domingo, 24 de setembro de 2017


A REPÚBLICA ROMÂNTICA

DE MANUEL LARANJEIRA    



 


Manuel Laranjeira, médico, publicista, poeta, dramaturgo, viveu em Espinho a sua crise mental e cívica e as dores da conjuntura da passagem do século ao figurino parisiense, como se estivesse a vivê-la nos círculos intelectuais da Rive Gauche.
 
 
O Ultimatum inglês e a implantação da república foram datas marcantes da vida portuguesa na crise cultural da transição do século XIX para o século XX, e nela, e no correlativo pessimismo, tiveram relevância os nossos intelectuais. Naturalmente. Muito naturalmente. Quando as nossas problemáticas estéticas eram directamente importadas de Paris.
 
 
Manuel Laranjeira chamava à crise de afectiva, uma terra de ninguém moral, um mundo que se esvaía e outro cujos contornos civilizacionais, as promessas ou as ameaças, não se descortinavam facilmente, e que por isso mesmo desencadeava nas almas o sobressalto e as mais fundas das incógnitas. Manuel Laranjeira assinala o mal estar, o mal estar vago como o das crises da adolescência, diz. O Homem que esboçava um novo e outro Homem. Um sentido da vida que se afigurava enigmático, inquietante, doloroso. Pessimismo. Tristeza. O tédio dos tempos.E na verdade era a desumanização do próprio Homem o mais que haveria a temer. Desumanização temida e paradoxalmente saudada pelas perspectivas do chamado progresso, progresso científico, tecnológico. Os idealistas temiam o mundo artificial que se anunciava, temiam a velocidade do tempo e da vida, sentiam-se a perder as noções do místico e do fantástico que secularmente os tinham habitado, o mundo que, nas palavras de Joel Serrão chegava por entre brumas românticas de afectividade difusa.
Crise mental. Instabilidade política. Ditadura. Vícios eleitorais. Caciquismo. Fraude. Desconfiança do parlamentarismo monárquico. Desconfiança do sistema económico-financeiro… o novo século que despontava em portuguesíssimas e ameaçadoras realidades…
E Laranjeira, inteligência penetrante e desperta, racionalista e místico ao mesmo tempo, perambulando pelos cafés de Espinho em intermitências de fé e descrença no ideal, advertia nos seus os dramas do país.
A sombra incerta da revolução constantemente no ar e constantemente adiada. A miséria social circundante. A decadência do sentimento religioso. Os partidos políticos que dividiam entre si poder e sinecuras. O analfabetismo…
A alma colectiva.  O mal da sociedade portuguesa é apenas este: a desagregação da personalidade colectiva - palavras do próprio Laranjeira; alma metida à permanente crise, transportado nos balanços da bruxuleante esperança como do mais arreigado pessimismo.
   
 

Sim, sim, releio Manuel Laranjeira e – dentro das proporções devidas, e específicas - tenho a sensação doente de estar a ler uma crónica do jornal de hoje – ainda tempo de transição de séculos, aliás. E é o que eu por vezes penso: não há como ler jornais velhos para se estar actualizado. Actualizado, quero eu dizer, e já com as distâncias históricas balizadas como deve ser, prontinhas para arriscar juízos. Juízos morais, já se sabe. 
Os partidos políticos da transição. Ah, dizem-nos incipientes, desestruturados, sem fundamento programático, sem base ideológica, erráticos de doutrina, ao sabor das circunstânciais opiniões dos seus notáveis, visando o escopo único: o poder, e respectiva distribuição de privilégios pelos seus. Daí as muitas viradas de casacas desse tempo. Mudava-se de campo partidário como quem mudava de camisa, ao sabor do vento das conjunturas. Os caciques nacionais e regionais a distribuir favores, empregos, isenções fiscais, títulos, dispensação de serviço militar…
 
 
Nenhum planeamento económico. Estratégia de educação nacional zero. Atraso intelectual profundo. Debilidade económica. Só o poder e a exploração da mão-de-obra interessava aos notáveis, aos senhores, aos nossos senhores…
Fala Manuel Laranjeira em 1908: Portugal não pode continuar nesta estagnação, nesta miséria de espírito. Ou nos educamos, ou seremos dentro de pouco tempo um povo morto. A selecção natural não espera, age: ou aperfeiçoa, ou elimina.
 
                                                                                                
 
A nossa organização nacional é mentirosa, sem estabilidade, encobrindo um parasitismo desenfreado e inquietante. O mal nacional está aí á vista: somos um povo intelectualmente atrasado um século, economicamente falido, moral e civicamente por educar, em que o sentimento de pátria e de vida nacional não se sobrepõe aos sentimentos do interesse individual.
 
 
Romântico, e por inerência desesperado, e adoentado, este Manuel Laranjeira. Mas homem muito lúcido, cuja voz não era conveniente ouvir aos interesses instalados.
Apontava ele directamente à educação como causa primeira dos nossos males, e, acrescentando no anticlericalismo em voga, o que chamava de influência corruptora da educação jesuítica.
Por esses liceus fora, e até pelos cursos superiores, não se aprende: decora-se. O aluno não assimila, repete automaticamente. Assimila apenas o envólucro verbal das ideias. Não adquire conhecimentos mas a forma externa dos conhecimentos. A educação concebida e realizada neste espirito está sendo mais perigosa do que útil.
 
 
No plano político, para o esperançado pessimismo de Manuel Laranjeira, o rotativismo de poder entre os partidos Regenerador e Progressista era uma linha de continuidade num programa exclusivamente de interesses, parecidos um com o outro como duas gotas de água, sem sombra de antagonismo doutrinário, uma máscara de modernismo – dizia – que se enfia para encobrir a fisionomia antiga e fradesca. E assim, os partidos, segundo ele, devoravam a alma portuguesa. A ficção constitucional, existindo à custa da nossa ignorância e do nosso indolente desmazelo, recebe a força desse binário socialmente pelintra que é o nosso rotativismo político.
 
 
A inteligência era, em Portugal, um capital inútil. O único capital produtivo era a falta de vergonha e de escrúpulos. O sentido da vida em Portugal classificava-o ele como de fúnebre, arrastados por um mau destino para a falência em que nos afundamos definitivamente.
 
 
Mas não nos podemos esquecer de que nesta época ainda havia uma revolução para fazer – ou uma revolução possível de fazer. Neste mar de lama está em perigo de perecer sem brio e sem vergonha todo um povo que foi grande e forte.
A medida das incapacidades de um regime e dos seus corifeus e que marcava mais intensamente o fim da monarquia estava na questão dos adiantamentos à casa real. Mas também a imagem negativa e trapaceira dos políticos. Mas também as pensões pagas a familiares dos mesmos políticos e parlamentares. Não eram sintomas de corrupção de um regime, Laranjeira entendia tudo isso como sintoma mais grave de uma decadência colectiva, da agonia de uma nação e de uma raça.
 
 
Eram pagas pensões não só às viúvas de antigos ministros como aos descendentes deles. Exigem de nós a paga de todos os maus serviços que esses estadistas nos prestaram. E que o país sofresse os serviços que lhe prestaram esses estadistas enquanto vivos já era ruinosa desgraça. Que o país lhos pague depois de mortos, isso sim, é o supremo descalabro.
 
 
As chegadas do 1º ministro a qualquer lado passariam a ser vaiadas. Os percursos passaram a ser feitos em carruagens fechadas e a grandes velocidades, por causa das pedras. E a polícia tratava os manifestantes à bastonada, a sabre e a tiro. E o gabinete emitia ordem de expulsão e degredo para quem se lhe opusesse. Era o século XX português que entrava.
Saio para a rua onde se festeja funebremente a aclamação do rei, sob a claridade parda e abafadiça. Tudo me cheira a morte e a crepes velhos e sujos. O povo, na sua profética inconsciência, chama a isto as exéquias do novo rei.
Era o mal estar dos idos de Março de 1908, com novo rei posto, D. Manuel II, órfão de pai assassinado um mês antes.
 
 
Manuel Laranjeira aguardava esperançoso a redenção nacional. A redenção republicana da pátria decaída, num Portugal adiado pela força das coisas.
O analfabetismo nacional era avaliado como tragédia indecorosa, afectando 4/5 da população. A república era ansiosamente esperada para libertar este povo às portas da falência intelectual e moral.
Mas vá lá, digo eu, que ainda havia em que depositar esperanças.
Estranhos tempos: quando após o regicídio se esperavam repressões sem fim sobre os republicanos militantes elas não aconteceram.
Dir-se-ia que tanto republicanos como monárquicos tinham desejado aquele regicídio.
 
 
O espírito era de reconciliação. Era de esquecimento da sangrenta tragédia. Em vez da repressão, a tolerância. Em vez da repressão, a permissividade e o perdão. Talvez fosse mais cómodo assim. Manuel Laranjeira nota judiciosamente: se o Partido Republicano aplaudia o atentado não fazia mais do que ser da mesmíssima opinião da grande maioria dos monárquicos.
Criminoso ou heróico, não era permitido a ninguém julgar o acto fatal do Buíça e do Costa. Só à História competiria o julgamento moral. E Manuel Laranjeira acreditava piamente na História.
 
 
Há 40.000 bocas a proclamarem que esses criminosos foram grandes como apóstolos. Há 40.000 espíritos para quem os regicidas não foram dois assassinos vulgares, mas dois grandes poetas da acção.
Rei morto, rei posto, e depois do rei posto afluxos esperançosos ainda acodem à mente dos mais cépticos, entre os quais, evidentemente, estava Manuel Laranjeira.
Incalculáveis energias armazenadas existem ainda no povo português. Há muita vida, muita saúde á espera de aplicação útil.
 
 
A esperança nos destinos nacionais tomava foros de messianismo. Uma das tintagens da mitologia nacional, claro está, do sebastianismo, por alguns à época chamado de sebastianismo vermelho. Na antecâmara da revolução e da consequente mudança radical de regime, a república, viam muitos desenhar-se a silhueta cavaleira do Desejado. Até ele. Até ele, sim, ele, Manuel Laranjeira, crítico aceso do sebastianismo, que denunciava como tara, de igual modo que outros vultos do republicanismo progressista, como António Sérgio. Mal se sabia para o que se estava guardado.
Estava-se guardado para outra crise, outra crise associável à crise mental da passagem do século. Estava-se guardado para novas e quiçá mais profundas desilusões, por entre a mais feroz e promissora agitação política.
Manuel Laranjeira era um sincero e esperançoso republicano. Porém, e não obstante toda a sanha reformadora e antimonárquica dos seus escritos e do seu testemunho pessoal, não seria nunca um notável da república. Leio até que quando os jornais publicavam nomes de republicanos desaparecidos já depois do 5 de Outubro o seu raramente aparecia. Claro, ele era um puro, um desinteressado dos bens materiais, que nunca se bateu a honrarias ou a proventos. Claro, Manuel Laranjeira era um solitário – ainda por cima pessimista e suicida – e teria o destino político e social dos solitários. Claro, era um desassombrado. Claro, era um crítico. E era o que faltava que a república, como qualquer outro regime, ou partido, se congratulasse com um solitário independente e crítico a militar nas suas mais destacadas fileiras.
 
 
Escreveu João de Barros, em 1943, que Manuel Laranjeira homem rebelde e livre, está ainda pagando as consequências da sua atitude, do seu desprezo pelas fórmulas feitas, da sua falta de respeito pelas consagrações indevidas.
Um Portugal narcótico, chamava-lhe ele, ainda antes do advento da república. E desse Portugal narcótico ansiava ele – ou pelo menos escrevia-o ao seu amigo Amadeu de Sousa Cardoso – fugir, tomar por esse mundo um grande banho de energia que me estimule a dar fruto.
De resto, ainda antes da implantação da república Manuel Laranjeira não era o que se pudesse chamar de um favorito dos seus correlegionários reviralhistas. Caiu no desagrado das correntes republicanas um saborosíssimo artigo que escrevera no jornal portuense O Norte, e a propósito dos emigrados para o Brasil, os chamados “brasileiros”.

O patriotismo dessa gente é um patriotismo falsificado e com joanetes. Esse era, para Laranjeira, o patriotismo de todos aqueles que fazem o êxodo da fome, desarreigados do solo da pátria, detestando a terra que os viu nascer e não os acarinhou.
Era o patriotismo do que no Brasil é desprezivelmente um galego e que em Portugal é desdenhosamente chamado de “brasileiro”.
Fugiram, debandaram, e só se resignam a voltar triunfantes, sobranceiros, com dinheiro para humilhar. Trá-los o desejo de gozar, o egoísmo sentimental de ser alguém na aldeola onde nunca foram nada.
O emigrante de outros países volta á sua pátria para dotar universidades, fundar escolas e bibliotecas. O nosso adorável “brasileiro” torna a Portugal para subsidiar irmandades e confrarias religiosas e para fundar serralhos aldeãos com a virgindade barata e duvidosa de algumas hetairas de pernas sujas. Na sua grosseira compreensão das grandezas humanas compra a peso de dinheiro um título de conde, barão ou comendador.
Pois aquilo que Laranjeira não era, seguramente, era um escrevinhador politicamente correcto. E se não era, como é que o poder, qualquer poder, o iria distinguir, ou até lembrar-se dele depois da morte?
Como é que os progressistas republicanos, na viragem do século português olhariam de boa catadura para o homem que escreveu: dizem-me hoje que o meu artigo d’O Norte está provocando escândalo. Houve republicanos que o acharam impolítico. Como se eu fosse obrigado moralmente a escrever aquilo que os republicanos acham político e não aquilo que eu penso ser a verdade. Adoráveis republicanos estes! Até parecem jesuítas. Que imbecis! E de modo indirecto iam-me aplicando uma corrigenda. Mas então porque publicaram aqueles idiotas o artigo? A estupidez tem escaninhos insondáveis.
 
 
Evidentemente que era um idealista incorrigível este Manuel Laranjeira. Um idealista do calibre dele, atreito a ataques de lucidez desassombrada, dificilmente é bom político. E sem dúvida que muito do que aconteceu em Portugal após a tão desejada redenção pátria do 5 de Outubro não acolheu ele como bom.
 
 
Em Abril de 1911, ainda a república era uma criança de colo, já Laranjeira andava de candeias às avessas com ela. E já então escrevia ao seu célebre amigo D. Miguel de Unamuno: o mal da minha terra, amigo, não é a demagogia: é a inépcia. Isto não dá vontade senão de estar calado. Em Portugal não há demagogia. Falta-nos fanatismo cívico para isso. Em Portugal o que há é uma inverosímil colecção de idiotas. A demagogia é um mal que pode ser combatido. A imbecilidade, essa é que é um inimigo invencível.
Sobre a realidade da revolução republicana (e avaliando-lhe demasiado imediatamente embora, as consequências) Laranjeira perguntava-se se ela tinha sido realmente uma revolução – isto faz-me lembrar os tempos que imediatamente se seguiram ao 25 de Abril.
Não, Laranjeira, em 1911, já não acreditava na validade da revolução feita em 1910. Não fora uma revolução. Foi – diz ele a Unamuno – apenas um povo que mudou de traje. Por dentro estamos na mesma. A revolução política para ser fecunda tinha de ser acompanhada de uma revolução intelectual, que não se fez – e aqui não é possível deixar de criticar Manuel Laranjeira: uma revolução intelectual é acção de todos os dias, de todas as horas; pode levar meio século ou mais a fazer, e Laranjeira queria vê-la aparecer já pronta num ano. Enfim. Mas no essencial, o homem é capaz de ter razão, ter razão quanto à revolução prioritária que sempre haverá a fazer, e sabendo nós o que sabemos hoje a respeito de revoluções portuguesas.
A revolução intelectual, diz ele, não se fizera nem havia indícios que estivesse para se fazer. Tão convictos andam todos que para civilizar um povo basta fazer-lhe mudar de gravata.
E aqui, na actualidade mentirosa, toda ela aparências e correcção política, de 2017, eis-me pessoalmente irmanado com o que Laranjeira escreveu a Unamuno há um século: eis precisamente o nosso mal: é ninguém sentir necessidade de fazer cultura; é ninguém compreender que a inteligência é o grande capital dos povos modernos e a cultura a mais fecunda das revoluções.
Não há como ler coisas antigas para se estar actualizado. E porque é que não se faz, nem se vê jeitos de se fazer, a revolução na cultura? Ora adeus! O capital quer é produtividade no trabalho e retorno rápido do investimento; e o pessoal quer é dinheiro para ir passar férias num ressort da Republica Dominicana. Fora disso nada mais interessa ao viver contemporâneo.
Continua Laranjeira para Unamuno na sua insatisfação pela revolução que era a sua meta salvífica: o terrível é não sentirmos desejo de sermos civilizados e contentarmo-nos só em parecê-lo.
E como acontece a quase todos os enfermos, o meu espírito tem intercadências de abatimento e entusiasmo, de fé e desânimo, de crença e descrença.
 
 
Quando penso que sobre nós pesa a herança trágica, secular, duma ignorância pobre e duma corrupção criminosa, o meu espírito enegrece e sinto-me adentrado dum pavor indizível. Mais que saber se vamos para a vida ou para a morte me preocupa saber se morreremos nobre ou miseravelmente.
 
 
O espírito moderno, trazido pelo novo século, passara a induzir a preocupação do morrer ou não morrer – e de preferência não morrer. O espírito romântico de Laranjeira, remanescente do passado século, pode questionar a própria morte, a moral da morte inevitável, pondo com gritante agudeza essa questão para nós supérflua da forma de morrer, se nobre, se miseravelmente, e quando tal cuidado aristocrático estava em vias de ser irrelevante. Sobreviver fosse como fosse, era essa a nova ordem. E morrer por morrer… tanto fazia…
Manuel Laranjeira era um sobrevivente do absoluto dos românticos, mesmo se não assumido como tal. Quem vive o absoluto, soçobra perante o real. O que deveria ser não se compagina com o que pode ser. E Laranjeira afronta o conflito, quer dizer, abraça o desespero de todas as impossibilidades. Dramatiza. Dramatiza-se. Torna-se um esteta do fracasso, um monge da derrota.
Não era um pensador estruturado e rigoroso, não, um filósofo no mais alto sentido da condição, não era, era antes de tudo um espírito naturalmente inquieto, dramático. E todavia lúcido na apreciação do real. Hamlet frustrado realizador de sonhos. Um artista, isso sim.
Perante a tirania da realidade, o nosso herói dizia-se um Dom Quixote de braços cruzados, envolvido nos lodaçais do tédio, investindo sobre o real intangível, esgravatando a verdade, colhendo decepções.
           Desmanchar ilusões – palavras dele a Miguel de Unamumo – é reduzir o coeficiente de felicidade e diminuir a possibilidade de chegar á terra prometida. O Homem só adquire a verdade à custa de uma desilusão. E foi pela rude confrontação com a verdade insuportável, inelutável, que Manuel Laranjeira teve o fim que teve.
Vivemos fervorosamente o nosso mundo ideal, o mundo maravilhoso que existe dentro de nós, e sentimos uma subtil crispação de nojo ao encarar as defeituosas coisas da realidade - escreveu ele ao seu amigo pintor António Carneiro.
 
 
De acordo com a música dos tempos, essa estridente e dissonante música que acompanhava a mudança do século e as transformações perigosas, Laranjeira era um solipsista. Um dos narcísicos apocalípticos que a nova arte criava, ia criando, ia impondo aos mais finos espíritos. Eu sou um homem para quem só existe um livro de leitura proveitosa e é o livro que leio dentro de mim mesmo.

 
Manuel Laranjeira sofria. E gostava de sofrer. Talvez assim se sentisse mais vivo. E mais orgulhoso. Orgulhoso dos seus singulares sofrimentos. E tão orgulhoso que nem sentia pena dele mesmo, respondendo, segundo dizia, com o riso a cada desilusão das que incessantemente procurava e que encontrava ao virar de cada esquina. O sofrimento tinha para ele um sabor exótico, o sabor, como ele dizia, de certos tóxicos. E o prazer maior era o de considerar-se acima da própria dor.
 
 
E vivia em Espinho. Vivia o clima e o ambiente provinciano da Espinho da viragem do século. E através das brumas, dos temporais e dos dias cinzentos e ronceiros e opressivos dessa Espinho viveu ele o país inteiro, as dores nacionais inteiras, os desenganos patrióticos inteiros, sonhando com Paris, a Paris de onde jorravam as crises mentais e culturais do novo tempo.
 
 

 

 

 

domingo, 3 de setembro de 2017


                 UMA GINJINHA NO ROSSIO


 
 

É verdade. Foi o que tomei um destes dias, depois do jantar, e lembrei-me de que quando Filipe II chegou para tomar posse do trono português não se dirigiu logo a Lisboa. Entrou por Badajoz e ficou-se ali por Almada. As tropas do duque de Alba tinham-no precedido e tinham vindo a saquear desde a fronteira até estacionarem em Setúbal.
 
 
O rei e senhor de metade do mundo de então foi até Almada e lá se alojou na modesta casa de um certo João Lobo, e com o propósito determinado de estudar a cidade à distância, além de ter de esperar pelo termo de mais uma peste que assolava Lisboa, cidade de pestes, tremores de terra e procissões.
Mais de cem navios de todos os feitios ali estavam e vindos de muitas partes – escreveu Filipe II, ou alguém por ele. Assim percorremos a margem de Lisboa, vendo tudo o que dá para o rio que tem cerca de uma légua de largura, e reconhecendo tudo muito bem.
 
 
A 29 de Junho de 1581, Filipe II entra oficialmente em Lisboa, desembarcando num Terreiro do Paço hiper-engalanado. E quis o rei nesse mesmo dia dar uma curva pela cidade. Atravessou a Rua Nova e deparou-se com um bailarico popularucho de vendedeiras e padeiras em sua honra. Do grupo das dançarinas populares destacou-se uma regateira que se dirigiu ao grande rei, dizendo que o recebiam de bom grado como rei e senhor até que viesse o rei Sebastião, porque em vindo o rei Sebastião, Sua Majestade era bom que deixasse aquele reino e se volvesse com Deus a Castela: Filipe II achou pilhas de piada e mandou pintar a cena.
 
Filipe II gostava das músicas e dos músicos que ouvia em sua homenagem. E quem lhe escrevia os panegíricos proclamava que Lisboa era a maior cidade de Espanha e que em Lisboa havia a maior praça, e que era esta onde estou agora, o Rossio.
Os embaixadores de Veneza que cá vieram cumprimentar Filipe II de Espanha por ser Filipe I de Portugal gostavam da largueza das ruas de Lisboa, mas queixavam-se das constantes subidas e descidas.
Por mais que presentemente me dê vontade de chorar o Portugal dos gestores de sucesso, é em Lisboa que me reconcilio com a minha nacionalidade, ou com o meu patriotismo vacilante. Lisboa no verão – prefiro o mês de Junho, mas ontem já era Agosto. E de modo particular a parte oriental, a Sé, aqueles miradouros que se debruçam sobre Alfama. Que foi onde tudo começou. Mas ainda não foi ontem que lá fui. Fiquei-me por ali, pelo Rossio.
 
 
Uma ginginha tomada no Rossio por um destes fins de tarde estivais pode avivar muita memória histórica.
 
 
Ah, mas tenho que dizer que devo esta memória à leitura recente do livro Biografia de Lisboa, de Magda Pinheiro, editado pela Esfera dos Livros. 
 
 
Sim, concordo, a ginjinha do Rossio (sem elas), como tanta outra coisa nesta nossa vida, já não é o que foi. 1.40€. Desenxabida e aguada roubalheira. Não sei se já se vendia daquele martelado licor de ginja no dia 15 de Maio de 1492, que foi quando se lançou a primeira pedra para a construção do hospital central que o papa autorizara.
Aquilo por ali era a horta do convento de S. Domingos e ali iria nascer o grande Hospital de Todos os Santos, de aspecto e funcionalidades copiadas dos seus semelhantes de Florença e de Siena.
 
 
Andei com o meu ínfimo copinho de plástico em mãos (1,40€ de desenxabida e aguada roubalheira) e olhei para a fachada do Teatro Nacional. Apaguei dos meus olhos as pilastras, os capitéis, o frontão e os eventuais sem-abrigo e convoquei à imaginação um edifício liso, o Palácio dos Estaus, feito para albergar os hóspedes do reino de mais marcado estatuto. E com este palácio e a imponente massa que é o Hospital de Todos os Santos estava feito o Rossio - e eu ainda longe de acabar a ginjinha.
 
 
Em Quinhentos havia ali também um mercado. Nesse tempo, mil pobres deambulavam pela cidade a pedir esmola e seriam as suas cerca de cento e tal crianças anualmente abandonadas que o Hospital de Todos os Santos recolhia.
 
 
 
Pestes, tremores de terra e procissões foi o que mais houve na História de Lisboa. No século XIV foi um ver-se-te-avias, não tiveram conto. Pestes várias que culminam com a grande peste negra que leva 1/3 da população da capital. Peste que chega a matar um rei, e logo um dos mais venturosos - que não em assuntos de saúde - D. Manuel I.
 

 
Pestes e procissões, e umas em consequência das outras. Na morte de D. Manuel a procissão que se seguiu foi um espectáculo, com 20.000 almas a incorporarem-se nela, tudo de negro, a bandeira a arrastar pelo chão, os escudos a quebrarem-se. E mesmo aqui ao pé, no Rossio.
Peste maior foi a de 1569, Junho, a doença que provocava inchaços pelo corpo. Corriam os boatos. O povinho da cidade a fugir para os subúrbios e para as colinas. Ficavam os ricos. Mas o rei estava fora. Por toda a Lisboa eram desmaios e gritos, gente enlouquecida. Não havia que comer. Tiveram que chamar os forçados das galés para ajudar a enterrar os mortos. Os jesuítas não tiveram mãos a medir na assistência religiosa. Mete-se o Natal. A praga abranda.

 
O rei regressa a Lisboa em Maio. Acções de graças. As procissões de expiação começavam. A mais célebre de todas, que ainda hoje, suponho eu, se realiza, é a da Senhora da Saúde, que era na 5ª feira mais próxima do dia 20 de Abril. Sai (ou saía) da ermida, ali ao Martim Moniz, corria a Mouraria, ia até à Sé.

 
Lisboa das seculares procissões, como diz a canção, e é verdade. E a da Senhora da Saúde deve ter tido coreografia parecida com aqueloutra de 1552, já não me lembro (se é que alguma vez o soube) a que propósito e coloridamente descrita pelos cronistas. Era inicitiva da Misericórdia e começava ao anoitecer. Ia até S. Francisco, e depois vinha à Trindade, descia o Carmo, ia até ali a S. Domingos, calcorreava encosta acima até à Sé, e voltava à Misericórdia.
O cortejo de velas, archotes e candeias na noite escura devia ser medonho e fantasmagórico, com os penitentes a disciplinarem-se à vergastada, com outros a carregar bacias de vinho, bilhas de água fresca e fatias de marmelada para não deixar desfalecer os penitentes.
À chegada à Misericórdia tinham os físicos à espera para lhes espremer as chagas, lavá-las com vinho e ligá-las. 
 
 
No século XVI teve início em Lisboa aquilo a que não sei se poderei chamar de registo civil. Registo dos lisboetas que nasciam e eram baptizados e dos que faleciam. O Concílio de Trento havia dado ordens terminantes nesse sentido, sim, mas pela razão também das crescentes desavenças rácicas e religiosas. Pelo registo ninguém ocultava a sua origem étnica, a religião, os antepassados. E porque entre os séculos XV e XVI vivia-se em Lisboa um estado larvar de guerra racial.
Feições asiáticas, levantinas, negras, foi o que aqui há dias vi passar à minha frente, sentado nos degraus do Teatro D. Maria na companhia dos tais eventuais sem-abrigo que beberricavam cerveja velha e me pediam cigarros. E a minha memória livresca emprestou roupas de outros tempos e ritmos de outros tempos à andadura dos indianos, chineses, marroquinos e negros que vejo passar – que passavam por mim no Rossio, é verdade – e lembro-me de que foram estes os que ficaram cá por Lisboa depois da conquista cristã.
Depois dessa conquista (ou reconquista) cristã, os mouros, ou as elites deles, conservaram algumas autonomias. Algumas dessas elites reclamaram-se descendentes directos do Profeta e reivindicaram da corte certas benesses, que aliás lhes foram concedidas. Tinham o seu corpo de leis e os seus notários próprios. Eram-lhes até confiadas missões diplomáticas. E muito por eles, e por suas manufacturas em sedas e tapeçarias, a corte, nos seus luxos, adoptou certo gosto orientalizante.
 
 
Os judeus, apesar de mal vistos, também se iam governando menos mal com os metais preciosos de África, com os açúcares da Madeira, com os seus tratos com a corte. Os menos favorecidos pela fortuna estavam obrigados a rudes medidas de identificação e de demarcação de residência e de propriedade. Os de mais posses, obviamente, escapavam às regras. Mas a vida deles não seria facilitada para sempre.
 
 
Em 1482 é saqueada a Grande Judiaria. Estavam a chegar judeus de Espanha. O papa Sixto fora na conversa dos reis católicos e dera força à Inquisição. 20.000 chegam de Espanha e têm oito meses para desaparecer. Mas não desaparecem assim com duas cantigas e é-lhes decretada a expulsão.
Mas como expulsar os judeus de modo compulsivo se não há nas docas navios que cheguem para levar tanta gente? E então muitos deles vêm dar com os ossos ali, no Palácio dos Estaus, que será futuro palácio da Inquisição, ali mesmo, no Rossio, onde eu  andava às voltas com a minha ginjinha. E ali eram convertidos às três pancadas à fé cristã. E baptizados. E ficavam novos. Cristãos novos.
 
 
Mas ainda por aqui por este Rossio das ginjinhas, no fatídico dia 19 de Abril de 1506, o pagode levantou-se contra judeus e crstãos novos e foi o massacre.
 
 
Damião de Góis culpou os frades dominicanos de terem açulado os populares e chamado os marujos portugueses e holandeses que andavam pelas docas para ajudar à matança.
Os frades fizeram um furo na cruz da igreja (a de S. Domingos, presumo) e por detrás do furo puseram uma candeia acesa, de forma que a chama lucilava como um sinal divino. Imediatamente foram arranjadas interpretações teológicas para consumo dos fiéis. Aquele sinal era Deus a manifestar a sua vontade de que os judeus fossem imolados sacrificialmente pelo fogo.
 
 
Lisboa estava a ser vítima de uma seca prolongada e um cristão novo presente na missa tem a infeliz ideia de adiantar um interpretação diferente do sinal, recusando o milagre da chama na cruz, denunciando a candeia por detrás, dizendo ah, quisesse o céu que fosse um milagre de água em vez de fogo… com esta seca é de água que precisamos. Foi ele o primeiro a quinar. Mas ainda era o primeiro dia. Ali mesmo. No Rossio.
 
 
“Il di spuntò, di del terror”, dizem os frades inquisidores da ópera D.Carlos, de Verdi. E realmente, ali, no Rossio, o dia despontava mesmo para mil cristãos darem caça a judeus e cristãos novos. Judeus e cristãos novos que tinham deixado de andar pela rua, a ver se escapavam à fúria da populaça. Não escaparam. Os cristãos amotinados iam buscá-los a casa, arrastavam-nos pelas ruas, velhos, mulheres e crianças de colo, e, ou matavam-nos antes de os deitarem ao fogo, ou atiravam-nos para a fogueira ainda vivos.  
 
 
E ontem eu olhei para a Igreja de S. Domingos e para aquele teatro nacional carregados de História trágica e lembrei-me dos violentos incêndios, em 1959 e 1964, e veio-me à ideia a hipótese de vingança do que aqui se passou naqueles dias de Abril de 1506. 2.000 mortos com primores de crueldade. Vingança desses dias e doutros, claro, porque aconteceram aqui os primeiros autos-de-fé.
 

                                                                 


 
Foram esses autos-de-fé do Rossio em 1540. A corte assistiu. Mas subsequentemente achou-se preferível como cenário para tais cerimónias o Terreiro do Paço, devido a uma monumentalidade que aqui o Rossio não tinha, e porque os condenados e os convidados deveriam sentir-se temerosos ante o espectáculo dos poderes mancomunados, o de Deus e o do rei – o que então ia dar no mesmo. Ou, dito de outra maneira: os poderes da Igreja e os do Estado – o que também ia dar no mesmo.
 

E o interessante é que, com toda a repressão, com toda a violência instituída pelo Santo Ofício sobre hereges, judeus, mouros, bruxas, sodomitas e loucos, houve notícia de portugueses baptizados que renegaram a fé de Roma e se converteram ao islamismo.
 
 
Eram tempos de grande violência, sim, uma violência que nos custará a imaginar. Naqueles tempos festejavam-se os actos de barbárie de modo superlativamente entusiástico. E mais ainda se se tratasse de barbárie religiosa, como foi o caso da festança que por aqui houve quando do massacre dos huguenotes em Paris. Até houve luminárias em intenção dessa tristemente célebre noite de S. Bartolomeu.
 
 
Durante os preliminares da excursão a Alcácer Kibir Lisboa era uma cidade aberta, por onde circulavam mouros, tudescos, castelhanos, genoveses, romanos. Tudo quanto era estrangeiro desembocava ali, naquela praça do Rossio e ali se armavam as maiores zaragatas multinacionais e multirraciais.
 
 
Os problemas de trânsito cá por Lisboa começaram historicamente cedo. Foi quando pegou a moda dos coches, ainda no tempo do rei Sebastião. Os populares odiavam os coches, mas o coche dava estatuto e todo o nobre ou burguês endinheirado passou a andar de coche, e foi preciso regular a circulação. Além do mais os coches arruinavam o pavimento, que era de tijolo. De maneira que houve que regulamentar o tipo de rodas.

D. Sebastião era de saúde fraca. Não lhe aconselhavam como morada o Palácio da Ribeira. Por causa da muita humidade. E por isso, em 1566, ele se mudou para o Palácio dos Estaus. E foi ali, em S. Domingos, que correram as cerimónias da entronização.
Por falar em D. Sebastião, toda a Lisboa andava por aqui inquieta com os correios que iam chegando de Marrocos. E a 12 de Agosto de 1570 houve a certeza do que ocorrera lá pelos areais inóspitos no dia 4 desse mês, o desbarato das tropas lusas e o desaparecimento do rei. Ninguém aqui pelo Rossio queria acreditar na notícia.
 
 
E estava-se ainda de luto carregado pelo rei morto em terras berberes quando aqui pelo Rossio começa a correr o inquietante boato. El-rei Sebastião teria sido visto em Itália na companhia de outros vinte portugueses.
 
 
Em 1670, a Câmara de Lisboa estava pelos cabelos de dívidas, estava em incumprimento e deixara de pagar aos credores.
O lixo, os dejectos, os despejos para a rua foram uma constante em Lisboa pelos séculos dos séculos. Havia falta de gente classificada de “inferioridade” para tratar do problema da higiene pública. As escravas calhandreiras é que andavam já nos princípios do século XVIII com vasilhas a “alimpar” as imundícies deitadas à rua, e esgravatando nos lixos à cata de anéis ou moedas de ouro e prata perdidas.   
    
                  
No tempo de D. João V, os viajantes estrangeiros escrevem: a cidade não tem iluminação durante a noite e é frequente perder-se um sujeito e correr o risco de ser enxovalhado pelas imundícies que é uso despejarem-se para as ruas, pois as casas não têm latrinas.
Dizem alguns visitantes que Lisboa sofria uma praga de cães. Os cães, o lixo, as matanças do porco em plena rua. Os estrangeiros queixavam-se do mau cheiro de Lisboa
O abalo sísmico e o incêndio que se seguiu aqui no Hospital de Todos os Santos, cinco anos antes do grande terramoto, e no exacto dia da morte de D. João V, pode ter sido um primeiro aviso do destino quanto às desgraças que estavam para vir. O hospital ficou destruído, em especial as enfermarias que deitavam para a Rua da Betesga e cinco anos depois, no dia 31 de Outubro de 1755, a maré atrasou-se duas horas.
 
 
A 1 de Novembro de 1755 pensou-se que era chegado o dia do Juízo Final e os padres e os frades não tiveram mãos a medir por entre os ajuntamentos de povo a esgatanhar-se à porfia para se confessar.
A Lisboa que eu estava a ver dali era nesse dia uma fogueira pegada, há quem diga que por causa de velas e lamparinas deixadas a arder nas igrejas com a precipitação da fuga. A Lisboa renascentista, maneirista e barroca apagava-se nesses dias do mapa. Vadios, desertores e ladrões passaram a acoitar-se nas ruínas dos muitos prédios destruídos.
 
 
Na reconstrução da cidade aqui o Rossio dignificou-se. Foi-lhe regularizada a forma sem alteração das dimensões. Deixou-se estar ali ao meio a fonte com a estátua de Neptuno. Fizeram aquele edifício ao fundo, aquele frontão, onde é a Tendinha, abriram o arco, que é o Arco do Bandeira. O hospital foi reconstruído e só vem a ser substituído pelo de S. José depois da expulsão dos jesuítas. O palácio da Inquisição ali ficou.
 
 
Os enjeitados abandonados nos adros das igrejas ou à porta de particulares ricos eram às centenas ainda no século XVIII. A 5 de Outubro de 1737, ali para cima para a Senhora do Monte, foi achada a Rita. O provedor da Misericórdia foi chamado e recolheu a criancinha, para evitar que, na palavra dos cronistas, a não comessem os cães.
Os visitantes dos séculos passados estranhavam que o lisboeta desse esmola a mendigos válidos para o trabalho. E daí concluíam os visitantes da estranja (em tom de liberalismo económico) que a grande quantidade de pobres em Lisboa era resultado do espírito caritativo dos portugueses – e dos ricos, sublinhe-se, que em certos dias distribuíam comida a centenas de esfarrapados, mulheres e crianças, e os viam da janela devorar tigelas de caldo e pedaços de toucinho como se animais esfaimados eles fossem.
À mendicidade infantil valeu Pina Manique com a criação da Casa Pia do Castelo. Mal sabia ele…
Acabei então a minha ginjinha e não me apeteceu outra.
Mas, para terminar, ainda o lixo e a mendicidade. Não era por falta de legislação camarária que nos séculos de antanho não se deitavam mãos ao problema. Havia legislação em barda. Mas dos regulamentos à capacidade de os executar no terreno vai sempre, em Portugal, grande distância – como ainda hoje bem sabemos. Deve ser factor constitutivo do espírito português.