terça-feira, 16 de maio de 2017


                  PEREGRINOS

 
(Com Papas e bolos se enganam os tolos, costumava dizer o povo. Mas não é isso o que me traz agora aqui.)
 
 
O que me traz aqui, o que me espevita recordações (e destempadas meditações) foram as incansáveis colunas de peregrinos que vi passar a caminho de Fátima nos idos anos 60.
 
 
Memórias melancólicas da minha vida pessoal, devo dizer.
 
 
Era, tanto quanto julgo saber, a primeira visita de um papa a Portugal, Paulo VI, Maio de 1967. Faz cinquenta anos – e foi nos cinquenta anos das aparições. Era eu moço, era. Moço, mas já não muito menino, pois cumpria uma parte da minha vida militar no Regimento de Infantaria 15, em Tomar, e já nesses dias formalmente mobilizado para a guerra de África.
 
Estava muito mau tempo, lembro-me como se fosse hoje (muito pior do que esteve nestes últimos dias do centenário). Uma massa de ar instável proveniente de uma depressão a noroeste da Madeira influenciava desgraçadamente as condições climatéricas do continente com céus muito nublados alternando com rápidas abertas.
 
 
Com o Sr. Presidente da República trabalharam por esses dias os Srs. Ministros da Justiça, do Interior e dos Negócios Estrangeiros e era recebido em audiência o Sr. Visconde de Asseca.
 
 
Avionetas sobrevoavam algumas áreas do Alentejo a pulverizar terras assoladas por uma praga de gafanhotos.
Na televisão passavam as Melodias de Sempre e, para além das transmissões directas das cerimónias de Fátima, podíamos ver a Vida Sã em Corpo São, do Dr. Ramiro da Fonseca; os Concertos para Jovens, de Leonard Bernstein; Encontro com a Vida, do padre Francisco Videira Pires; Sangue na Estrada, de Filipe Nogueira.
 
 
O Banco Nacional Ultramarino inaugurava uma dependência na Costa da Caparica e os jornais anunciavam a prisão na Guatemala de um homem que se supunha ser nem menos do que Martin Bormann, o lugar-tenente de Hitler.
 
 
Nunca mais me saiu do já esbatido écran interior, no preto-e-branco desse tempo, o quadro dos peregrinos, a pé e de joelhos, a atravessar, desde as primeiras horas manhã até cair a noite, as ruas de Tomar.
Nunca mais me esqueci dessas cenas do Portugal mais pardacento, mais obscuro, mais deprimido, mais derrotado, a exibir em espectáculo público a brutalidade da sua fé religiosa feita de pernas e pés entrapados e ensanguentados.
 
 
Um comunicado do PAIGC, transcrito pelos serviços de informação do Exército, alegava ter infligido 60 mortos às nossas tropas e destruído quatro navios de guerra. Notícias que inflamavam a imaginação temerosa de um mancebo sentenciado a ir lá parar.
 
 
Mas é claro que o boletim das Forças Armadas desmentia liminarmente tais notícias, alegando por seu turno que o PAIGC havia saqueado tabancas e espancado nativos.
 
 
O pianista Arthur Rubinstein estava anunciado para o Festival Gulbenkian.
 
 
Outro comunicado das Forças Armadas dava conta de dois mortos, onze feridos e um desaparecido em resultado de emboscadas às nossas tropas nas fronteiras com o Congo-Kinshasa.
 
 
Os bares do (hoje saudoso) Monumental eram assaltados pela quarta vez. E, nem de propósito, Sammy Davis estava contratado por Vasco Morgado para actuar no mesmo Monumental no próximo dia 19.
Emboscadas no angolano itinerário Ambrizete-Quinau. Flagelações no Leste, em Cavungo, Marco 25 e Lucusse.
 
 
Iam chegando a Fátima romeiros dos países de Leste e do Extremo-Oriente, e algumas das mais caridosas embaixatrizes estrangeiras serviam refeições aos peregrinos pobres.
 
A assustadora visão da fé que se arrastava lenta e dolorosamente pela estrada que atravessava Tomar para ocidente, em cumprimento de promessas feitas à divindade implacável nas graças que concedia, era também para mim uma peregrinação pelo real de um paganismo transcendente.
 
 
O quarto de Paulo VI (3x4 metros quadrados) reproduzia a cela de um frade de Mafra na Casa dos Retiros de Nossa Senhora do Carmo – o mesmo usado nestes dias pelo papa Francisco. Uma lamparina de azeite. Um canapé forrado a veludo verde. Peanha com tampo de madeira. Arcaz trazido do Museu de Arte Antiga. Quadros de Pedro Alexandrino nas paredes.
 
 
Enquanto os peregrinos de negro desfilavam a dor pelas estradas de Portugal, as hóstias para a comunhão geral estavam a ser fabricadas por uma máquina eléctrica – em formato grande para os sacerdotes, em pequeno para o comum dos fiéis.
Grande afluência de jornalistas estrangeiros.
 
 
Entretanto, acabava de sair um novo disco de um certo Chico Buarque de Hollanda, e a grande Palmira Bastos ia a enterrar.
Quando Paulo VI sai do avião da TAP chove torrencialmente, e em Santarém duas senhoras peregrinas que seguiam para Fátima são mortalmente atropeladas por um autocarro.
 
 
Disse Paulo VI: Nós vos saudamos, irmãos e filhos aqui presentes, e vós especialmente, cidadãos desta ilustre Nação que na sua longa História deu à Igreja homens santos e grandes, e um povo trabalhador e piedoso.
 
 
O Presidente do Conselho não conseguiu reter lágrimas de comoção.
 
 
Bernardo Santareno era o dramaturgo português do momento. O Maria Vitória levava à cena António Marinheiro, o Édipo de Alfama (Eunice Muñoz e João Perry) e no Monumental Laura Alves, Rui de Carvalho e Paulo Renato representavam A Promessa.
 
 
No cinema, Paulo Rocha estreava Mudar de Vida, e eu assistia nas ruas de Tomar ao lancinante espectáculo do sacrifício humano e interrogava-me quanto aos labirintos da fé e da vida interior do peregrino.
 
 
Disse Paulo VI: Tão grande é o nosso desejo de honrar a Santíssima Virgem Maria, Mãe de Cristo, e por isso Mãe de Deus e Mãe nossa, que viemos, peregrino humilde e confiante, a este Santuário bendito onde se celebra hoje o cinquentenário das aparições de Fátima, e onde se comemora o vigésimo quinto aniversário da consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria.
 
 
Manuel Conde e David Ribeiro Telles toureavam em Salvaterra.
 
 
A casa Valentim de Carvalho continuava a alugar pianos verticais e de cauda.
 
 
Havia jantares dançantes na Quinta de São Vicente.
 
 

terça-feira, 2 de maio de 2017


 O MEU ENCONTRO COM MARIO VARGAS LLOSA
 
       Por uma manhã de sábado do pretérito Outubro, depois de uma inspecção aos bouquinistes do Chiado onde comprei um romance que muito tinha ouvido gabar mas que nunca me caíra nas mãos, Bouvard et Pécuchet (de Flaubert), resolvi sentar-me na esplanada da Bénard para tomar um café e comer um croissant.
 
 
       E então sento-me. E quem é que eu vejo sentado na mesa mesmo ao lado da minha? Mario Vargas Llosa.
 
 
       (A vizinhança de uma celebridade pode ser irresistível para os importunos.)
       Não acreditei às primeiras. Não. É parecido. Se fosse irmão não seria tão parecido com ele. Que diabo poderia estar a fazer o Prémio Nobel Vargas Llosa em Lisboa, na esplanada da Bénard, por um sábado de inverno às onze e tal da manhã?
 
 
       Mas era mesmo.
       Era, “o olhar límpido de quem viveu reconciliado consigo mesmo” – pelo que li num artigo a ele dedicado no Magazine Littéraire.
       Meto conversa? A propósito de quê? Ah, senhor Vargas Llosa, sou um grande admirador seu, li todos os seus livros e adorei!
Não seria totalmente verdade. Admirador, sim. Descobri-o, e dos primeiros livros que li dele gostei, sim senhor, muito. Anos 70. E depois, mais nada.
 
                                                                                                           
 
       Meto conversa? Quem me garante que ele não é tão antipático como o Nobel Saramago, como o Vergílio Ferreira? Ou como o seu ex e já falecido amigo Garcia Marquez – pelo que me disseram dele mesmo lá na Colômbia – e me responde torto?
       O senhor tinha acabado de tomar o pequeno-almoço e concentrava-se na leitura do El Pais.
 
 
       Fato cinzento formal, camisa branca sem gravata. Sem parecer a idade que seguramente tem. A melena grisalha insubmissa como na juventude.
       Pergunto-lhe pelo pai, mecânico de rádio, que não levava à paciência ter casado com uma mulher com fumos de aristocracia? Não, claro, seria de mais.
 
                                    

       Evoquei para mim os livros dele que tinha lido nos distantes anos 70. A Conversa na Catedral, que adorei, diga-se de passagem. Pantaleão e as Visitadoras, idem. E depois? Menos. Nada. Sim, mais nada, que me lembrasse. E do último que li, O Falador, que, sinceramente, não gostei.
 
 
       E porquê, Don Mario, essa propensão para casar em família – logo aos 19 anos, com a tia; e depois com Patrícia, prima? Gostava de lhe perguntar, confesso, no caso de decidir meter conversa, mas falecer-me-ia a coragem para tanto.
 
 
 
Podia falar-lhe da admiração comum por Faulkner. Podia.
De certeza absoluta que ele não iria confidenciar a um desconhecido estrangeiro que escrever era para ele razão bastante para viver e escapatória para o desespero. São coisas que se dizem nas entrevistas e pronto. Nem me diria que um escritor não deveria ter vergonha de se envolver na acção politica como foi o caso dele – ah, comprei por acaso na latinamérica El Pez en el Água, as memórias dele quando metido nessa acção politica, enquanto candidato presidencial; está para ali esquecido, nem me lembro de o ter sequer folheado.
 
                                                                             
 
Não. Fosse mais novo... talvez. Talvez metesse conversa sem grande cuidado quanto à recepção dele, como conversa descaradamente meti noutros tempos com algumas celebridades, todavia não-literárias.
E então tirei do saco o meu Flaubert, coloquei-o sobre a mesa. Chegou o croissant. Folheei o livro. Comecei a trincar o croissant e com a morbidez adocicada chegou-me uma ânsia.
Vou falar-lhe. Tem que ser. Em todo o resto da minha vida não comerei mais croissant algum ao lado de um Prémio Nobel.
 
 
Vou falar-lhe e estou-me nas tintas se ele me receber mal, e não lhe digo o que penso da produção actual dele, que me parece mais uma operação comercial, acontece com todos os escritores que sobrevivem demasiado em fama e proveito. Vou falar-lhe. E só Conversa na Catedral. E só Pantaleão e as Visitadoras. E só A Casa Verde.
 
 
E lembrei-me a tempo. Não, não vou falar-lhe coisa nenhuma. Lembrei-me a tempo da minha viagem à Colômbia na honrosa e exagerada qualidade de conferencista, e da minha estadia de dia e meio em Cartagena de Indias, quando uma amiga chegada de Garcia Marquez me perguntou se gostaria de o conhecer e de falar com ele. E eu disse imediatamente que sim, entusiasmado. E bruscamente aterrado. Quem era eu? O que é que eu poderia dizer de interesse a Garcia Marquez? Que interesse teria Garcia Marquez em falar comigo, em dizer-me qualquer coisa.
 
 
Felizmente, Garcia Marquez não estava em Cartagena, embora fosse dali e tivesse lá um palacete. Estava no Máxico onde residia na maior parte do tempo. Ainda bem. Livrei-me de passar uma vergonha.
 
 
Vou falar a Vargas Llosa. Eu? Não, não lhe vou falar. O croissant começava a enrolar-se-me na boca.
Chegou o café. Folheei o livro – sim, duas vezes. Vá lá, três vezes. Folheei o livro. Bebi o café. (Exercício breve de escrita estática.) Olhei para o movimento da rua – e pelo canto do olho para a celebridade, interessado no El País. Folheei o livro acabadinho de comprar.
 
 
E de repente lembrei-me. Lembrei-me de ter lido há anos uma entrevista em que ele se considerava um flaubertiano, e que, como Flaubert, acreditava que escrever era uma maneira de viver, e era a maneira de viver dele, que não conhecia outra, que nem mesmo concebia a ideia de outra maneira de viver que não fosse a escrever.
Acredito. E concordo. Na minha miserável insignificância de assistir impotente à passagem do tempo cada vez concordo mais.
 
 
(Tão gira que era, a Patrícia, e está um cavaco...)
E fechei o meu Flaubert. E guardei-o no saco. Por cima da folha do El País ele podia ter reparado no livro e ter pensado “este sacana deste português, leu nalgum lado que sou um flaubertiano, foi comprar um Flaubert e sentar-se nesta mesa mesmo ao lado da minha para me provocar e não tarda nada está a meter conversa comigo a pretexto do Flaubert, e portanto deixa-me cá pagar a conta, dar corda aos sapatos e pôr-me na alheta para não ter que o aturar.”

                       

Não sei. A verdade é que não se levantou. Não pagou. Só virou mais uma página do El País.
 
 
E quanto ao murro inexplicável aplicado em público no nariz do seu então grande amigo Gabo, grande camarada desde os tempos encantados de Havana, do realismo mágico, de Barcelona? Porquê? Política? Porque Gabo andava a fazer-se com a Patrícia? Porque Gabo lhe roubara alguma ideia romanesca?
Nunca se soube. E se eu lhe perguntasse e ele se descaísse a contar essa história proibida a um ancião desconhecido de Lisboa?
 
                                                                            
 
Traga-me outro café, se faz favor. Não, não quero mais nenhum croissant.
A que propósito meter conversa com Mario Vargas Llosa num sábado de sol lisboeta? Porque não deixar o homem acabar de ler em paz o seu El País?
Por que despautério de vida os anónimos da rua sentem tanta necessidade de chegar à fala com os famosos. Para se tornarem menos anónimos? Calcula tu que estive esta manhã a conversar com o Mario Vargas Llosa – e a réplica cada vez mais possível do amigo ou amiga: quem é o Mario Vargas Llosa?


                                                                                    
 
Consta que é um bom orador, um bom conferencista. Recordo uma conferência lida – suponho que era uma conferência, publicada em português num livrinho curto e estreito – em que ele, se não estou confundido, ainda em princípio de celebridade, admitia não ser um talento espontâneo, um escritor inspiradamente torrencial, literariamente ejaculante. Antes pelo contrário, suava as estopinhas, era um trabalhador da escrita. Um trabalhador disciplinado, todos os dias à mesma hora sentadinho à mesa de trabalho como um colegial. À espera. Da inspiração, digamos assim. A tentar laboriosamente o torneio de uma ou duas frases que nem sempre lhe saíam a gosto. A acabar a jornada com a produção de uma página de romance, o que já era um avanço. E no dia seguinte ali caído outra vez. À espera. Da inspiração.
Que pachorra…
 
 
Como me dizem haver pintores que não têm jeito para o desenho (custa-me a crer), também deve haver escritores com pouco jeito natural para escrever… 
De facto, nunca o achei um puro e instintivo contador de histórias, à imagem – por exemplo - do seu confrade Garcia Marquez.
 
 
Vou falar-lhe de política. Foi o que pensei. Não o fiz. Não me apetecia. Vejo-o como um homem da direita correctíssima – passadas depressa as primeiras ilusões castristas – um vulgar neo-liberal de ideias correntias, muito aceitável nas colunas dos jornais do sistema. Pode ser que não seja.
E se não for? Não me interessa na mesma.
 
                                                             
 
O que interessa, Don Mario, é a voz narrativa, os segredos da voz narrativa. Quem conta a história? A pergunta que se deve colocar também o compositor quanto à tonalidade com que vai iniciar o seu novo quarteto de cordas.
Que me diz a isso, Don Mario? Narrativa na primeira pessoa? Narrativa na terceira pessoa? Nas duas?
 
 
Eficácia diegética. Expressividade. Desenho das personagens. Velocidade de escrita – para a velocidade de leitura. Clareza. Obscuridade. Rigor. Caos.
 
 
Adivinho que me irá dizer que o narrador pode ser exterior à intriga. Prevejo que me diga até mais: que nem fará mal nenhum, até pelo contrário, que uma história possa ter mais do que um narrador. E nem me admiraria se me dissesse, quanto ao tempo narrativo e ao tempo real, que não está escrito em lado nenhum que eles tenham que coincidir – mas o povinho leitor gosta das histórias bem arrumadinhas, clarinhas e cronológicas. Essa é que é essa.
 
                                                                                                 
 
O tempo psicológico, sim, percebi, a subjectividade humana que todas as maravilhas pode operar no espaço romanesco, as emoções, claro, já o ouvi – ou antes, já o li, com respeito a estas matérias, não precisamos de falar mais nisso, logo agora, aqui, na esplanada da Bénard, por um sábado de sol agreste…
Como? Já vai? Que horas serão isto? Quase uma da tarde.
Fecha e dobra meticulosamente o El País. Até mais ver, Don Mario, foi uma conversa muito interessante. Acolhe com afabilidade o empregado que lhe traz a conta. Paga. Afinal parece simpático. Terei pedido alguma coisa por não ter metido conversa – conversa real, digo.
 
 
Levanta-se. É alto, direito, desempenado. Pela figuraça nada me diria que andasse perto dos oitentas.
Ah, é verdade, Don Mario, seu maroto, esse romance com a socialite espanhola, parece impossível, com a sua idade, deixar a Patrícia, Don Juan peruano de uma cana, para o que lhe havia de dar…
 
 
Detém-se um minuto numa montra de sapatos de luxo, ao lado da Brasileira. Encaminha-se para os lados do Camões. É capaz de estar aboletado naquele hotel de charme
 
 
 (E agora, passadas algumas horas, me lembro de que Mario Vargas Llosa era para vir fazer uma conferência a Lisboa. Sobre quê? Não sei. Já teria feito naquela manhã de sábado? Não sei. Não averiguei.)
Uma história principal pode ocultar no seu íntimo uma quantidade de histórias. Técnica, técnica, Don Mario.
 
 
Caminha calmamente. Ninguém o reconhece. Ou pelo menos ninguém o interpelou até o ter pedido de vista para lá do quiosque, perto da igreja dos italianos
Pude então folhear o meu Flaubert sem receio de mal entendidos.