quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018


      TERREIRO DO PAÇO, CINCO E MEIA DA TARDE
 
 
 
 
 


No dia 1 de Fevereiro de 1908, eram 11 e meia da manhã, o rei, a raínha e o príncipe D. Luis Filipe metem-se no combóio em Vila Viçosa.
Em Lisboa, o infante D. Manuel tivera estudos da parte da manhã; almoçara com o Visconde de Asseca e com o perceptor Kerausch e depois de almoço sentara-se ao piano a tocar, talvez o Tristão, que nesse dia pela primeira vez era dado a ouvir em S. Carlos.
 
 
Na Casa Branca (Alentejo),o combóio real descarrila. A hora prevista da chegada ao Barreiro, 4 e um quarto, vai ser protelada devido ao incidente. Chegará às 5 e 20 – outros dirão 5 e 30 e outros ainda 5 horas prefixas. Seja como for, cerca de 80 pessoas aguardam na estação fluvial.
Há menos gente a aguardar o rei do que era costume, visto D. Carlos se ter incompatibilizado com os dois grandes partidos monárquicos. Nesse tempo, a Estação de Sul e Sueste era em frente ao torreão oposto àquele defronte do qual ela é hoje. Ficava no enfiamento das arcadas do lado poente da praça.
 
 
Há um grande silêncio no Terreiro do Paço. Teixeira de Sousa, da janela do seu gabinete nas Alfândegas, fuma o seu charuto e sente esse silêncio como sinistro.
                                                                                                 
 
Raúl Brandão diz dessa tarde que está azul, morna, diáfana, sem uma núvem. Jorge de Abreu achou a tarde excessivamente carregada. António Cabral diz que  a luz do sol jorrava, vivíssima, sobre Lisboa e que o Tejo faiscava.
 
                                                                            
 
Fabrício de Lemos, um conspirador, anota que era a luz indecisa e triste de um dia invernoso e húmido. Rocha Martins conta que dealbara a manhã um pouco nublada,mas suavizara-se e enchera-se de alegre sol.
Vá lá a gente da crédito às crónicas de época e aos testemunhos oculares…
A raínha vem à frente, de escuro vestida, casaco de marta e chapéu enfeitado com flores. D. Carlos a seguir, farda de generalíssimo, azul, com capote e debruns vermelhos, boné e luvas.
O príncipe: de sobretudo escuro, gravata de seda vermelha às riscas, chapéu alto e luvas castanhas. Uma menina sua afilhada oferece à raínha um ramo de flores. Há uma pequena recepção.
 
 
E chegam as carruagens. Suas Majestades e Sua Alteza Real aprestam-se para nelas tomarem lugar. As carruagens chegam fechadas, segundo alguns, e é D. Carlos que manda abri-las. João Franco desaconselha-o. Segundo alguns.
 
                                                                                                             
 
O coronel Alfredo de Albuquerque, encarregado das viaturas e equipagens reais, dirá que tinha todos os automóveis em Vila Viçosa e que andava aflitíssimo porque se aproximava o dia do regresso real a Lisboa e não queria mandar para o Terreiro do Paço os landaux, queria ter no Terreiro do Paço os automóveis. Que era preciso mandar vir de Vila Viçosa.
 
 
E vieram. Na véspera da chegada da família real ao Terreiro do Paço já os automóveis estavam em Lisboa prontos a servir. Mas o coronel recebe um telefonema a dizer para não mandar os automóveis para o Terreiro do Paço, para mandar as carruagens. Um telefonema de quem? Do próprio rei D. Carlos.
 
 
D. Carlos era corajoso, destemido, detestava as protecções e seguranças policiais. Tinha havido a revolta abortada de pouquíssimos dias antes e o rei, cuidadoso com a imagem, qual político pós-moderno, não se queria mostrar intimidado. Terá sido por isso que recusou os automóveis que melhor o protegeriam de algum percalço.
Mas as capotas das carruagens estão descidas quando surgem no Terreiro do Paço para levar a real família ao Palácio das Nacessidades. Quem as manda levantar? O rei? João Franco? Nem um nem outro? Alguém foi. O rei e João Franco de comum acordo: uma hipótese. E sempre nesse sentido de encenação, de preservar a imagem do poder, de mostrar que a revolta de 28 de Janeiro não chegara para intimidar o rei, e para evidenciar uma tranquilidade e uma normalidade públicas. Que de facto eram falsas. 
 
                                                                                       
 
Os reis e os príncipes sobem para a carruagem. D. Carlos com D. Amélia à sua direita; em frente, em sentido contrário ao do trajecto, os dois irmãos, D.Luis Filipe e D. Manuel. E a carruagem, tirada a quatro cavalos, começa a andar, vagarosa.
 
 
Segue-a o resto do cortejo. Os condes de Figueiró e o marquês do Alvito, a seguir. Na terceira, o visconde de Asseca, o vice-almirante Brito Capelo e o major Waddington. O coupé de João Franco é o quarto da ordem. Pouca gente no Terreiro do Paço, meia dúzia de curiosos.
 
 
D. Amélia vai a contar ao filho mais novo as peripécias do descarrilamento do real combóio quando se ouve um tiro. D. Carlos sorri, a pensar que era mangação. D. Manuel, que não ouviu esse abafado tiro primeiro, caracterizaria depois a situação em termos de caça, uma batida, o primeiro tiro que se dá para começo de uma caçada.
 
 
D. Manuel vê um homem de barba preta abrir o gabão e tirar do corpo uma carabina, e diz para si mesmo “que má brincadeira”. O homem da barba preta sai do passeio coloca-se seis metros atrás da carruagem, ajoelha, põe à cara a Winchester semi-automática e faz fogo. D. Manuel percebe então que não se trata de brincadeira.
Começa a fuzilaria. É tudo muito rápido e embrulhado.
 
 
O Terreiro do Paço está quase deserto, ou assim parece, na certeza de que polícia não se vê. Se durante o ministério dele, na ditadura, cometeu erros, para mim é o menos – escreverá D. Manuel seis meses depois dos factos. Mas quando se dizia que isto ia mal, que havia anarquistas no país, ele não acreditava.
 
 
Pois, João Franco não tomara providências. Era o seu último grande erro. Se erro foi. Porque parece tão inverosímil num governante com responsabilidades sobre as polícias o ter menosprezado os perigos do momento que uma pessoa chega a duvidar de tanta incompetência.
De baixo das arcadas sai um outro homem, o Costa, que faz a abordagem das regras, sobe ao estribo esquerdo da carruagem e e dispara à queima-roupa na nuca do rei. O Buiça dispara uma segunda vez. O Costa, ao disparar a pistola, parece querer certificar-se da morte do rei e de mais ninguém. Escreve Raul Brandão: a raínha, louca de dor, sacudia o Alfredo Costa com um ramo de flores, “então não acodem? Não há quem me acuda?”
 
 
Meu pobre pai, uma das balas entrou pelas costas e outra pela nuca, que o matou instantaneamente. Infames! Para completarem a sua atroz malvadez e a sua medonha covardia fizeram fogo pelas costas.
 
 
O rei foi atingido na coluna e teve morte imediata. D. Amélia, de pé, na carruagem, grita e agita o ramo de flores que levava. Chega a bater com ele na cara do Costa – ou de um outro dos cinco regicidas que andavam pelo Terreiro do Paço, talvez o José Nunes.
Na confusão, junto com os dois assassinos, é morto um rapazito, um caixeirito que tinha ido à estação dos correios da Rua do Arsenal deitar uma carta. Mais tarde haveria quem dissesse era o mesmo que andara no dia anterior a dizer pela baixa que o rei ia ser morto.
 
 
A carruagem vira para a Rua do Arsenal. O príncipe Luis Filipe levanta-se, ergue a sua pistola e descarrega-a sobre o Costa, e nesse instante mesmo cai varado com uma bala na cara, enquanto o Costa cai da carruagem e é atacado à espadeirada e a tiro por guardas que então aparecem. D. Manuel é atingido no braço direito.
Para onde conduzir a carruagem? Para o Hospital da Estrela! Não! Já aqui para o Arsenal! 
 
 
Já no Arsenal, D. Amélia vai direita a João Franco. Minha adorada mãe disse-lhe, ou antes, gritou-lhe, com uma voz que fazia medo: “mataram el-rei! Mataram o meu filho!” Minha pobre mãe parecia doida. Eu também não sei como não endoideci.
A condessa de Figueiró gritava: não havia um polícia! Não havia soldados! A culpa é  deles, do governo!
Um certo capitão Figueira tinha ido ao Ministério da Fazenda e ao sair ouve tiros. E corre. Apanha o Buiça a fugir. O capitão desembainha a espada e trespassa o corpo do Buiça com ela. Ao retirar a espada do corpo do Buiça diz para um polícia: “Tome conta deste homem.”
 
 
O Buiça verga-se, cai de joelhos, engatilha a arma e atira contra as pernas do tal capitão Figueira. Uns quantos homens filam o Buiça, que se debate. Levam-no para a Rua do Arsenal e à esquina ouve-se um tiro. Alguém acabara por matar o Buiça a tiro.
 
 
Tudo se passou em segundos.
O rei está morto! O rei está morto!
Tiros. Espadeiradas a torto e a direito. Gente a fugir: os inocentes e os culpados desconhecidos. Mataram o rei! Mataram o rei! Mas já estão mortos os que o mataram. E o príncipe? O príncipe? Os cocheiros chicotearam asperamente os cavalos. O cortejo entra no Arsenal. Os sinos continuam algures a tocar.
 
 
Por toda a baixa lisboeta corre a notícia. Mataram o rei, mataram o rei. Mil versões da tragédia começavam a circular. Nos cafés era conforme as tendências de cada um. Ora o rei era um pulha que até escrevia cartas anónimas à própria mulher, ora era um soberano exemplar, ora era ele o animador da ditadura, ora a memória do rei haveria de vir a ser reabilitada.
 
 
Numa versão de Raúl Brandão, no Arsenal, consumada a desgraça, perante os corpos, pergunta a raínha a João Franco: foram portugueses? Resposta: foram. Torna a raínha: aí tem o que o senhor fez dos portugueses. Ao que acorreu a raínha-mãe, D. Maria Pia:  diziam que o senhor era o coveiro da monarquia, mas o senhor foi pior, foi o assassino do meu filho e do meu neto.
 
 
Mataram o rei! Mataram o rei!
Os executores iriam por João Franco, não apanhariam João Franco a jeito e, já que estavam ali, e já que o rei ia a passar, aproveitaram, inflectiram de improviso as suas intenções, e mataram o rei, deixando vivo e intacto o que se pode supor ser o objecto primeiro do seu ódio. Houve quem se inclinasse para este cenário. Aquilino Ribeiro parece que foi um dos que o defenderam, ou pelo menos o sugeriram.
 
                                                                                    
 
Claro que se torna difícil imaginar que uma operação desta magnitude possa, numa questão de minutos, em cima do joelho, descambar para uma acção diferente do plano inicial. Raúl Brandão difere de Aquilino, e baseia-se em confidências que gente de destaque lhe teria feito e garante que o plano visava exclusivamente o rei.
O príncipe Luis Filipe, escorrendo abundante sangue da cara, ainda dava sinais de vida ao chegar ao Arsenal, ao ser depositado numa maca. O rosto do rei arroxeara, os lábios enegreciam. Deitam-no num colchão velho e esburacado que há por ali. Desapertam-lhe o dolman e o sangue jorra. Mas há sempre quem tenha esperanças. Um médico do paço, chega-se aos corpos e pede fósforos.
 
 
Acendendo um fósforo, o médico aproxima levemente a chama dos dedos do rei. Morto. Observa a ferida na cara do príncipe. Morto.
Esvaziam-se os bolsos do rei. Um relógio de aço com corrente de ouro; um lenço; um charuto; um saco de moedas; um revólver tirado do estojo. O rei pensara mesmo num ataque. O revólver estava pronto a funcionar. O chão em volta dos corpos está inundado de sangue. Chega um padre. Acendem-se tochas. Vê-se um Cristo pendurado numa parede. Tocou um clarim. Os corpos são cobertos com as bandeiras azuis e brancas.
 
 
Os palacianos presentes prevêem uma revolução. Fala-se de assassinos à solta na noite de Lisboa.
Inventaria-se o landau real e descobrem-se marcas de 17 balas.
 
 
João Franco chegou ao Arsenal. Deu de caras como oposicionista Júlio de Vilhena. Vilhena ofereceu os seus bons ofícios, uma trégua política. Pergunta de que extracto social eram os assassinos. Rapazes do comércio, respondeu João Franco.
Os rapazes do comércio estavam estendidos, mutilados, no átrio da Câmara Municipal, eles e o pobre rapazito que ia deitar uma carta no correio.
A noite é de um silêncio aterrador. Tropas patrulham as ruas.
 
 
No quartel de Artilharia 1 há soldados em pé de sublevação, à espera de um sinal. Os notáveis revolucionários presos na sequência do 28 de Janeiro mal sabiam do acontecido, mas também esperavam qualquer coisa. Noite fora, há tiroteios. As sentinelas dos quarteis percebem vultos rondando e atiram a matar. O velho político José Luciano de Castro confidencia a amigos: receio bem que os regimentos venham para a rua e a revolução rebente esta noite.
 
 
A revolução não rebentaria nessa noite. Mas não tardaria muito, mesmo nada, a comemoração dos regicidas. Os retratos deles apareciam nas montras das lojas, ainda os cadáveres reais estavam quentes.
Na noite mesma do atentado, João Franco apresentava-se no paço com o texto da proclamação real para assinar. Mostra-a primeiro a D. Amélia. Nessa altura D.Maria Pia pergunta-lhe: acha que a morte do rei será muito sentida? Não tenho notícia da resposta dele, mas não pode ter andado longe de… ah, sim, majestade, muito, muito sentida.
Rocha Martins conta que já chegavam os embaixadores e príncipes estrangeiros para as régias exéquias, mas Lisboa, lambida na suavidade do seu sol de inverno só tinha olhos para as vitrinas onde se mostravam os bustos dos assassinos, craionados ou em fotografia.
 
 
Os nomes do Buíça e do Costa corriam heroicamente de boca em boca. Se as mulheres choravam os reais assassinados, os homens compungiam-se pelos assassinos. Abriam-se subscrições para acudir aos filhos do Buiça.
As exposições  nas montras podiam manifestar duplas intenções. Se havia comerciantes que as exibiam por sincera fé republicana, outros faziam-no como chamariz publicitário, tanta era a gente que se aglomerava diante dos retratos. E eram aos milhares os que desfilavam perante os cadáveres. E por todo o lado se  improvisavam comícios.
 
 
Nas ruas passava gente de luto carregado sob olhares irónicos ou indignados. Alguns atrevidos mais sarcásticos indagavam dos enlutados se lhes tinha morrido alguma pessoa de família. Corriam os boatos: haveria grossa balbúrdia no dia dos funerais régios; estalaria a revolução. Houve várias prisões no seguimento do atentado. Entre os presos figurava até um músico de S. Carlos.
 
 
Os funerais régios foram no dia 8 de Fevereiro, um sábado. A pompa foi muita.
 
 
Dois dias depois, a 11, foi o funeral dos regicidas, depois de secretamente feitas as autópsias.
Temia-se o tumulto. Por isso se decidiu a cerimónia para a madrugada, três horas. Rocha Martins ornamenta: a lua branqueara as ruas ladeadas de ciprestes e alvejavam os túmulos; ao longe, uma fita prateada destacava-se. Era o Tejo, na serenidade da madrugada fria.
 
 
Durante muito tempo,à porta do cemitério, vendiam-se postais. Olha o retrato do Buiça e do Costa! Olha o retrato dos mártires! E nas tabernas os cantos ao fado celebraram-nos por muito tempo.
A este dia seguiram-se dois anos que foram uma espécie de tempo de ninguém.
 
 

 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

                           O DUO DA MORTE

O estranho caso da carta do carro eléctrico.
Conta Jorge Morais no seu livro Regicídio, a Contagem Decrescente uma peripécia algo incrível.
 

 
Que o conde de Paçô Vieira tomou um eléctrico e que ao chegar à Rua das Pedras Negras se sentou no lugar deixado vago por um passageiro que saiu.
O passageiro saiu mas deixou esquecido sobre o banco um jornal. Jornal esse em que Paçô Vieira pegou e de dentro do qual caiu uma carta. Carta endereçada a Mr. Buiça, Colégio Moderno, Rua das Pedras Negras. O conde abre a carta. Vem de Vila Viçosa. É assinada por Pad’Zé – o Dr. Alberto Costa, conhecido boémio reviralhista, de quem falei no post passado.
 
 
E diz assim a carta: Querido amigo, Simão vai a Lisboa no dia 20 com o podengo mais novo. Se foi combinado o que sabes, mata-o tu que és bom atirador. Que Lúcifer te proteja. Se não, espera pela entrada triunfal no dia 2.
(É preciso dizer que D. Carlos era chamado nos meios conspirativos o Caçador Simão.)
 
 
Alfredo Luis Costa parece ter sido o chefe daquele grupo de comandos regicidas, o grupo dos 18.
 
 
Alfredo Costa tinha escritório de representações na Rua dos Douradores. E tinha só 23 anos. Aquilino conhecia-o de muito perto, descreveu-o no livro póstumo de memórias Um Escritor Confessa-se e pareceu-me apropriado copiá-lo.
Alto, desengonçado de corpo, fisionomia séria, quase triste, grandes olhos castanhos, lentos a mover-se, com uma fixidez que parecia de sonâmbulo e era de atenção, um nada de barba loura no queixo, o nariz levemente amolgado sobre a esquerda. Homem de uma só peça, crente até ao iluminismo interior, resoluto, imediato, pronto a reagir, mesmo ofegante no que fazia.
 
 
Alfredo Costa não tinha estudos especiais. Na versão de Aquilino educou-se como pôde. O republicanismo de que fazia alarde, Aquilino julgava-o um caso de consciência, soberano e despótico. E diz que não lhe faltava nada para carrasco ou herói. Ai de quem lhe manifestasse uma perplexidade. Ai de quem lhe faltasse à palavra. Diz Aquilino que uma ruptura no dogmatismo a que submetia tudo sofria a condenação da sua boca e o  correctivo dos seus punhos. E Aquilino conclui que na lógica moral da pessoa de Alfredo Costa compreendia-se a vocação para conceber o acto terrível. O Buiça era o braço direito do Costa. Tinha 32 anos. Aquilino escreve largamente sobre ele também.
Tão despótico era nele o instinto da sociabilidade que não sabia enxotar da sua beira indivíduos de má nota e malandrins garantidos.
De corpo era de estatura meã, rosto fino, tez branca, a que dava realce a barba preta com tons de fogo. A testa era espaçosa com arcadas supraciliares marcadas, sem demais. As linhas fisionómicas duma delicadeza que, fora das mulheres, desagrada. Só os olhos, muito móveis e azuis, mas sem crueza, traíam nele o ânimo expedito e a índole que, além de resoluta, era exaltada.
 
 
Era extremoso pai de família, o Buiça. No dizer de Aquilino galante, franco, liberal, corajoso, blasonador, incoerente muitas vezes, parlapatão mais de uma, sem equilíbrio na vida, sem disciplina moral. Viúvo. Aquilino não se esquece de informar de que o homem mantinha uma relação com uma menina de Lisboa. Dois filhos, Elvira e Manuel, sendo deste último o próprio Aquilino padrinho de baptismo. 
E no dizer de Rocha Martins o Buiça era homem de fácil, e também fugaz, irascibilidade. Fácil, fugaz, mas capaz de tudo enquanto ela lhe durasse. Lá na terra chegara uma vez a correr de pistola na mão atrás de um primo para o matar. Quando era sargento de Cavalaria arriava forte e feio nos recrutas madraços que se baldavam aos exercícios.
 
 
Havia nos seus movimentos, quando calmo, uma coquetterie sem pedantismo, natural, confiando só em si, embebido do tipo do Suvarine do romance Germinal (de Zola), revolucionário descrente dos outros, sentindo-se o único homem de acção. Tinha o seu quê de desordeiro, era admirador dos russos nihilistas, temperado no soalheiro do café lisboeta.
Segundo alguns, o atentado ao rei teria sido organizado nos seus últimos trâmites pouco antes de 3 da madrugada do próprio dia 1 de Fevereiro numa quinta ali aos Olivais, segundo uns Quinta do Ché, segundo outros Quinta do Chéché; e sequentemente a uma reunião conspirativa havida a 30 de Janeiro numa casa de Xabregas.
 
 
Do derradeiro encontro conspirativo na dita Quinta do Ché, dá nota um dos participantes, Fabrício de Lemos. Foi numa adega subterrânea.
Transcrevo directamente, conforme o li no livro de Jorge Morais, que por seu turno cita o texto de Fabrício de Lemos…
Uma mesa de pinho tosca e suja e alguns barris e mochos cosntituiam todo o mobiliário. Espalhadas, algumas velas enterradas em gargalos de garrafas vazias projectavam uma luz vacilante sobre as escuras paredes tristes e lacrimosas da humidade.
 
 
Impressiona-me este romantismo tardio e heróico nas prosas revolucionárias. Parece um atentado concebido e consumado por encenadores de ópera. Ainda por cima, para reforçar os dramatismos, diz Fabrício de Lemos textualmente que chovia a potes, e que os camaradas entraram pela porta estreita que dava para a azinhaga.
Eramos 15 portugueses e 3 estrangeiros: um italiano, um francês e um catalão. 18 homens ao todo. Decididos a levar a cabo o mais justo dos intentos, embora perigoso e difícil. O Buiça é o primeiro a pedir a palavra.
Buiça concordava que tirar a vida nem que fosse ao mais celerado dos homens, seria, pelos mandamentos do seu próprio ideal, desumano e injusto.
Embora a nossa causa seja toda bondade, justiça e perdão, não hesito neste momento único na História do nosso desgraçado país, em vos pedir a morte de todos os descendentes de uma dinastia de hipócritas e de cobardes que sobre nós acarretaram todos os males e todas as vergonhas. Aqueles que não sejam da minha opinião que se  levantem.
Refere quem ouviu o Buiça neste lance que a voz dele era profunda e convicta, que a fisionomia dele era a de um apóstolo, e (sic) frouxamente iluminado pela chama indecisa das velas.
 
 
E ninguém se levantou contra a proposta do Buiça. Os braganças estavam a partir daquele momento, condenados. A seguir falou o Costa.
Amanhã morrerão todos, embora à custa das nossas vidas. Sentimo-nos felizes por poder dá-las pela nossa causa. E ouviu-se um apoiado retumbante. A morte dos braganças estava votada à unanimidade.
 
 
Plano de acção: um primeiro grupo de seis homens a esperar pelo rei no Terreiro do Paço. O Buiça faz uma exigência: que esse grupo seja formado só por conjurados portugueses. Porquê? Por ser o de maior perigo e o de maior glória. Os outros ficariam emboscados junto à rampa de Santos e em Alcântara.
 
 
Escapados os reis do primeiro fogo no Terreiro do Paço, cairiam seguramente em qualquer das outras duas emboscadas. O que me parece uma conclusão demasiado apressada, fácil, quase infantil. A partir do momento em que no Terreiro do Paço soassem tiros contra a carruagem real as circunstâncias mudariam imediatamente. E os itinerários seriam alterados, a guarda reforçada, todas as precauções certamente tomadas
Na adega da Quinta do Ché, de dentro de um barril, ultimadas as combinações, começaram a surdir pistolas e carabinas dos últimos modelos a ser distribuídas por todos os presentes.
 
 
 
Talvez seja interessante e dramático prosseguir, indo atrás dos conspiradores (mais uma vez com a devida vénia ao livro O Regicídio, A Contagem Decrescente, de Jorge Morais).
Era madrugada quando sairam da Quinta do Ché. Parara de chover. A azinhaga estava deserta. O Buiça, o Costa e o Frabrício, sem trocarem palavra, põem-se a caminho de Sta. Apolónia.
 
 
Em Sta. Apolónia tomam uma tipóia e chegam ao Terreiro do Paço. O Costa e o Fabrício convidam o Buiça para cear qualquer coisa. O Buiça recusa. Despedem-se. O Buiça mete-se pelas ruas da baixa.
Sabendo que ia morrer no dia seguinte – o que deve ser sensação arrepiante -, o Buiça escolhe as últimas acções da sua vida. Entra numa casa onde o aguarda uma pequena. Uma pequena que o narrador desta cena caracteriza como uma burguesinha ansiosa e tímida.  
        Esse dia 1 de Fevereiro de 1908 calhou a um sábado.
E esse dia 1 de Fevereiro de 1908 foi efectivamente o último dia da vida de pelo menos cinco pessoas.
 
 
O professor Manuel dos Reis Buiça sai de casa da amiga da baixa (a que chama Maria). São oito da manhã. Vai ao Colégio das Pedras Negras e começa a dar as suas aulas.
A meio da manhã diz ter que acompanhar um filho ao hospital. E vai mesmo a um hospital, o Hospital Inglês, então situado na Rua do Alecrim, e onde alguém lhe fornece um varino – um grande e largo capote.
Volta à casa de Maria, pega na carabina que lhe tinham fornecido e mete-a debaixo do capote.
 
 
Nessa mesma manhã de 1 de Fevereiro de 1908, o caixeiro Alfredo Luis Costa vai ter com um fulano.
- Temos umas contas a fazer - diz a esse fulano, segundo conta Raúl Brandão. - Ó homem deixe lá as contas, não é pressa, vimos isso depois.
Alfredo Costa ri-se.
- Depois… hoje vamos matar o João Franco. Esperamos por ele na Alexandre Herculano. O Buiça leva a espingarda e dá um tiro na orelha do cavalo, e eu atiro-me para dentro da carruagem e mato-o como um bicho. E talvez até fosse melhor no Terreiro do Paço, porque assim liquidavamos toda a cambada.
Na certeza de que não passará do dia seguinte, Alfredo Costa procurará ainda outro amigo e encarrega-lo-á de proteger uma sua irmã, seguro de que morrerá no dia seguinte.
- Ò homem, deixe-se disso, você vai mas é almoçar comigo…
- Não, amigo, tenho a certeza de que não escaparei.
 
 
Chega a ser tocante o amadorismo romântico-exibicionista destes tenebrosos conspiradores que contam aos amigos os atentados régios que tencionam praticar como se fosse a coisa mais natural desta vida.
Mas, pelo que sabemos hoje, talvez não se tratasse bem de amadorismo este exibir de intenções criminosas ao desbarato. Talvez fosse exactamente para chamar as atenções sobre indivíduos da arraia miúda, desconhecidos dos meios políticos, uns malucos, uns estabanados a quem um belo dia deu na cabeça matar um rei e um primeiro ministro. E isto por forma a manter encobertos os notáveis, os mandantes.   
Ao fim da manhã do dia 1 de Fevereiro, os cinco operacionais destacados na reunião da Quinta do Ché vão Avenida acima fazer uma espera a João Franco logo à saída de casa.
 
 
Chegam à casa de João Franco e não vêem a carruagem e percebem que o ditador já saíu e que mais uma vez trocara as voltas aos conspiradores. Tocante ingenuidade a destes conspiradores. Aliás, a acreditar em Raúl Brandão, um desses operacionais ter-se-á queixado do desleixo do Manuel Buiça na operação. O Buiça ter-se-ia descuidado com as horas e chegado tarde ao atentado. Bem português, vamos lá...  
 
 
O cóio principal dos mais assanhados conspiradores de 1908 era o Café Gelo – que ainda hoje existe, completamente desfigurado, já se vê, em relação ao tempo de que falo, e até ao tempo em que foi ponto de encontro de surrealistas, e até ao tempo em que eu próprio, de vez em quando, lá parava.
Tanto Buiça como Costa vão almoçar juntos – outra imprudência gritante, e suspeita, só lhes faltava andar com um cartaz a anunciar o que iriam fazer.
Almoçam juntos numa sala das traseiras do Café Gelo. Comem umas omeletas e bebem cerveja. E o Buiça escreve uma carta. Maria, escrevo-lhe horas antes de uma morte inevitável…
 
 
A minha querida Maria tinha, sem saber, uma poderosa rival – a pàtria – pela qual me sacrifico consciente de cumprir um dever. Vou morrer matando – ironia curiosa para muitos, talvez incompreensível e portanto condenável. O tempo porém tudo explica e cura, razão porque algum dia serei compreendido. Morte dolorosa me espera, certamente, mas o amor que voto à minha causa e a sua querida recordação me darão sobejas forças. Um último adeus e perdão. Manuel.
Estranha e trágica moral de certas pessoas: serem os paus-mandados para actos extremos a mando de outros, convencidos de estarem a sacrificar-se, como diz o Buiça, por uma causa, pela sua moral pessoal, quando na verdade, a coberto da luta pela sua causa, mais não fazem do que servir interesses que lhes são estranhos, que talvez sejam mesmo baixos, ou imorais. E tudo isso ao ponto de sacrificarem a vida.
Os tempos eram outros, sem dúvida. E muito mais trágicos.
No Café Gelo, nas últimas disposições, o Costa teimará com o Buiça. Não quer que ele se meta activamente na refrega.
- Não, você é melhor não, porque tem filhos.
 Mas o Buiça não se demoveu, e lá mandaram vir mais uma rodada de cerveja.
 
 
Falhado o primeiro objectivo, vão atacar o segundo. Vai para as quatro da tarde. Manuel Buiça e Alfredo Luis Costa descem a Rua do Ouro.
 
 
A muitos quilómetros da Rua do Ouro, numa taberna das proximidades da cidade da Guarda, dois criados de José Alpoim param o carro onde viajam para tomar um copo. Tinham ido levar o patrão a Espanha, fugido, e regressavam. Vêem as horas. Quatro da tarde.
 
 
Talvez já tocados pelos copos dizem alto e bom som:
- A estas horas, amigos, já não há rei em Portugal. A estas horas já o rei deve estar morto.
Porque, de facto, a essas horas, já a família real deveria ter chegado ao Terreiro do Paço.
Às quatro da tarde, Manuel Buiça e Alfredo Costa já estão no Terreiro do Paço.
 
 
O Costa desaparece entre as arcadas ocidentais e o Buiça fica ao pé do quiosque a conversar com o amigo conspirador Fabrício de Lemos. Um bufo da polícia, chega-se a ele, que é alto, tem umas barbas pretas compridas, enverga um capote enorme, é uma figura ameaçadora, que dá nas vistas.
 
 
- Que é que você está aqui a fazer?
 O Buiça sorri ao polícia à paisana. E responde-lhe suavemente:
- O mesmo que o amigo faz… desejo ver passar o nosso rei e saudá-lo como merece…
Em reunião secreta num hotel parisiense, entre políticos portugueses e revolucionários franceses, se deliberara o assassínio de  João Franco, sem dúvida, e também o do rei, dependendo das circunstâncias mais ou menos favoráveis. Esse encontro deve ter contado com os auspícios do movimento anarquista internacional, activíssimo nessa época por toda a Europa. É neste contexto anarquista que o ministro português em Paris informa Lisboa de um provável atentado.
 
 
Manuel dos Reis da Silva Buíça, viúvo, residente em Vinhais, distrito de Bragança…
O testamento do Buíça fora redigido, admissivelmente na sequência dos acontecimentos revolucionários do dia, logo a 28 de Janeiro de 1908, e reconhecido por tabelião.

 
Ficaram-me de minha mulher dois filhos, a saber, Elvira, que nasceu a 19 de Dezembro de 1900, na Rua de Santa Marta, e que ainda não está baptizada nem registada civilmente, e Manuel, que nasceu a 12 de Dezembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria. Ambos vivem comigo e com a avó materna nas Escadinhas da Mouraria, 4, 4º andar esquerdo…
Minha família vive em Vinhais, para onde se deve participar a minha morte ou o meu desaparecimento, caso se dêem…
         Meus filhos ficam pobríssimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que sofrem…
Peço eduquem os meus filhos nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade que eu comungo e por causa dos quais ficarão, porventura, em breve, órfãos…
 
 
Um dia destes estaremos no Terreiro do Paço por volta das cinco e meia da tarde.