domingo, 30 de novembro de 2014

                     AS CALÇAS DO JUIZ ALEXANDRE

        Então não se lembram de o ver, rompendo por entre os repórteres, negando a cara às ávidas câmaras televisivas, a fugir a sete pés pelo campus da Justiça, tronco em blazer azul normal, pernas embaraçadas no excesso de pano das calças?


        Li na Internet um depoimento do advogado Proença de Carvalho, e deduzi que aquelas calças bambalhonas, não sei se já repararam, dois ou três números acima do tamanho mais conveniente a um juiz de instrução, guarda um simbolismo. Simbolismo esse que o advogado Proença de Carvalho me descodificou. É que o juiz Alexandre, a esta hora, já podia estar sossegadíssimo na Relação. Uns números acima, portanto, de ser juiz de instrução. E se não está – e continuo a servir-me do advogado Proença de Carvalho – é porque não quer. E se não quer é porque não gosta cá de relações. Gosta de poder. E nesse poder está compreendido o poder de mandar para a pildra, nem que seja preventivamente, ou provisoriamente, alguns poderosos. Ou antigos poderosos. Quem sabe até se alguns futuros poderosos que pela acção do homem das calças largas, o juiz Alexandre, nunca atingirão o estatuto de poderosos mesmo. Quem sabe…


        O poder? O poder de quê? Ora, o poder modernamente dos mais apetecidos. O poder de julgar, sim, está bem, e o poder do sensacionalismo mediático, é pá este juiz sim, não tem medo deles, é um gajo de tomates negros. “O juiz dos tablóides”: classifica o douto Proença de Carvalho.
                                               

        E esse gosto pelo sensacional poder mediático traduz-se nas mãos únicas do juiz Alexandre e na concentração de uma carga de processos dos mais retumbantes que se possam arranjar aqui na parvalheira.


        O juiz Alexandre já foi bombeiro, é católico praticante, é filho de pessoas comuns, é o Garzon português (o Garzon verdadeiro só não é o Alexandre espanhol porque chegou primeiro do que o Alexandre aos holofotes da justiça), é ele  o justiceiro do Far-West em que a vida institucional portuguesa deu nos últimos tempos. E é sportinguista. E por aí deve ter muito de quem se vingar. Digo eu. Estou a brincar.


        Pois sim, já podia estar refastelado a desembargar num posto acima e não quer. Pela História jurídica, que irá falar dele. Pelas calças.


        No geral, mantém um número de roupa adequado à classe de juiz de instrução. Mas guarda a simbólica para as calças, dois ou três números acima da medida do mediano corpo de um juiz de instrução. E assim o juiz Alexandre está a significar a sua situação profissional aos media, ao mundo distraído e ignaro que não repara em certas coisas. 

                                                                          

      Podia estar mais alto e mais largo e mais comprido na carreira. Não está porque não quer. E não quer porque a sua alma ressentida de sportinguista (de católico, de filho de gente humilde) tem sede de justiça efectiva, e o seu corpo tem fome de notoriedade mediática, e as suas calças são à dimensão do crime que prevalece neste mundo perdido que ele anda a tentar redimir. 


        Ainda fazendo fé no advogado Proença de Carvalho, o juiz Alexandre podia ser o juiz natural – não sei o que seja, mas acho uma designação saudável, ecologista. Sim, podia ser. Podia ser e é. Digo eu. É. Excepto nas calças. Aquele par de calças a drapejar no campus em fuga aos fotógrafos é pouco natural. É o par de calças de quem quer julgar à larga, perigo de fuga e de destruição de provas, mas ó meretíssimo!, cale-se, detenção, mas ó meretíssimo, cale-se, senão também você vai dentro, que isto aqui é tudo à larga, falsificação, burla, branqueamento, fraude fiscal, mas ó meretíssimo!, cale-se, prisão preventiva. Já está. Outro! Mas ó meretíssimo… cale-se. Aqui é tudo à larga. Olhe para as minhas calças. Aqui é tudo pela medida grande. Já reparou nas minhas calças? Banqueiros, deputados, chefes de polícia, agentes secretos, ministros (ou ex-ministros, o que vai dar no mesmo), ex-chefe de governo…


        O sonho dele, antes de reduzir o número das calças, é apanhar um chefe de governo que não seja ex, raios me partam se não é.
        À larga. Tudo à larga. Tudo em grande. Tudo pela medida grande. Barulho. Televisão. Rádio. Jornais. A obra dele. Devia estar na Relação, pois devia, mas não está. A sua relação com a Relação fica-se, para já, pelas calças, bastante grandes para meter nos bolsos delas o mais que vier que dê direito a grande notícia, políticos, financeiros, tubarões, enfim, daqueles que mordem mesmo…

                                                                                  

           E por falar nisto…
      E por falar nisto, e tendo sempre como orientação de estudos as calças do juiz Alexandre, estou prestes a terminar a minha licenciatura de sofá em Processo Penal.
        Para mestrado e doutoramento devo ter que esperar. Esperar pelos recursos de uma data de condenações em 1ª instância. Pelos julgamentos do pessoal do BES e do BPN e do BPP. Pelo julgamento do “animal feroz”. Sei lá…

        Nessa altura já não estarei no mundo dos viventes, com toda a certeza. Mas mesmo assim deixo aqui o preito de gratidão académica aos meus insígnes mestres televisivos, Saragoça da Mata, Sá e Cunha, Rogério Alves, Rangel, Caiado Guerreiro, Inês Serra Lopes, Artur Marques, Magalhães e Silva. Fora aqueles de quem esqueci o nome. Nem sei o que mais haverá para aprender nos bancos de universidade para além do que eles têm ensinado ao povo pela televisão. E tudo isso à pala do juiz Alexandre e das suas calças largas.  


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

          MAS AFINAL ANDA TUDO DOIDO LÁ PELAS  
                               MAÇONARIAS?


Se sempre é nas variegadas obediências maçónicas que se vão tecendo os fios imperscrutáveis dos nossos destinos institucionais, e alguns individuais, vamos lá com Deus (é o que dizem), porquê então se protegeu Sócrates por tanto e tanto tempo e só se lembraram dele agora para entalar o irmão Costa, e agora que o irmão Costa pode ficar de calças na mão por causa dele?
O contrário também serve: porque é que se protegeu e encorajou o irmão Costa no ataque ao poder no partido – e mais à frente no governo – quando já se sabia (um ano de investigações) que uma vez alçado à liderança, e com eleições à porta, o irmão Costa iria levar com a encomenda de culpas do seu amigo e irmão Zé?
Anda tudo doido lá pelas maçonarias, ou quê?


Nunca as palavras do grande alcoólico inglês ao seu jovem correligionário tiveram tanto cabimento aqui na pequena quintarola improdutiva da Europa. “Não olhe para a bancada à sua frente, meu amigo, aqueles são os seus adversários políticos; olhe é para a sua própria bancada, é lá que estão os seus inimigos”, disse o velho Churchill.
Porque, não tenhamos dúvidas, cada vez aparece mais evidente que uma ou várias mãos ocultas andam a manobrar os arames das marionetas. E isto até faz lembrar outros tempos de crise profunda, os tempos da rotatividade partidária dos últimos estertores da monarquia, os tempos da grande desvergonha político-partidária, os tempos da tristíssima desmoralização popular. Só faltava agora um atentado ao rei. E pouco depois a implantação de outra república. E talvez seja isso o que se quer dizer quando tanto se fala de crise de regime, quando tanto se diz que a democracia está doente e que o regime está moribundo. Qual regime?
Quem deve ser desmascarado e em que tempo; e quem deve ser protegido, e por quanto tempo.
O que deve ser divulgado e em que tempo; e o que deve ficar oculto e por quanto tempo.
Questão de gestão do tempo e do segredo – missão das maçonarias. Ou seja, uma e a mesma coisa, porque na política tempo é segredo.


A Crise do Regime

         O regime está em perigo.
Mas qual regime? O regime democrático em si, in toto? O regime do absolutismo partidário? Deixemo-nos de fitas, esse nunca esteve tão florescente. E onde já se viu uma democracia ocidental sem um regime de absolutismo partidário?
E se é a democracia em si que está doente e ameaçada, estará então ameaçada por quem? E qual será a alternativa?
Nada disto as televisões explicam. Ou se explicam eu não as percebo. Ou percebo de mais, e duvido, e desconfio.
Um golpe de Estado é que vinha mesmo a calhar, não? Feito por quem?
Implantação de um regime autoritário que substituísse o absolutismo pluri-partidário por outro absolutismo mono-partidário? E quem o apoiaria? E a U.E. ia nisso? Claro que não. Emalávamos a trouxa e vínhamo-nos embora de Bruxelas e do euro. E por quanto é que a brincadeira nos ficava?
Mas talvez o regime do absolutismo partidário não esteja em perigo só em Portugal. Também por esse mundo. Ou mais concretamente por essa Europa.
E também é conveniente destrinçar as ambiguidades, ou a ambiguidade dos conceitos. Regime. Democracia. Partidarismo.
Se são os partidos que estão em crise, porquê dizer que a crise é da democracia? Ou a democracia está em crise sempre que o sistema partidário o está? Se calhar é mesmo isso que eles querem dizer. Ainda que noutras ocasiões digam que a democracia não se esgota nos partidos.
Mas pronto. Se se estabelece como dogma que não há democracia sem partidos, bate certo, é porque o destino da democracia foi capturado pelos partidos e estará eternamente amarrado a eles e respectivos interesses e não se fala mais nisso.
Mas tudo deve ser mais interessante do que este meu simplismo bacoco…



Segredo de Justiça   

         Ai, filhos, mas qual segredo?
         E vamos lá ver se nos entendemos: ou segredo, ou justiça.
         Não era mau, para a conservação do tal regime e do tal Estado de Direito, que uma alma visse a público, já não digo revelar os escaninhos do insondável, mas pelo menos levantar uma nesga da manta que cobre quem viola o segredo de justiça e quem, desfeito em êxtases orgasmáticos, se deixa violar por ele.
         Sócrates já sabia de tudo. Já sabia que o andavam a investigar. Já sabia que seria encanado mal pusesse os cotos no aeroporto. Já sabia que andava debaixo de olho há muitos anos. Já sabia de quem lhe andava há muitos anos a fazer a folha, a jurar pela pele. E sentiu-se sempre protegido por “um escudo invisível” – invisível para os saloios profanos. E na segunda-feira às dez e meia da noite perguntei-me que teria sido feito desse “escudo”.
         Não me digam que os violadores do segredo de justiça são os mesmos que desmascaram quem eles acham que deve ser desmascarado num dado momento e protegem quem eles acham que deve ser protegido durante um certo tempo. Não me digam que os violadores do segredo de justiça são os mesmos que decidem o que deve ser divulgado num dado momento e o que deve ser mantido oculto por um certo tempo. Tempo e segredo. Não me digam…



As Pessoas Ainda Insistem em Votar Naquilo em que Acreditam

         Ouve-se dizer. Um justificativo para os crédulos cívicos que ainda se dão à maçada de votar ao domingo, depois do banho semanal, no regime do absolutismo partidário. E tem-se ouvido dizer isso aos que mais razões têm para temer o fim do regime.
         Mas em que é que as pessoas acreditam? Em quê e em quem?
         Acreditam nos deputados que se auto-favorecem unanimemente (da esquerda mais esquerda à direita mais direita) com aumentos de vencimento e outras regalias, e que ao cabo de 12 anos de insano trabalho a levantar e a baixar os braços nas últimas filas do areópago podem contar com a pingue reforma que o comum das gentes só aufere, e muito menos pingue, depois de 40 anos a alombar e a aturar patrões e chefes?
         Acreditam nos políticos que embolsam subsídios de reintegração na “vida civil” quando deixam os cargos e que ainda podem contar com uma subvenção vitalícia de alto lá com ela?
         Alguém lhes dá condições para acreditar nisso. Para acreditar em tudo – o que equivale a não acreditar em nada.
Ou ninguém lhes dá condições para acreditar na nobreza e na generosidade dos que se dedicam à coisa pública.
Mas se as inocentes pessoas uma vez postas em face de tudo o que na nossa vida institucional tem acontecido ainda acreditam é porquê? Por estupidez? Por ignorância? Por desatenção? Ou é matéria de fé?
         Se é por medo não se pode dizer que acreditem do fundo da alma. Se é por necessidade, é por interesse e por hipocrisia. Não vale. Isso não é acreditar. Nem é acreditar se for por inércia, tipo “eles são todos uns canalhas, mas deixa ver se votando eu salvo os menos canalhas de todos”. Inércia é desinteresse. Não vale.
         Há os que se excedem no acreditar das coisas e das pessoas. Devem ser esses os que votam. Acreditaram tanto e tantas vezes que não têm coragem de pôr a si mesmo a dúvida de poderem ter andado enganados na vida. Acreditaram tanto, afinal, em quem tinha o dever de lhes dar condições para acreditar e só lhes deu razões para desacreditar, foi o que foi.
         E há os que acreditaram tanto e tão firmemente que se cansaram da realidade. Faz-me lembrar o ateísmo assanhado e primário do que andou no seminário a estudar para padre, se veio embora, se fez à vida, e acabou a julgar que finalmente tinha percebido tudo.



Os Políticos não são Todos Iguais

            Pois não. Nem todos iguais nem todos diferentes.


À Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política

         A mais doce balela impingida pela boca daqueles que de tão traquejados nas manobras de uma e de outra disciplina não acreditam já em nada de elevado e transpessoal, e já só pensam nas suas conveniências pessoais ou de partido – ou de confraria.
         É a conversa de chacha de quem tem alguma coisa a esconder, de quem tem compromissos pelo menos no imediato inconfessáveis, ou alguma culpa no cartório.
         É a conversa dos que se habituaram em 40 anos (e talvez com razão) a infantilizar o eleitorado, os concidadãos, os telespectadores, os leitores, o pagode, enfim, o contribuinte que lhes paga o aumentado vencimento e a sumptuária.
         À justiça o que é da justiça e à política o que é da política? Então onde é que começa a justiça? Na lei, não? E então quem é que fabrica as leis? São os juízes ou os políticos, esses deputados do parlamento?
         A César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Não é? É. Foi daqui que a imaginação pesadona dos comunicadores políticos tirou o nauseante lugar-comum. E quem é César neste caso? Só podem ser os agentes da justiça, os que tratam com o concreto vil. Porque a uma qualidade de Deus, ou de deuses, só se arrogam nos media os da classe política, os eleitos.


A República dos Juízes

         À política-espectáculo algum dia teria de suceder a justiça-espectáculo.
         Então sempre é a implantação de uma outra república aquilo a que temos estado a ver desfilar nos televisores.
         Acabou o regime moribundo do maximalismo partidário e está a ser implantada uma nova república que vai pôr tudo no são, em pratos limpos, nos eixos – como se os juízes também não gostassem de marisco, de música e de fardamentos novos.
A república dos juízes é neste momento presidida, ao que parece na TV, pelo Dr. Carlos Alexandre, o famoso juiz de instrução que pode mandar os mais altos directores-gerais, os mais carismáticos políticos e os mais ricos e influentes banqueiros para a enxovia.
E o que dá a ideia é de que esses juízes, doravante tetrarcas da nova república, se estão a querer vingar de alguém. De quem estarão os juízes a querer vingar-se? Ou porque estará cometida a um juiz a função de vingar? E se está, quem os incumbiu, agora, hoje e não ontem, ou amanhã, ou daqui a um ano?
         Então não é costume encher-se a boca com o Estado de Direito? E a quem caberá mais pertinência para governar esse Estado de Direito do que aos juízes?
         O raio do assunto chega a ter ressonâncias bíblicas!
         Justicialismo! Pois. Quem sabe? Populismo! Oh.
         O que parece começar a saber-se é que, assim de um mês para o outro, passou a caber aos juízes a tarefa de desmontar e desacreditar a trági-comédia da classe política.
Alguém tinha de o fazer, mais hoje ou mais amanhã. E quem haveria de o fazer? Os jornalistas? Ora adeus. Esses que convivem tão confortavelmente com os agentes políticos, que vivem deles e que os fazem viver? Não lembrava nem ao diabo.
         Há os que dizem que a política invadiu os litúrgicos terrenos da justiça. Mas porque não ir ao invés das coisas? Porque não pensar que foi a justiça, segundo directivas vindas do lado dos mais alvos aventais, que se deu à ousadia de invadir a política? Sim, por uma questão de moral, por uma urgência moral…
         À política o que é da política inclui a própria justiça, obviamente, quando estão em jogo homens políticos ou matérias que caem no âmbito da decisão política. Porque tudo é (pode ser) política. Há muito que se sabe disso.
         E se do que se fala é do descrédito, bem, hoje por hoje só o aparecer nos telejornais já torna um homem suspeito. Quanto mais se, nem que seja muito ao de leve, esse homem mexeu numa massa nem que seja de padeiro.
Todo o homem mediático é considerado importante. O ser culpado ou inocente não é mais do que um pormenor. O essencial é que a televisão o tenha tornado importante. E o ser importante e ter amassado alguma coisa, à vista do povo que mais ordena, é o bastante para carregar às costas uma culpa. Logo, é culpado de qualquer coisa até prova em contrário.
Pois é, já estamos na fase histórica da inversão dos sentidos de muita coisa.
                               

O Assalto

         O caso Sócrates apelou à minha imaginação simbólica.
         Sócrates é um símbolo. Um símbolo de uma “nova gente” na vida política.


         Sócrates é o mais desembaraçado e impetuoso aventureiro da nova casta de aventureiros políticos. Sócrates é a última figura de proa da renovação do pessoal político nacional começada nos idos de 80 com o florir da gesta dos habilidosos, dos jovens leões ávidos de imagem, ávidos de fortuna.
Sócrates é a mais recente vergôntea de uma classe de borra-botas sem pergaminho político, de baixa estatura cultural e intelectual, transversal à esquerda e à direita, que se deu ao desplante de assaltar as atmosferas rarefeitas das elites, aproveitando a decadência das aristocracias institucionais e fundacionais da democracia, dos Soares, dos Cunhal, dos Sá Carneiro, dos Freitas do Amaral e de toda a gente de outra cepa que os acompanhou.  

 

         A física tem horror ao vácuo, não é? O apagamento político das figuras que nos habituámos a considerar éticas (não obstante tudo, e na medida do possível em política) deixou espaço vasto aos que na vida política não vislumbraram exactamente uma oportunidade moral de acção em favor do colectivo; a queda dos senhores deixou espaço aos plebeus sem contas a dar à História que assaltaram o poder a pensar primeiro no proveito próprio.
         Sem fazer comparações descabidas – e muito menos falando de atropelos à legalidade – diria que foi Cavaco Silva quem historicamente lhes abriu a porta. Sim, aos recém-chegados sem títulos de nobreza na alta política, e por consequência à abrupta queda de qualidade do pessoal político.


                                                

Foi Cavaco Silva quando foi dar uma volta até à Figueira da Foz para rodar o seu novo Renault – podia ser um Jaguar, ou um Mercedes, mas o estatuto social e financeiro não subia a tanto. E mesmo ele, recém-chegado, já tinha sorvido das aragens mais finas pela mão de um dos últimos grandes senhores, Francisco Sá Carneiro, que o teve num governo seu como ministro das Finanças.


         A partir da entronização de Cavaco Silva foi o assalto dos plebeus ao poder, àquele poder que consiste em outorgar benesses para ser remunerado mais tarde ou mais cedo por essa outorga. (Vidé, entre outras, as personagens da tragédia do BPN).

                        

         Esperteza e aventureirismo. Capacidade de truque – que outros também conheciam mas que tiveram a decência de não aplicar. Subalternização da ética e da cultura. Um á-vontade de iconoclastas de reles escalão. Deserto de ideias. Boçalidade de discurso. Milhões a entrar todos os dias vindos de Bruxelas. Aproveitamento máximo das oportunidades lucrativas. Pragmatismo irredutível. Visão estreita. Anseios de ascensão social (“pai, sou ministro!”). Frequência da margem das legalidades. Desprezo pelo interesse público. Ambição de baixo teor intelectual. Privilégio da prosperidade pessoal e do culto da personalidade.

                                                                

         Sócrates, inocente ou culpado que seja, foi mais um que descobriu o Estado como o grande filão do enriquecimento pessoal – fala-se de malas com milhares e milhões de Lisboa até ao 16eme. arrondissement parisiense, de fraude fiscal qualificada, de lavagem de capitais, de corrupção, não é brinquedo. Não sei se é verdade ou mentira. Bem, alguma verdade deve haver, o problema é saber como cresceram no fundo da gaveta os milhares e os milhões só com o salário (e com a reforma e com a subvenção vitalícia) de primeiro-ministro. Nem sei se, sendo verdade, e tendo sido conseguido com truques menos limpos, alguma vez ele chegará a pagar por isso à comunidade. Quero crer que não – ainda que seja verdade.
Mas também porque havia de ser ele o primeiro a pagar se outros, tantos, ainda não pagaram e se duvida muito que algum dia cheguem a pagar?
Pobre Sócrates. Alguém o protegeu anos e anos. Alguém lhe tirou o tapete. Quem. Quando. Como. Onde.
E porquê.
Na segunda-feira passada. Eles. Porquê também eu gostava de saber. E nunca saberei.
Deve andar tudo doido lá pelas maçonarias…    


          


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

                           FALAR DE SI MESMO


Sou a favor do costume de se beijar as mãos de uma mulher quando somos apresentados. Afinal, é preciso começar por algum lado.


Esta interessantíssima personagem, autor da máxima supracitada, nasceu em S. Petersburgo, foi afilhado de baptismo do czar Alexandre III, e no dia em que nasceu (um bocadinho avermelhado, diz), o pai, contemplando-o, disse à mãe: é um monstro, coitadinho, mas não faz mal, vamos amá-lo na mesma.

                                                             

O pai, diga-se de passagem, era amigo pessoal de Tchaikovski – além de o ser de outras personalidades celebérrimas.
Esta personagem começou a escrever o livro de memórias em que me baseio precisamente no dia 21 de Fevereiro de 1934, dia em que completava 50 anos.


E para escrever as suas memórias, estribava-se num dito de Anatole France: censuram-se as pessoas por falarem de si próprias, e no entanto, é esse o assunto que elas melhor do que ninguém podem tratar.


E dizia mais: gostamos de ler confissões, diários, memórias; os escritores nunca nos aborrecem quando falam dos seus amores, dos seus ódios, das suas alegrias e das suas dores.
E pergunta-se a personagem em causa: Terei o direito de falar do jovem que fui agora que já não sou um jovem?
A personagem que hoje me interessa escreveu que a juventude dura só 15 anos, dos 20 aos 35, indo a idade madura dos 35 aos 50, e sendo a velhice a idade que mais tempo de duração tem. Pode durar 50 anos. É ela, velhice, a nossa finalidade. E sendo ela a finalidade, o melhor é chegar a ela o mais depressa possível.


A personagem a que hoje me dedico dizia boutades. Comecei por uma delas. Mas houve outras. Esta, por exemplo: Uma mulher que fuja com o amante não abandona o marido, livra-o de uma mulher infiel.
Dramaturgo, actor, encenador, cineasta, empresário, director de teatro. De seu nome Sacha Guitry, uma das mais importantes e diversificadas – e divertidas - figuras do teatro francês de todos os tempos – mais o comercial, sim, o de boulevard, do que o intelectual. E era, por sinal, filho de um dos maiores actores franceses também de todos os tempos, Lucien Guitry. Lucien Guitry que trabalhou anos e anos em S. Petersburgo para o czar das rússias, em companhias de teatro francês, então na moda, e que, femeeiro incorrigível, pouco depois do nascimento deste seu segundo filho se divorciou da mãe de Sacha.


Eu não me parecia muito comigo, mesmo quando tinha 30 anos. O meu físico não ia bem comigo.
O ideal seria passar da maturidade à velhice em cinco minutos. Isso seria feito cirurgicamente. Era-se anestesiado ainda jovem e acordava-se da anestesia com cabelos brancos, laço de comendador ao pescoço, respeitável e respeitado, e sobretudo livre da deplorável chatice que é o envelhecer.


Desde pequeno, cinco anos, parece que estava estipulado que Sacha faria em crescido o mesmo que seu pai. A enigmática questão, para o pequeno Sacha, era não saber o que o pai fazia. O sonho dele, desde pequeno, era vestir uma das indumentárias que havia lá por casa, abrir bruscamente a porta de um dos salões, e aparecer com aspecto terrível. Toda a gente ria. O sonho dele, e o maior prazer, era poder provocar o riso pela surpresa. E dizia ele aos 50 anos que não mudara muito desde esse tempo infantil.

                                                                                

Olhava para o pai, que ainda então era um homem novo, e fascinava-se, e via-o viver espantosamente admirado por todos.
Que teria ele a mais do que os outros?
 Porque é que ele me parecia diferente das outras pessoas? Que haveria nele de tão precioso?
Havia. Era o futuro.
Quando se acaba de ouvir um trecho de Mozart, o silêncio que se lhe segue ainda é dele.
Certas noites, Sacha observava o pai.


O pai acabava de jantar e mudava completamente de feições.
Erguia uma sobrancelha, apontava para um dos criados da casa e dizia:
- Senhor marquês, sois um gentilhomem e eu um carroceiro. Mas isso não me impedirá de vos dizer que todo o homem que insulta uma mulher é um cobarde.
Logo a seguir, o pai acusava-se das mais abomináveis malfeitorias e sem que os criados parecessem surpreendidos. Quando estava já pronto para sair, acariciava o filho e dizia com extrema doçura:
- Clémentine, por um beijo seu daria toda a minha vida.
Claro está que era o pai a repassar o seu papel para o espectáculo dessa noite.
Onde vai o papá à noite? – pergunta Sacha à mulher que cuidava dele.
- Vai trabalhar para ganhar para ti. Vai representar, filho.

                                                                                        

Sem dúvida que tem mais graça em francês. Il va jouer ce soir. E Sacha viu-se e desejou-se para conciliar o sono nessa noite, pensando que se podia ganhar dinheiro en jouant, e sem saber que jouer era – podia ser - sinónimo de travailler.
Em criança, chega a representar uma pantomima para o czar seu padrinho, fazendo de filho de Pierrot, e sendo o pai o próprio Pierrot. Na hora da ceia ficou sentado defronte de um jovem em cintilante farda branca que seria o futuro czar Nicolau II.
Sacha Guitry tinha um irmão mas velho, Jean, que ficara em Paris com a mãe, entretanto divorciada do pai, como já informei.
E um dia, a estada do grande Lucien Guitry na corte russa terminou, e ele e o filho regressaram a Paris.


Sacha e o irmão reencontraram-se depois de alguns anos de separação. Sacha chegava das rússias vestido de peluche verde e tendo na cabeça um largo chapéu enfeitado com uma pluma.
Os dois irmãos olharam um para o outro com alguma surpresa - o meu irmão tinha já aquele olhar espiritual e gozão que fez mais tarde o seu charme, e eu tinha aquele meu ar algo embrutecido que conservei por muito tempo.
Bom, a mãe empurra-os um para o outro. Abraçam-se. O irmão dá-lhe um beijinho rápido e pergunta-lhe baixinho ao ouvido:
- Porque é que eles te vestem de macaco?
Na escola, Sacha Guitry andou bastantes anos. Mas não passou da 6ª classe. Não sei a que corresponderia essa 6ª classe nos dias portugueses de hoje, mas a verdade é que nunca passou da 6ª classe.
Na época, em França, quando se mudava de colégio, para o colégio onde se ia repetia-se obrigatoriamente o ano que se interrompera no colégio anterior. Ora Sacha Guitry passou por onze colégios internos, suponho que sem concluir a 6ª classe, ou o 6º ano, em nenhum deles, e tendo que repetir essa 6ª classe ano após ano, colégio após colégio. Até que desistiu. O teatro começou a impor-se na vida dele. Daí o ele dizer muito mais tarde que o pouco que sabia o devia à sua ignorância. Frequentou onze colégios e andou n a 6ª classe até aos 18 anos.


Nunca sabemos, aos dez anos, a que ponto somos inteligentes. Grande verdade, digo eu. Se soubéssemos…
E aos dez anos - continua ele – também não sabemos bem o que significa compreender. E ficamos admirados com tudo o que compreendemos quando tínhamos dez anos. Compreender é quase adivinhar, e nós adivinhamos tudo quando somos crianças.
Está visto que era um tempo em que não havia televisão nem Internet e ele vivia enclausurado num colégio interno.
Mas porque é que os nossos pais não se incomodavam muito com a maneira como tratavam os filhos nos colégios? Esqueciam-se de que também tinham sido crianças. Ou porque queriam que os filhos fossem tão infelizes quanto eles tinham sido em crianças?

                                                                               

Sacha Guitry tinha 16 anos e escrevia a sua primeira peça de teatro. Foi no Colégio Mariaud que ganhou o gosto pelo trabalho. Trabalho… mas, atenção… o trabalho a que não era obrigado nas aulas. Ganhou o gosto pela escrita. E era severamente punido de cada vez que um dos professores o apanhava a escrever… mas que mania que este rapaz tem… onde terá apanhado este vício?
(Bem, qualquer um destes dias, com a importância que está a ter a cultura neste mundo de finanças, estaremos na mesma…)   
Chama-se recreio ao momento que deixamos de trabalhar. Está errado. Não devia haver nada de mais recreativo do que o trabalho.
Os professores, a coisa mais horrível de suportar para ele: o tempo que nós perdemos na época mais preciosa da nossa vida, a hora em que a inteligência se abre. Nessa hora, os nossos pais confiam-nos aos padres, que nada sabem da vida, ou aos professores, que terão talvez demasiadas queixas da vida para conseguirem fazer-nos gostar dela.
Achava ele que ao princípio da instrução cada criança devia era ser confiada a homens notáveis. As aulas deviam ser apaixonantes. Mas para isso seria preciso que tivéssemos professores apaixonados pela grandiosa missão que cumpriam e não uns pobres diabos, normalmente medíocres, e tantas vezes mesmo reles – isto é Sacha Guitry a falar, note-se.


Somos extremamente inteligentes entre os 8 e os 14 anos e a maior parte de nós são-no menos entre os 14 e os 20 anos. Porquê? Porque quando saímos do colégio não sabemos nada da realidade da vida, saímos desarmados, razão pela qual fazemos os maiores disparates e as maiores patifarias por volta dos 18 anos.


E, enfim, terminei os meus estudos… sem nunca os ter feito.


Entretanto, o pai vivia a sua celebridade pelos teatros de Paris, nomeadamente nas companhias de Madame Sarah, e sendo ele o partenaire favorito (e segundo alguns também amante) de Madame Sarah - Sarah Bernhardt, já se percebeu.

                                                                                

A esposa ideal é aquela que permanece fiel ao marido, mas que tenta parecer tão charmosa como se o não fosse.


Os domingos dos filhos dos actores, pelo menos nestes tempos, eram bem diferentes dos dos filhos de quaisquer outros profissionais. Íamos dar um beijinho a Madame Sarah todos os domingos como outros iam à missa. E assim aconteceu durante uns dez anos.
Sacha deixa o colégio, começa a deitar corpo, o teatro preside à vida dele. Mme. Sarah Bernhardt era, para os filhos do seu colega Lucien Guitry, um ser a um tempo fabuloso e familiar. Quando lá iam ao domingo os irmãos entravam no salão da grande dama cada um com o seu bouquet de rosas ou violetas na mão. Sabiam que ela não era uma rainha, mas chegava para compreenderem que estavam diante de uma soberana.

                                                      

Saíam de casa de Mme. Sarah e iam almoçar com o pai. Depois de almoçarem com o pai iam ter com a mãe (que também era actriz, sem no entanto ter nada que se parecesse com a fama do pai) e iam para o Chatelet vê-la representar (dos bastidores).
Nessa época a mãe estava a fazer uma peça extraída do romance de Julio Verne Miguel Strogoff. Por vezes era substituída por outra actriz também amiga deles, chamada Marie Laurent, e quando tal sucedia Sacha ficava sem compreender patavina do entrecho da peça. Aquela personagem de Marfa Strogoff era a mãe. Quando aparecia outra cara e outro corpo a ser Marfa Strogoff a história para ele perdia todo o sentido.


Aos domingos à noite jantavam com a avó paterna, e depois de jantar iam ao Theatre de la Renaissance ver o pai representar. E tornavam a ir dar um beijinho a Mme. Sarah Bernhardt.

                                                                 

Sarah Bernhardt desempenhava um papel capital na vida dos filhos de Lucien Guitry. Era ela a pessoa mais importante do mundo para eles, depois do pai e da mãe. Oh, as árvores de Natal de chez Mme. Sarah, como eram maravilhosas!
Sacha e o avô materno (que era novelista de pouco sucesso) subiam a Rue Royale. 


Na esquina do Faubourg St. Honoré estava um cego a pedir esmola. O avô mete a mão ao bolso, tira umas moedas e dá-as a Sacha para ser ele a dá-las ao cego.
- Toma, dá este dinheiro a esse infeliz.
Sacha deitou as moedas no chapéu do cego e voltou a dar a mão ao avô. Andados quatro ou cinco passos, diz assim o avô:
- Sacha, devias ter cumprimentado o cego.
- Porquê, avô?
- É preciso cumprimentar os pobres a quem se dá uma esmola.
- Ó avô, mas a este não valia a pena… era cego.
- Sim, mas podia ser um falso cego.
Nota Sacha Guitry que o avô era daquelas pessoas que têm sempre resposta para tudo.

                               
         

O círculo dos amigos do pai Guitry era frequentado por alguns dos mais ilustres nomes das letras e das artes da França de então, Maupassant, Messager, Feydeau, Octave Mirbeau, Jules Renard, Alphonse Allais, Bourget, George Bataille, Anatole France, Tristan Bernard, Edmond Rostand e mais uma quantidade de outros, célebres na época e hoje esquecidos.

                                   

Lucien Guitry morava no número 26 da Place Vendôme. Morou lá entre 1894 e 1910.

                                                                 

Aqueles homens, alguns deles autores dramáticos de renome, eu via-os de um pequeno salão contíguo, via-os chegar, sentarem-se à mesa, e começar a ler ao meu pai os seus manuscritos. E como eram apaixonantes as longas conversas que se seguiam a essas leituras! Diziam-se belas coisas àquela mesa. Que conselhos se davam – e se seguiam escrupulosamente! Quantos finais de actos eram imediatamente modificados! Quantas promessas de sucessos foram feitas ali, feitas e cumpridas! E projectos para a próxima temporada!
Diz Sacha Guitry que a vida parecia bela àqueles dois homens que se procuravam e se sabiam indispensáveis um ao outro, o dramaturgo e o seu actor; o autor e o seu indispensável intérprete. Porque, evidentemente, todos sonhavam ser representados por Lucien Guitry, e todos escreviam as suas peças e talhavam os protagonistas masculinos à medida do actor dos seus sonhos – e também à medida da actriz que mais ambicionavam para lhes dizer as réplicas: Sarah Bernhardt, pois claro.


Uma vez (estava ele presente) um senhor de grande talento foi cear a casa do pai para lhe ler a sua última peça. Cear, não cear, conversa para aqui, conversa para ali, o começo da leitura da peça - em voz grave e monótona – deitou para a uma da manhã. Logo na segunda cena, o pai pôs a mão em viseira sobre os olhos desculpando-se de estar mal desmaquilhado, e ele imediatamente compreendeu o que se iria passar. Cinco minutos depois o pai adormecia pesadamente, enquanto o autor recitava o seu texto na mesma voz grave e monótona.
Por debaixo da mesa, o pé esquerdo de Sacha chegou-se para junto do pé direito do  pai e quando sentia chegar o fim de cada acto dava-lhe um toque de aviso, o pai acordava e dizia “está bem, está muito bem”.
Eram quase três horas da manhã quando a leitura terminou. O pai levantou-se e disse ao autor: “meu caro amigo, a sua peça é admirável, mas não lhe vejo nenhum papel para mim, e sou eu o primeiro a ficar desolado por isso…”
Sacha Guitry ainda muito novinho assistiu até à primeira leitura que Edmond Rostand (autor do Cyrano de Bergerac) fez de uma das suas mais famosas peças, L’Aiglon. E Guitry pormenoriza que foi na casa da Place Vendôme e que foi num tamborete Luis XIV forrado de veludo vermelho que Rostand pousou o seu manuscrito. E o leu, pretendendo imitar um pouco do estilo e dos tiques de Sarah Bernhardt – que de facto haveria de criar a peça e com um sucesso formidável.


“Magnífico, magnífico!”, disse o pai no fim da leitura. “Então?”, disse Rostand. “Então… não vejo o que possa impedir-me de interpretar essa peça admirável”. Mas o pai adivinhava aquilo que o impediria mesmo de a representar. A personagem dele não entrava no último acto, tal como não aparecia no primeiro. Bom, um actor do calibre de Lucien Guitry não entrar no primeiro acto ainda vá que não vá… mas morrer antes do fim da peça…
E Rostand percebeu, alegou uma indisposição súbita, retirou-se, e foi às pressas a casa retocar o seu original de forma a poder contar com Lucien Guitry no elenco de estreia.

                                                                                     

Um dos homens do círculo do pai que Guitry admirava mais do que qualquer outro era Octave Mirbeau. Porque Octave Mirbeau todas as manhãs acordava cheio de cólera, convencido de que centenas de injustiças seriam cometidas nesse dia. Mirbeau era dos que se exasperavam por antecipação. Cada pessoa com quem Mirbeau falava era considerada à partida como seu adversário. Podia aconselhar a visitar uma exposição de Monet como quem faz uma provocação. E era um homem notável, como todos os que estão sempre dispostos a bater-se por uma ideia; como todos os que podem cometer as maiores injustiças ao serviço da justiça.


Dizia-se que todos os homens de letras detestavam Octave Mirbeau. Guitry diz que não era bem assim. Era ele que os detestava.
O jovem Sacha Guitry – atenção que este livro de memórias só contempla a vida de Guitry até aos 20 anos – passava as férias grandes metade em Aix-les-Bains com a família de mãe, e metade em Breuil, numa mansão de campo, com o pai.
Havia frescas florestas em redor, bosques encantados com alamedas arborizadas em forma de ogiva por onde ele passeava com o pai, ouvindo-o recitar versos numa voz que ressoava ali como numa catedral.
Fico aborrecido ao ver o cinema tomar nas nossas cidades o lugar que era do teatro. Foi o cinema e não o teatro que reconstituiu o passado aos olhos do grande público, em lugar dos nossos cenários de tela de má qualidade. O cinema mostrara-lhes exércitos em marcha, grandes batalhas navais, caçadas reais, interiores luxuosos, e mostrara-lhes homens jovens no papel de homens jovens e mulheres bonitas no papel de mulheres bonitas.


Na grande casa de Breuil havia galinhas, coelhos, cerca de trinta cães, uma águia, grandes pássaros exóticos e uma chimpanzé, chamada Lakmé, que sabia jogar às escondidas e que almoçava calma e limpamente com eles à mesa. Um animal terno e melancólico que também costumava passear de mão dada com o pai Guitry pela ala do bosque ogival e a quem o pai também recitava versos.
A maior grosseria que podes fazer a um homem que roubou a tua mulher é deixá-la para ele.
Na companhia de Sarah Bernhardt, segundo a tabela de serviço, os ensaios diários estavam marcados para a uma e meia da tarde. Mas a essa hora ainda só os figurantes tinham aparecido. Os actores, consoante o seu estatuto, iam chegando, agora um, daqui a bocado outro. Lucien Guitry não chegava ao teatro antes das duas e meia. O autor, no caso de um ensaio do L’Aiglon, Edmond Rostand, aparecia por volta das três.

                                                                           

Às quatro, entrava Mme. Sarah Bernhardt. Toda a gente se levantava e se descobria, e formava-se a fila para lhe beijar a mão. Como em cada dia de ensaio estavam no teatro cerca de 60 pessoas, o beija-mão podia prolongar-se por mais de meia hora. Findo o beija-mão, Mme. Sarah retirava-se para o seu camarim e vestia uma roupa mais funcional. E o ensaio começava. Mas interrompia-se mais ou menos às cinco horas por causa da chávena de chá de Mme. Sarah. E toda a companhia a rodeava e a admirava enquanto ela bebia a sua chávena de chá.


Tudo o que Sarah Bernhardt fazia era extraordinário, mas as pessoas que a rodeavam achavam absolutamente natural que ela não fizesse senão coisas extraordinárias.
Até que chega o dia em que na vida do jovem Sacha Guitry era chegada a hora de escolher uma profissão; ou, com mais propriedade talvez, de iniciar uma carreira. Actor? Autor? Cenógrafo? Decorador?
Não paravam de me perguntar o que faria eu mais tarde na vida. Insuportável. Eu nada sabia acerca de mim próprio.
A vocação teatral. Uma questão de moral. Para o filho de um burguês comum essa vocação teatral é (ou era, na época) uma espécie de fruto proibido, sonho de vida flauteada. O que não se passa (ou não se passava) com o filho de um actor. Para um filho de actor a profissão de actor era pura e simplesmente interdita. Pelo menos em princípio. E porquê? Porque era preciso ser digno de um nome. Tu, actor?, dirá o pai burguês, querendo dizer tu, herdeiro de um nome honrado e sem mácula, queres ir para essa vida degradante? O pai actor dirá ao filho: tu, actor!, querendo dizer tu, meu filho, queres arriscar comprometer o brilho do nome que te dei? Pensa bem, meu filho…
Sim, uma questão de moral…


Diz Guitry: uma pessoa não se torna actor como se poderia tornar notário.
E o pai burguês diria ainda: que o filho de um actor siga as pisadas do pai ainda é como o outro…
E o pai actor ainda diria: acredito mais na sincera vocação para o palco do filho de um burguês do que na do filho de um actor…
E Sacha informou o pai da sua disposição de seguir uma carreira teatral. E o pai respondeu-lhe numa carta.
Meu querido filho, precisamos de falar sobre esse assunto, e seguramente iremos falar. E pensa bem: homens, mulheres, príncipes, princesas, criados, patrões, ladrões, assassinos. O importante não é saber o seu papel. Sabe-se sempre o papel. O importante é possuir em si todas as expressões. Estás a ver como é simples?

                                                                      

E se o pai se opusesse? Sacha estava com medo. Actor? Autor? Decorador? Qualquer dos métiers se encaixava nas aptidões dele – ou que ele julgava ter.
Pode-se escrever, ou pode-se desenhar em casa, sozinho, em sossego, sem dar satisfações a ninguém. Ou trabalhar sob pseudónimo. Mas ninguém se pode esconder para ser actor de comédia. Pode usar-se um nome artístico, é certo, mas não se pode mudar de cara. Pode-se representar em casa, pode-se, para a família e para os amigos. Mas para se trabalhar num teatro é precisa a concordância de um empresário, de um director, de um autor, e dos outros actores também.


São duas da manhã de um domingo. Sacha Guitry acaba de escrever uma peça em verso de um acto, o avô entra na sala de jantar.
- Que estás tu aí a fazer?
- A trabalhar.
- Tu?
- Acabo de escrever uma peça.
- Uma peça? Então vais-me ler imediatamente o que escreveste…
O avô ouviu a peça, emocionou-se, felicitou o neto, confessou-lhe o seu espanto… e aconselhou-o a pôr aquela sua peça em um acto bem no fundo de uma gaveta.
Escrevera a peça por divertimento, tal como desenhava por prazer. E como escrevera aquela poderia escrever uma centena de outras peças. Porquê metê-la na gaveta? E pensando assim não seguiu o conselho do avô.


Na noite de 15 de Abril de 1902, no Théatre des Mathurins, a pequena peça em verso, de um acto, de Sacha Guitry, foi estreada. Não desagradou. 
                                                                                       

Um crítico respeitável, Gaston Leroux, até disse dela que provocava um riso enorme e tranquilo.
Mas Sacha continuava a querer representar. Um empresário não vai fora disso e quer mesmo pôr o nome dele no cartaz em letras garrafais, apesar da evidente falta de métier do rapaz. Era inquietante. Sacha percebeu. O homem odiava Lucien Guitry. E Sacha não aceitou o presente envenenado.
- Mas, meu filho, se tu te sentes mesmo um comediante, porque não? - era a continuação da conversa com o pai. - Não há profissão melhor do que a de actor. E já ficas sabendo que não farei nada para te impedir. Mas precisas de trabalhar. Vá lá. Recita-me aí qualquer coisa…
Ele recitou um monólogo do Cid.
- Não está mal. Mas podia estar melhor. E para estar melhor precisavas de umas lições. O problema é… com quem?
- Mas papá…
- Não, comigo não. Porque me faltaria a paciência e a severidade…
 E encaminhou-o para um seu colega.
- Ó homem, vai para o palco e representa – disse-lhe um outro colega do pai. - Representar é a melhor maneira de aprender a representar.


Oito dias depois, Sacha Guitry estreava-se como actor em Hernani. Um papel pequeno, já se vê. E um desastre. Não por causa dele, ou de algum dos outros actores. Foi por causa do meu irmão, que estava na plateia com uma seita de gigolos e gigolettes que desatavam às palmas e num berreiro de cada vez que eu abria a boca…
Estreadas outras suas peças, depois de ter sido aplaudido e depois de ter sido pateado e assobiado, só então, Sacha Guitry se considerou um verdadeiro autor dramático.


Diante do amor existem três tipos de mulher: aquelas com as quais nos casamos, aquelas que amamos e aquelas que pagamos. Todas essas podem muito bem estar numa só. Começamos por pagá-la, depois a amá-la e, por fim, casamo-nos com ela.
E cumprida uma formidável carreira no teatro, no cinema e nos salões mundanos, Sacha Guitry, rico e célebre como actor, autor, encenador e personagem do grand monde parisiense (havia quem lhe chamasse o Tout Paris), é preso no dia 23 de Agosto de 1944, por volta as 11 da manhã.


Cinco homens levam-no à Mairie do VII Arrondissement. Vai ser julgado como colaboracionista, e com a mesma sorte estão, entre outros, Maurice Chevalier, Mistinguett, Marcel Pagnol, Céline…
Culpam-no de inteligência com o inimigo mas não há conteúdo incriminatório objectivo. Era admirador confesso de Pétain, sim, e depois?
Cá está ele a ser interrogado.


Sentiu-se abandonado por todos os amigos e admiradores do tal tout Paris
E escreveu: o que eu estou hoje a pagar não é pelas minhas actividades nos últimos quatro anos. São os 40 anos de felicidade pessoal e de grande sucesso artístico que eles não me podem perdoar.
Fica encarcerado em Fresnes e é libertado dois meses depois.
O jornal comunista L’Humanité escreverá: O comediante nazi foi pura e simplesmente libertado.