quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017


shakespeare 401– berlioz
  


     Não, não, mil vezes não, músicos, poetas, prosadores, actores, pianistas, chefes de orquestra, de terceira, de segunda ordem, ou mesmo de primeira, os senhores não têm o direito de usar os Beethoven ou os Shakespeare como pretextos para as vossas artes e para os vossos gostos – escreveu Berlioz.
     Porque Shakespeare estava a ser abastardado, rearranjado, adaptado, desfigurado.
 
 
       Mas o precedente fora aberto muito antes do tempo de Berlioz e refinara-se pela acção do mais ilustre dos shakespearianos do século anterior, o actor David Garrick, que punha Romeu e Julieta a encontrar-se uma última vez, quando no original Julieta encontra Romeu já morto e por isso se suicida.
       Garrick achava o desfecho de peça muito patético e arranjara outro mais correcto e menos incomodativo para os espectadores (pensa Berlioz).
 
 
Também o “insolente engraçadinho” chamado Nahum Tate é fustigado por Berlioz por ter inventado, em 1681, um novo desenlace para o Rei Lear que passara a ser frequentemente usado pelos teatros.
Ainda pergunta Berlioz quem teria sido o abominável versejador que pusera na boca de Cordelia tiradas brutais e expressão de paixões de todo alheias ao nobre e terno coração da filha de Lear.
 
 
Sim, esses seriam culpados do crime mais nefando por terem atentado contra a reunião das mais elevadas faculdades humanas a que se dava o nome de Génio. Esse seriam dignos do pelourinho da pública indignação. E o romântico Berlioz acrescenta, valendo-se do último acto de Ricardo III: “sê maldito! Desespera-te e morre! Despair and die!”
E outros assassinatos literários objurgou Berlioz: esse Ricardo III estraçalhado; as novas personagens que alguém acrescentara a A Tempestade; as mutilações de Hamlet e de Romeu e Julieta. E por aí fora…
“Toda a gente pretendeu dar lições a Shakespeare!”, clama Berlioz.
É graças a Shakespeare que Berlioz encontra a mulher com quem virá a casar; é graças à mulher com quem virá a casar que Berlioz encontra Shakespeare. Harriett Smithson, actriz britânica em tournée pela capital francesa em Setembro de 1827. 
 
 
A “explosão” shakespeariana nos palcos parisienses, e a correlativa Miss Smithson, foram designados por Berlioz como “amor mortal” e “letargia moral”. Enfim, representaram o maior drama da vida dele.
(Às vezes não há paciência para estes românticos.)
 
 
Pois então, foi a chegada a Paris de uma companhia inglesa de teatro que deu a conhecer Shakespeare ao público francês. Berlioz foi à estreia dessa companhia, no Odéon. Hamlet. Em Ofélia recitava Miss Smithson – que cinco anos mais tarde seria a Senhora Berlioz.
Choque de um “prodigioso talento”, de um “génio dramático” com a imaginação do compositor, foi o que foi. Com a imaginação e com o coração. Foi o que o levou a aguentar aquele Shakespeare, aquele poeta de quem Miss Smithson era a inexcedível intérprete.
 
 
Shakespeare esmagara Berlioz. E tudo assim, de chofre. Um raio que lhe abrira o céu da arte em grande estrondo (palavras dele), iluminando-o, desvelando-lhe as profundidades mais remotas da alma humana.
(Estes românticos…)
E recordava com desprazer as ideias difundidas por Voltaire sobre Shakespeare… este macaco de génio chegado ao Homem em missão encomendada pelo diabo…


 
Berlioz sai do Teatro Odéon, terminada a representação de Hamlet, siderado por mil pensamentos e sentimentos e jurando nunca mais se expor ao fogo shakespeariano.
Mas não resiste e arranja bilhete para as récitas de Romeu e Julieta.
 
 
Tão difícil seria a um francês sondar as profundidades do estilo shakespeariano como a um inglês advertir as finezas e a originalidade de um La Fontaine, de um Moliére. Se os dois poetas franceses pertenciam a um rico continente, Shakespeare, por si só, era o mundo.
Um crítico viria a publicar que o seu amigo Hector Berlioz, depois de assistir às representações de Miss Smithson em Julieta, teria gritado: “eu vou casar com aquela mulher!”. Ou mais: “e será inspirado por aquele drama (Romeu e Julieta) que escreverei a minha mais longa sinfonia!”.
Berlioz negará ter dito alguma coisa de parecido, e notará que o crítico lhe atribuíra uma ambição maior do que a quer verdadeiramente tinha.


 
O sucesso das representações de Shakespeare em Paris por esse mês de Setembro de 1827 foi empolgado pela nova geração literária, os srs. Victor Hugo, Alexandre Dumas, Alfred de Vigny, mas ficou essencialmente a dever-se (segundo Berlioz) à arte de Miss Smithson. Nunca uma actriz suscitara em França tamanha exaltação pública, nem a imprensa francesa publicara alguma vez alguma coisa de parecido acerca de uma actriz.
 
 

E a seguir àquele Romeu e Julieta é que Berlioz se esforçou mesmo para não voltar ao Odéon – cirandava pelas redondezas quando sabia que a companhia estava de folga – para não se deixar abater por novas provocações da alma. Ficara com tanto medo de Shakespeare como o medo que tinha das dores físicas.
E passou meses de embrutecimento desesperado, sempre a pensar em Shakespeare e na inspirada artista que fizera delirar Paris em Ofélia e Julieta, comparando com tristeza a glória da actriz com a sua triste insignificância artística.
 
 
Até que, com o fito de fazer falar de si, de poder emergir da obscuridade, se encheu de coragem e tratou de ir ao Conservatório pedir ajuda para a organização de um concerto com peças de sua autoria.
Mas passemos por cima das peripécias dessa organização que Berlioz tão detalhadamente narra nas suas Mémoires e cheguemos ao dia 5 de Dezembro de 1827, que é quando está anunciada para a Opera-Comique uma récita a benefício do actor Huet, constando de dois actos de Romeu e Julieta a ser interpretados, por quem havia de ser, por Miss Harriet Smithson.
 
 
Berlioz – nunca simpatizei com ele talvez pela escassa modéstia – ansiava por ver o seu nome associado no cartaz ao de Miss Smithson; queria fazer-se notar, ter sucesso aos olhos dela, e então vai de pedinchar ao director da Opera-Comique o favor de incluir no programa da récita de beneficência uma abertura orquestral de sua autoria. (Waverley.) E o director não o desiludiu.
Berlioz chega ao teatro para ensaiar a abertura no momento em que os actores estão a acabar de ensaiar Romeu e Julieta. Berlioz encara com eles, Romeu traz Julieta nos braços, Berlioz solta um grito, corre a esconder-se, Julieta assusta-se e aponta Berlioz aos companheiros, “cuidado com aquele homem… os olhos dele não prometem nada de bom…”.
 
 
Berlioz fugiu do teatro e só voltou para o ensaio da abertura passada uma hora, quando os ingleses já lá não estavam.
A abertura foi tocada. Berlioz nada teve que dizer, ouviu-a (diz ele) como um sonâmbulo. Os músicos aplaudiram-no e ele teve esperanças quanto ao efeito da abertura, sobre o público, evidentemente, mas mais sobre Miss Smithson.
 
 
Na récita propriamente dita sonhou com um bis exigido pelo público, um bis que impressionasse Miss Smithson. Mas qual quê, a abertura foi bem executada, sim, teve palmas, sim, Miss Smithson deve tê-la ignorado completamente, Miss Smithson entrou em cena, representou o seu papel, triunfou uma vez mais e foi-se embora a cumprir contratos na Holanda.
Berlioz põe-se a sofrer de amor, a sofrer a solidão de um mundo vazio, e as torturas que lhe circulam nas veias, e o desgosto de viver mais a impossibilidade de morrer, romântico…
 
 
Paganini andava doente, passara uma temporada em Paris, conhecera Berlioz, partira para Marselha e depois para Nice. Berlioz escrevia-lhe a pedir conselhos para a grande composição que trazia em mente, “não tenho conselhos para lhe dar, você deve saber melhor do que ninguém o que mais lhe convirá fazer”.
Uma grande sinfonia coral, era o que era. Inspirada em Romeu e Julieta, o tema sublime e sempre novo.
Escreveu em prosa todo o texto que seria intercalado nas partes instrumentais e o poeta Emile Deschamps versejou-o.
 
 
Vida ardente viveu-a ele enquanto compunha, nadando num mar de poesia, acariciado pela brisa louca da fantasia, exposto ao sol de amor que ilumina Shakespeare, e acreditando estar perto da ilha maravilhosa onde foi erigido o templo da arte – isto foi Berlioz que escreveu, eu só traduzi. As cartas que escreve passam a ser terminadas com Shakespeare, Hamlet, “o resto é silêncio, adeus”.
Em 1832, Liszt, que conhecera dois anos antes, tenta chamá-lo à razão e dissuadi-lo daquela ideia persistente e algo insana de desposar a actriz irlandesa.
 
 
De facto, dos esforços para se faze valer junto da amada não colhera resultados. Miss Harriet Smithson continuara a sua vida de triunfos artísticos sem nunca ter ouvido falar de Monsieur Berlioz.
Monsieur Berlioz regressava a Paris. Passara bastante tempo em Roma e agora o apartamento da Rue Richelieu onde morara estava alugado e ele toca a procurar casa. Fala do impulso secreto que sentiu: procurar um apartamento vizinho daquele que Miss Smithson ocupara na sua temporada de Paris, o nº 1 da Rue Neuve-Saint-Marc. E tanto procurou que encontrou. Mesmo em frente.
 
 
No dia seguinte ao da instalação encontra por ali uma serviçal que fazia recados na zona. Bom dia, boa mulher, acaso saberá alguma coisa daquela inglesa, Miss Smithson, que morou ali em frente, que terá sido feito dela? Oh, Monsieur, Miss Smithson vive cá em Paris. Não me diga! Pois, Monsieur, ela só saiu deste apartamento há dois dias. Foi morar para a Rue de Rivoli, pois está directora de um teatro inglês que começa para a semana a dar espectáculos por cá.
 
 
Confessa que ficou mudo depois desta revelação e até começou a acreditar nas doutrinas magnéticas então postas em voga.
Estou em Paris para apresentar a minha nova obra, e se, antes de dar o meu concerto, caio na patetice de ir ao teatro inglês, se volto a vê-la, ah, pois, cairei infalivelmente naquele meu delirium tremens e toda a minha independência de espírito se vai e ficarei musicalmente incapaz, e entregar-me-ei à fatalidade que me persegue e não lutarei mais pela minha música.
 
 
  Mas lutou. Propôs e preparou repertório, ensaiou. Enquanto a pobre directora do teatro inglês se ia arruinando com a aventura artística. Tinha confiado por demais na entusiástica constância do público parisiense, apoiada na iniciativa da nova escola literária que três anos antes como que apadrinhara o sucesso francês de Shakespeare.
Mas Shakespeare deixara de ser novidade. O público parisiense era frívolo. A escola romântica tinha consumado a sua revolução literária e tinha razões para não querer ouvir falar de Shakespeare. Shakespeare, de certo modo, era um estorvo, a divulgação de Shakespeare significaria o descobrir de carecas a alguns literatos românticos que tanta coisa tinham pilhado desse mesmo Shakespeare.
 
 
Receitas medíocres e despesas consideráveis: a chave do fracasso da companhia de teatro inglês dirigida por Miss Smithson. E é nesse estado de coisas que alguém oferece à desolada Miss Smithson bilhetes para assistir no Conservatório a um concerto com música de Monsieur Hector Berlioz, a Sinfonia Fantástica e mais umas quantas peças.
 
 
       Miss Smithson reconhece-o. “É ele, não é, o pobre jovem?”, diz ao colega que a acompanha. “Espero bem que ele já se tenha esquecido de mim.”
 
       O concerto incluía o monodrama Lélio, com partes declamadas em que o actor Bocage vociferava para uma assistência romântica já um tanto inflamada pelo efeito da Sinfonia Fantástica: ah, como poderei eu encontrá-la, essa Julieta, essa Ofélia que o meu coração reclama? Como poderei embriagar-me dessa alegria mesclada de tristeza que realiza o verdadeiro amor, e numa tarde de outono, deitado com ela, embalado pelo vento do norte, adormecer, enfim, nos seus braços no meu melancólico e derradeiro sono?
       Meu Deus (pensa Miss Smithson), Julieta… Ofélia… ele está a falar de mim… ele ama-me!
       E depois dessa tirada a profissionalmente abatida Miss Smithson não ouviu mais e foi para casa sem uma consciência clara da realidade.
       A Berlioz é pouco depois concedida autorização para ser apresentado a Miss Smithson.
 
 
       O teatro inglês foi obrigado a fechar portas. Miss Smithson ficou sem um chavo depois de pagar parte das muitas dívidas. Para ajudar à festa, um dia, ao descer do cabriolet, põe um pé em falso, parte uma perna e dois transeuntes têm de a levar a casa desmaiada.
 
 
       A mãe e a irmã opunham-se à união de Harriet com Berlioz; a família de Berlioz nem queria ouvir falar da probabilidade de Louis Hector vir a casar-se com uma comediante, inglesa, ainda por cima…
       Liszt e Chopin actuam no entracte do concerto promovido por Berlioz e que rende uma soma jeitosa destinada a pagar as remanescentes dívidas da companhia do teatro inglês.
 
                   

       E assim que Miss Smithson fica boa da perna, e não obstante toda a carga de oposições familiares, Berlioz casa-se com ela. Foi no verão de 1833. E Liszt foi padrinho do noivo.
       Fosse por causa do acidente da perna partida, fosse pelo que fosse, a verdade é que Harriet Smithson não mais recuperou a reputação de grande actriz shakespeariana. Ou talvez fosse porque, vivendo em Paris e representando uma coisa ou outra de tempos a tempos, lhe fosse impossível perder aquele l’accent intolerável para os franceses.
       O casal vivia em grandes apertos financeiros e eram os pais de Berlioz que valiam.
 
 
       A 14 de Agosto de 1834 nasce-lhes um filho.
       Uma linda história de amor romântico nascida e vivida sob os auspícios de Shakespeare.
       O outro lance romântico é a paralisia de Harriet Smithson. Quatro anos sem se poder mexer e sem poder falar. Até morrer. Em Montmartre, a 3 de Março de 1854.
 
 
       Berlioz desenrola mentalmente a sequência das infelicidades da mulher a propósito do sentimento de piedade que se sobrepusera ao amor já extinto: a ruína financeira; a perna partida; a decepção de uma nova tentativa teatral; a voluntária renúncia; os imitadores e imitadoras que com desprazer ela viu elevados à celebridade e à glória dramática; os incansáveis ciúmes – justificados; a separação; a morte de toda a família; a partida do filho; a beleza esvaída; a saúde destruída; as dores lancinantes; a perda dos movimentos e da fala; a perspectiva da morte e do esquecimento…
 
                                  

       Harriet Smithson tinha sido um poema secreto. Sem o saber, ela tinha sido a nova paixão artística e intelectual a impulsionar uma revolução na cultura francesa. Harriet Smithson dera o sinal a Mme. Dorval, a Frédérick Lemaître, a Malibran, a Victor Hugo, a Eugéne Delacroix, a ele mesmo, Berlioz. Porque ela chamava-se Julieta. Porque ela chamava-se Ofélia.
 
                           

       Shakespeare! Shakespeare! Onde estás? Parecia-me que só ele entre todos os seres inteligentes me poderia compreender; só ele pode sentir piedade de nós, pobres artistas. Shakespeare! Shakespeare! Tu devias ser humano. E se tu ainda existes deves poder acolher os miseráveis. Deus é estúpido e de uma indiferença atroz. Só tu, Shakespeare, és o deus bom para uma alma de artista… what? O fool! Fool!