infantilização que nos é proposto pelas televisões, o grau de infantilização a que o obsessivo consumo de televisão nos faz regredir noite após noite. E perante isto perceba-se a que nível de mobilização de vontades e de esforço geral nacional pode um governo, qualquer governo, aspirar. E é para acudir a tal que em registo de auto-propaganda tenta o nosso presidente lançar mão da sua compulsão exibicionista e narciso-televisiva.



Porque o culto do moral nacional é sempre um factor decisivo a usar pelos estados totalitários. Rússia, Itália, Alemanha, por exemplo, antes do eclodir da II Guerra – antes e durante, claro -, um moral nacional que lhes permitiu prosseguir uma guerra devastadora.


O caudilhismo. Veja-se o tom exaltado e patriótico do franquismo na sua guerra civil. Ou mesmo do salazarismo – que nem precisou do narciso-exibicionismo que o provinciano presidente do conselho nem tinha.


Honra, Dever, Serviço, Sacrifício: uma divisa chegava, se bem me lembro, a dos tempos da velha Mocidade Portuguesa, a que muitos, ainda assim, se devotaram com toda a convicção.



Sob regimes totalitários cultiva-se objectivamente no espírito de cidadania um princípio de dependência do Estado. Dependência do Estado que pode funcionar como substituição da tal dependência infantil dos objectos familiares mais amados. Ou seja, pode explorar-se a natural dependência infantil presente no indivíduo a favor dos interesses do grupo nacional e em prol do moral da comunidade. E se ocorrerem êxitos político-militares estão todos de cavalinho e tudo é ouro sobre azul – como seria hoje ver a massa dos turistas ingleses esfalfados a correr para o Algarve. O êxito faz disparar sentimentos de plenitude, graça, contentamento, segurança pessoal e colectiva. O pior é se, e quando, em vez do êxito acontece o fracasso e os turistas ingleses não há meio de aparecerem - afinal, parece que estão a começar a aparecer.



Em caso de fracasso nacional, na política e/ou na guerra, o que dá é um forte sentimento de desilusão quanto à capacidade do Estado e dos dirigentes nacionais, o que levará fatalmente a uma inflexão dos impulsos originais de dependência infantil do indivíduo, do cidadão, que os transfere do Estado e do interesse nacional para os originais objectos familiares, em face da ocorrência de agudos sintomas de ansiedade de separação e de fragorosa derrocada do moral nacional. Isto em regimes totalitários.



Ou talvez não só em regimes totalitários se atendermos aos 50% de abstenção a cada acto eleitoral na nossa democracia – e noutras…



Mas também é verdade que nas democracias o indivíduo está menos dependente do Estado. Em democracia, o cidadão experimentará em toda a liberdade de consciência os sentimentos primordiais da dependência infantil e de apego aos objectos do seu amor familiar, a par com uma necessidade e uma oportunidade melhoradas de segurança pessoal.

Em democracia, o que pode acontecer é uma tendência individualística para se ser complacente à vista dos resultados objectivos da performance do grupo, seja, do país. O que pode constituir, a prazo, uma realidade negativa, porque cultivada à sombra das aparências de um moral nacional psicologicamente falseado.



A ansiedade de separação pode caracterizar-se por um decréscimo do sentido do dever, o que significa a desintegração da estrutura mental de uma consciência libertada da autoridade do Super Eu, na regressão ao estádio infantil de desenvolvimento individual em que a estrutura da consciência ainda não se organizou em estabilidade. Nesse caso, o indivíduo, regredindo ao estado emocional da criança, ainda dificilmente aceitará os pais como figuras autoritárias da sua consciência e não se preocupará muito se o seu comportamento é moralmente bom ou mau à vista dos pais. Estará então muito mais interessado em saber se os pais o amam ou não, se os pais lhe aparecem como boas ou más figuras a interiorizar.



Remata o Dr. Fairbairn com a sua convicção de que, do ponto de vista militar como do ponto de vista nacional, os problemas postos por aquilo a que se chama de neurose não são temas da área da psicoterapia.

Diz ele que são mais questões de moral.

 

 

 

 

 


 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020


                  
                             STRESS

 

A gente vai lendo umas coisas. Aos anos que isto foi…

Um certo cabo do exército inglês, 26 anos, casado, entra no Hospital Militar em estado de agitação, com sintomas histéricos e obsessivos. Fora mobilizado para a India, casando-se antes do embarque. A mulher não o pôde acompanhar. Durante o tempo de serviço entretinha os tempos de solidão a sonhar com o dia em que, livre da tropa, compraria casa própria e nela viveria com a mulher. Começaria então a idade de ouro da sua vida.



Com o seu tempo de serviço a caminhar para o fim, a mulher tem um filho. Quando chega o dia da sua passagem à disponibilidade, rebenta uma crise internacional e a viagem de regresso a Inglaterra é cancelada. Os sintomas fóbicos e obsessivos do nosso cabo começam a fazer-se sentir. Daí ao extremo desespero é um passo.

        “A separação da minha mulher acabou comigo”, confessa ele aos médicos. Fortes e constantes dores de cabeça, perda de apetite e impulsos suicidas. É passado à reserva. Abril de 39. Aos anos que isto foi… mas stress é stress seja em que ano e circunstância for…

O cabo volta para a companhia da mulher e emprega-se nos correios. Mas estava escrito que a felicidade lhe iria durar pouco. Uma semana passada em casa. Começava a gozar o sonhado estatuto de plenitude civil. O pior eram as nuvens de guerra que se acumulavam no horizonte.

Reservista, é convocado para se apresentar na sua unidade. 15 de junho de 1939. Os pensamentos negros quanto a uma nova separação da mulher voltam a carregar em cima dele. Ansiedade, perda de apetite, dores de cabeça.

Pode ir a casa todos os fins de semana, pois pode, mas tal não obsta a que se ponha a escrever à mulher duas cartas por dia. A 26 de Agosto desse ano de 39 é dispensado do serviço. E, cruel ironia dos deuses, a 27 desse Agosto, vésperas da guerra, é requisitado outra vez e compelido a apresentar-se. Quando está para sair de casa, desmaia na soleira da porta.



        É colocado como instrutor. Um alívio: assim não irá servir na frente, não irá para o estrangeiro. Em Dezembro desse ano de 39 concedem-lhe uma licença. A mulher estava para dar à luz. Mas as coisas correm mal. É muito azar. E o azar na vida, estou convencido disso, é (pode ser) também ponderosa causa de stress. O parto da mulher está complicado. Dois dias de licença. Dois dias que ele prolonga por conta própria, constituindo-se portanto em ausência ilegítima da sua unidade. A ansiedade da separação leva-o a quebrar flagrantemente as regras da disciplina militar. Tem sorte, desta vez. A instituição perdoa-lhe. Problemas de concentração. Na instrução esquece-se facilmente do que está a dizer. Só a figura da mulher lhe acode à ideia.

 

Março de 1940. Recebe carta da mulher. O seu bébé vai ser operado a uma hérnia. Consegue uma licença. Está em casa na altura da operação. A operação é adiada. O nosso cabo não consegue prorrogar a licença. Faz as malas. Tem que se apresentar no quartel. Durante a viagem para a unidade as saudades de casa sufocam-no. Não faz mais nada, sai do comboio na primeira paragem. Compra outro bilhete. Volta para trás, e fica em casa. O bébé é operado. Sorte: a operação corre bem. Agora sim, pode regressar à unidade. O diabo é que na viagem tem outro rebate ansioso de saudades e torna a voltar para trás.

Não chega a casa. Entra numa farmácia, compra um frasco de uma substância tóxica, lisol – coisa que não faço ideia do que seja, mas que pouco importa. O que importa é que ele, sobre o seu conflito interior entre o dever de soldado e o impulso civil de ficar em casa com a mulher e o filho, emborca o frasco inteiro. Suicídio falhado. Vai para o hospital.

Sempre fora um moço muito ligado à mãe, que se separara do pai. A mãe morreu tinha ele 16 anos. Ao saber da morte da mãe esteve meia hora sem conseguir falar e deixou de ir ao trabalho. Foi viver com uma tia e sentiu-se profundamente infeliz. E por se ter sentido muitíssimo infeliz sem a mãe, resolvera alistar-se no exército, procurando no exército um reatamento dos afectos maternais. (Enfim…) E depois procurara na mulher com quem casara outro sucedâneo para preencher a lacuna deixada pela morte da mãe.



E agora, outro soldado. Este de artilharia. 24 anos. Casado há 18 meses. Na vida civil tinha uma lojeca e conseguira por isso adiar por três meses a incorporação. Quando se apresentou ao serviço militar exigiu que a mulher o acompanhasse na vida de quartel, ou pelo menos que ela ficasse instalada na localidade onde ficava o quartel. E assim aconteceu.

Assim aconteceu até ao dia em que, por qualquer motivo não especificado, a mulher do soldado artilheiro teve de regressar a casa. E logo o soldado artilheiro mete uma licença de fim de semana e acompanha a mulher a casa.

Durante o fim de semana com a mulher recusa-se terminantemente a ir sequer à rua. Até que a licença acaba e ele tem de regressar ao quartel. Sem a mulher.

O quartel distava 250 milhas de casa. E todos os dias o soldado faz um telefonema interurbano para falar longamente com a mulher. Não consegue concentrar-se em mais nada. Só pensa na mulher. Por isso reprova no teste final da instrução de artilharia e é colocado como telefonista.

Não dorme de noite a pensar na mulher. Sente-se diferente de todos os seus camaradas. Não faz amigos entre eles – ou talvez apenas um, 15 anos mais velho do que ele.

Se já ao entrar para a tropa este soldado se sentira normalmente deprimido, então, durante o tempo de serviço sentira-se tragicamente só. Tudo estava contra si. O único apoio da sua vida era a esperança de voltar a ver a mulher. “É tudo quanto tenho, é uma mãe para mim”, disse ele aos médicos.



Desmaios frequentes. Internamento. Na infância e adolescência tinha vivido com a avó. Era psicologicamente dependente da figura da avó. Nunca tivera amigos. Nunca se interessara pelas raparigas. Já na vida anterior, e civil, demonstrara fortes sintomas de ansiedade de separação da mulher. E quando por fim julgara assegurada a proximidade dela, eis que é mobilizado para a tropa. E na tropa, tenta impossíveis para compatibilizar as exigências do serviço com a proximidade da mulher. A tentativa falha. Os sintomas desenvolvem-se. Desmaios. Internamento.

Pela persistência dos sintomas angustiantes consegue a desmobilização e regressa a casa; quer dizer, regressa à mulher, herdeira natural da figura tutelar da avó, com quem, por força da vida e das circunstâncias, desenvolvera uma atitude aguda de dependência infantil.

Ainda ontem (30 de Agosto de 2010) mais uma mulher foi assassinada a tiro no meio da rua pelo homem de quem se separara pouco tempo antes - ansiedade da separação. Mais uma entre tantas e tantas que nos últimos tempos entenderam descontinuar (como é moda dizer agora) uma relação amorosa. Mais uma vítima da possível dependência infantil do companheiro.



Mas que mulher (se não for psi de ofício, e mesmo assim…) pode adivinhar o problema de dependência infantil do homem por quem um dia se apaixonou e prever os riscos eventualmente fatais dessa paixão por um homem que a sente como uma mãe insubstituível e não pode passar sem ela?



A gente vai lendo umas coisas, e, nem de propósito, calhou ter recentemente refolheado um velho livro que discorre sobre estas matérias, intitulado Estudos Psicanalíticos da Personalidade, do professor escocês Ronald Fairbairn, e do qual naturalmente extraio o científico principal desta conversa.

Fico então ciente de que há a estabelecer uma distinção entre estados psicopatológicos, os que são derivados de um estado de guerra activo, e os que, ainda que surgindo na vida militar, podem ocorrer mesmo na vida civil. Situações e atitudes da ordem civil possíveis de se desencadear num quadro de guerra, e sem que a ela, guerra, seja de atribuir um primeiro grau de causalidade.

Pode acontecer – e por sinal a minha experiência vivida, curta mas intensa, de guerra (dita colonial), confirma-o – que todo o militar envolvido em operações bélicas  e a sofrer de neurose traumática tenha uma história anterior da mesma natureza contraída já na vida civil. Certas características psicopatológicas de um sujeito remontam à sua vida anterior à entrada para o serviço militar. Daí o inferir dos especialistas que a situação militar, na maior parte dos casos, apenas precipita e activa factores latentes que conduzem à experiência traumática e à chamada neurose de guerra.



       Claro que se contam na categoria das experiências traumáticas muitas situações retintamente guerreiras: ser atingido por estilhaços, estar fechado na cabina de um navio torpedeado, ver massacrar barbaramente populações civis, ter que estrangular uma sentinela inimiga, ver recusada uma licença para assistir ao parto da mulher, ser repreendido pelo 1º Sargento da companhia, ser acusado de homossexualidade...



Durante o desenvolvimento da personalidade a nossa dependência dos pais, da família e da casa vai progressivamente decrescendo ao longo da infância e da adolescência. Até à independência total – ou quase total, uma vez que esse tipo de independência em tempo algum da nossa vida, da vida seja de quem for, é total.

O processo da nossa emancipação das tutelas parentais é todavia consumado em conflito. E em caso de condições de vida mais desfavoráveis acontecem os estados agudos de ansiedade e consequentes reacções extremas.

E, dizem os entendidos, mesmo que à superfície das nossas vidas a nossa atitude possa ser de completo equilíbrio (era uma excelente pessoa, simpatico, pacato, não fazia mal a uma mosca - no caso dos assassínios conjugais que nos chegam pela televisão), mesmo que na aparência os sinais que damos de nós sejam a própria negação da dependência infantil, nos níveis profundos do nosso psiquismo a dependência emocional e afectiva de cariz infantil continua presente.



É das tais coisas: trata-se de um dos mui variados problemas derivados do facto de sermos humanos, todos, mesmo os mais mal encarados, os mais brutamontes, mesmo os aparentemente mais coriáceos durões…

Essa dependência será factor decisivo no desenvolvimento de uma predisposição psicopatológica e dos nossos sintomas neuróticos e psicóticos – e esses sintomas podem ser tanto efeitos desse estado de dependência infantil, como defesas perante os conflitos que se nos apresentam pela vida fora.

De uma maneira ou de outra estamos tramados. A nossa humana fragilidade é esmagadora, e estamos sempre metidos em sarilhos quanto mais não seja só pelo simplicíssimo acto de existirmos, de vivermos. De termos nascido.



Diz aqui no livro o Dr. Fairbairn que “a quantidade de tensão exigida para produzir um esgotamento varia de indivíduo para indivíduo”, e que “as neuroses se determinam pelo grau que persistir em cada um de dependência infantil, mas também pela qualidade e pela força das defesas mentais que criamos para controlar na nossa vida quotidiana os efeitos perturbadores”.

O grau de dependência infantil numa pessoa é infinitamente variável.

Temos em nós recursos mentais que permitem à nossa psique certas defesas, e ainda melhor, alguma dissimulação do nosso real estado psíquico.



E se calhar, digo eu, é relacionado com o que ficou dito atrás que, para nós, para cada um de nós, os outros é que são malucos, não é? Nós somos sempre aos nossos próprios olhos, ou aos olhos da nossa capacidade de defesa e de dissimulação, os mentalmente saudáveis, os razoáveis que criticam as excêntricas atitudes dos outros. E se calhar…

Mas então… será toda a nossa vida, ou a maior parte dela, feita de defesas e de dissimulações? Mas então… não haverá na maior parte de nós um grão de autenticidade e mesmo os nossos actos mais puros e valorosos são parte do nosso armamento psicopatológico e integram o nosso inconsciente mecanismo de defesas e de dissimulações como única estratégia possível para o enfrentamento das dificuldades da vida e para o relacionamento pacífico com os outros?



Sei lá bem eu disso. Não sou psicólogo.

E por acaso, já que vem à conversa, aqui entre nós, cada vez conheço mais gente que por dá cá aquela palha se entrega nas mãos de um psicoterapeuta. Estou errado, já se sabe, mas, às vezes, até sou tentado a pensar que o andar a tratar-se com um psicoterapeuta é para algumas pessoas uma questão de estatuto social e de valorização intelectual… “ah, é uma rapariga muito inteligente, mas muito especial, com problemas muito complexos… coitada.”

 



Ora ora, quem sou eu para estar para aqui a debitar palpites a respeito de psicologias e psicólogos e psicoterapeutas? É verdade. Sou sincero. Estou apenas a dizer o que me segreda a experiência da vida e o que penso – o que penso, sim senhor, mas que não tenho autorização científica para pensar. Essa é que é essa…

Pois sim, mas leio no Público de hoje (7 de Agosto) que nunca os portugueses consumiram tantos psicofármacos.

Sintomas fóbicos. Sintomas histéricos. Sintomas paranóicos ou obsessivos. Tudo estratagemas de defesa em desespero de causa contra conflitos que poderão muito bem radicar num estado de dependência infantil, e sendo disso o sintoma mais interessante e talvez mais recorrente o da ansiedade da separação.

No entanto, e dando como adquirido que este texto é feito por um curioso e obviamente nunca se poderia destinar a especialistas mas a pessoas comuns, ainda que com reminiscência próxima ou distante desta problemática, e como era este o livro que tinha à mão, entendi-o interessante sob o ponto de vista moral.

Sim, sob o ponto de vista do moral que tanto nos afecta em cada dia nossa vida, tão feita toda ela de separações…

O sentimento de uma doença, por exemplo, e seja ela qual for, é de desamparo, e espevita em nós ancestrais necessidades de um carinho de mãe. Aí está! Estado de doença que prontamente pode desencadear em nós o problema da dependência infantil e nos escava mais fundo na alma a ansiedade de uma separação nem que ela seja apenas por horas.

 Ainda o soldado. O soldado não quer ir para casa porque se sente doente. O soldado sente-se doente porque quer regressar a casa. Quer ir para casa não por estar doente, mas por ficar doente de ansiedade de separação, doente de ansiedade de ir para casa.



O eventual ferimento do soldado em combate pode ser visto por ele como um meio de escapar às frentes de guerra, ou, mais ainda do que isso, um meio de obviar à dolorosa ansiedade regressando a casa.

A incidência das neuroses de guerra pode servir, para o comando, como critério do nível do moral das tropas. E é capaz de haver alguma relação entre isto e a vida que vivemos todos os dias, no trabalho, nos transportes, na estrada, no futebol, nos amores, em casa, na rua. Mesmo em tempos de paz.

Em tempos de paz? Bem, partindo do princípio algo duvidoso de que a vida agitada, competitiva e consequentemente muito traumática que hoje ansiosamente vivemos seja uma vida vivida num tempo de paz, ou uma vida típica de um tempo de paz, só porque não há tiros nem bombardeamentos na nossa aldeia, embora continue a haver mortos e feridos… e assassínios, e violações, e enfartes e desastres de automóvel, e incêndios, e… e…



Tempo de paz, hein? Tempo de paz sempre no perigo da recessão económica? Tempo de paz na incerteza do que os bancos poderão fazer do nosso dinheirinho? Tempo de paz na dúvida angustiante do que os poderes politicos poderão fazer da nossa vidinha? Tempo de paz com a tragédia do desemprego suspensa sobre as nossas cabeças como uma espada de Dâmocles?



E só nos faltava a peste. Só nos faltava o COVID 19. Ele aí está. E segundo alguns, para sempre. E com ele tudo quanto pode haver de pessoal, de social e de economicamente de mau, de ansioso, de depressivo…



Tempo de paz, não é? Pois. Não sei.