domingo, 28 de setembro de 2014

                           O REI ESTÁ A MORRER


        Não, não se trata da peça do Ionesco… Le Roi se meurt… não, só se trata do testemunho a que achei piada de um psicanalista inglês, Ronald Fairbairn, ao tratar três dos seus pacientes nas vésperas da morte do rei Jorge V de Inglaterra, Janeiro de 1936, e as perturbações psíquicas que a iminência da morte do soberano provocou nesses três pacientes.

                                                                              

        Um jovem de 18 anos. É filho único até lhe nascer um irmão seis anos mais novo do que ele; e ainda, e de novo, filho único depois da morte desse irmão seis anos depois.
Não podia suportar a separação da mãe sem ser acometido de fortes ataques de ansiedade. Isso e mais uma situação hipocondriaca: sentia-se padecer de grave doença de coração. E com crises frequentes de palpitações violentas, e pânico ante a perspectiva de morrer.
A questão cardíaca radicava no medo de que a figura interiorizada da mãe o matasse; ou mais: que depois de o matar a mãe lhe devorasse o coração. Em sonhos vê um coração em cima de um prato e vê a mãe levantar uma colher.


Faltavam quatro meses para a morte do rei. Os boletins médicos começavam a ser emitidos do Palácio de Buckingham acentuando as complicações com o coração do rei. E foi então que os sintomas do paciente se exacerbaram depois de algum tempo de quietação. 
Mas não podia ligar o rádio. Se o fizesse ficava em pânico. Perturbações do sono, também. E a telefonar constantemente ao psicanalista em busca de alívio.
O rei Jorge V morre no dia 20 de Janeiro e o paciente só sabe da notícia na manhã seguinte. A noite que se segue é dormida por ele em sobressalto devido ao sonho em que ele próprio disparava uma pistola sobre um homem que identificava com o seu próprio pai; em que ele entrava numa sala e conversava com a mãe, e explicava à mãe o motivo por que atirara sobre o homem identificado como seu pai, e não era por detestá-lo, não, era por temer pela sua própria vida; e porque ao matar aquele homem matara-se a si mesmo e só lhe restava sujeitar-se a ser preso por seis anos; e é quando aparece uma jovem, e essa jovem passa a ser a pessoa que ele tinha matado, que de repente lhe parece ser o irmão – a morte real que lhe pesara na consciência por seis anos - mas que era a mãe, e a mãe representada como objecto de desejo sexual.  
Estaria perante a destruição de toda a sua família.
E na outra noite, outro sonho: a mãe, de pé no alto de uma escada, a adverti-lo para o perigo de comer geleia.

                                                                                 

Um homem de 31 anos, solteiro, segundo caso, com dois anos e meio de análise à data da morte do rei.
Fora ao psicanalista por causa de uma vontade permanente de urinar, uma vontade que lhe ocupava todo o tempo de vida consciente – quer dizer, desperto.
Mas era um tipo mais ou menos inválido, ou meio inválido, desde os cinco anos, qualquer coisa forte no tórax, um empiema (acumulação de pus na cavidade pleural – Wikipédia), e antes dos sintomas urinários já ele revelava ansiedades pelos sintomas do torax.
Depois de algum tempo de análise, consegue-se que a ansiedade urinária desapareça, mas a ansiedade toráxica recorre. E um pavor de poder ser envenenado pela comida, e daí em diante a aparecerem-lhe sintomatologias gástricas. Que se atenuaram para dar espaço à ansiedade quanto ao funcionamento da garganta, uma amigdalite, nada de mais. Faltava pouco para a morte do rei.
E o rei morre e ele deprime-se e reverte para a morte do pai, irritando-se pelo excesso noticioso sobre a morte de Jorge V. Preocupa-se mais com a saúde, subvalorizando todos os interesses normais que pudesse ter na vida. Havia uma congestão geral a ocupar-lhe o corpo da cintura para cima e alguma força nociva começava a nascer dentro dele.


Passados quinze dias sobre a morte de Jorge V, o paciente tem um sonho. Vê os charutos do rei. Roubam-lhe o carro. Telefona à polícia. Recebe uma novidade: o pai acaba de chegar de uma longa viagem. Muito bem. Convida o pai para um jantar lauto. É quando o ladrão aparece com o carro e ele, paciente, se atira a ele, ladrão, e lhe deita as mãos ao pescoço. E eis o anuncio: os charutos do rei estavam à venda por 147£ a unidade.
O psicanalista Fairbairn fala à colação do caso no tema da reparação do objecto, reparação do pai, reparação do pénis do pai na simbologia onírica dos charutos e no sentido de uma satisfação oral do paciente.
O tema da reparação sobrevém algumas noites mais tarde. O paciente sonha que está a nadar com o próprio rei Jorge V. Não numa piscina, não numa praia, tudo se passa num espaço inundado no exterior do Palácio de Buckingham. O rei mantinha a cabeça debaixo de água por muito tempo. O sonhador queria salvar o rei e não conseguia. O rei afogava-se. E outra cena, em que surgem uns quantos polícias a retirar uns baús de um coche oficial, o que lhe sugeria um funeral, mas ao mesmo tempo o julgamento num tribunal. O sonhador seguia depois numa carruagem. Ao lado do rei. E muito feliz porque o rei recuperara a vida e a saúde.

                                             

E cá está - interpretação psicanalítica – a restituição do pai do paciente correlacionada com uma inundação, água, água que corre, o regresso à ansiedade urinária permanente. 
No terceiro caso pode estar-se em presença de uma mulher. E pode estar porque havia que contar com o defeito genital da (ou do) paciente, que deixava dúvidas sobe o sexo real do indivíduo.
Mas admitamo-lo como mulher. Cinquenta anos. Professora, embora não em serviço por ter abandonado a carreira. Razão para o abandono? Esgotamentos nervosos todos os três meses, ansiedade, depressões, pensamentos suicidas.
Do ponto de vista técnico, o Dr. Fairbairn fala de uma fase inicial maníaca em que ela começa a utilizar o mecanismo da projecção, ainda que suprimindo sintomas paranoicos pelos sintomas maníaco depressivos e mais tendências sado-anais recalcadas – é muito técnico para as minhas posses…
Mas adiante.
Na noite de 20 de Janeiro (o rei Jorge V estava a morrer exactamente nessa noite), a paciente vai-se deitar, ouve o rádio, ouve o boletim clínico, o rei piorava. E a paciente tem um sonho, um sonho em que o seu próprio pai morre.
Sabe da morte do rei ao acordar na manhã seguinte. Passa o dia muito perturbada, zangada mesmo. Não vai à consulta marcada com o psicanalista. Desmarca e marca para o dia seguinte. Sentia-se responsável pela morte do rei Jorge V.


Nessa noite sonha em catadupa. Primeiro sonho, uma emoção desmesurada, todavia sem conteúdo particular, só terrores, infelicidade, desespero. Tacteava no escuro. Sentia-se enlouquecer. E ia ficando gelada a partir dos pés; dentro em pouco estaria toda ela feita um bloco de gelo e estaria definitivamente acabada. 

                                                                 
E agora vive numa casa onde tudo é perfeito; entra numa das salas e leva a mãe só para lhe mostrar aquela perfeição toda; subitamente, fica horrorizada, duas grandes ervas daninhas cresciam através de uma magnífica carpete em tons vermelhos; baixa-se, vai-se às ervas para as arrancar, mas não, não arranca coisa nenhuma, era muito difícil arrancar aquelas ervas...


 E de repente, estando em casa, sente-se num jardim público, sentada em cima de uma caixa que tem dentro um animal. aparece uma mulher com um cão; ouve-se um grito: “tire daqui esse cão!”, e há gente que corre atrás do cão, sem resultado, o cão foge, excitadíssimo, quase feroz; a paciente sonhadora, sempre sentada na caixa, ouve um rosnido próximo, era o cão, que procurava apanhar o animal que estava dentro da caixa e mordê-lo até o matar.

                                                                        

 A sonhadora teme pela própria segurança; ouve bater à porta de casa, corre para abrir, abre, dois polícias à chuva na noite escura, façam o favor de entrar, os polícias entram, ajudam-na a acender o candeeiro que está ao pé da porta e a luz do candeeiro sai vermelha, sinal de perigo, e é quando os dois polícias deixam de o ser e passam a ser três mulheres, e explicam-lhe a razão da visita, e ela a princípio não compreende o que dizem, mas sente que alguma coisa horrível acabou de acontecer a um homem a quem chamam Pequeno David, Little David… e é quando acorda.


Quando acorda pensa em quem poderá ser esse Little David e que relação poderá ter com ela.
Informa-se então que Little David era o petit nom familiar do rei acabado de entronizar sob o nome de Eduardo VIII. A coisa desgraçada acontecida a Little David fora a morte do pai, o rei Jorge V. E as figuras que a tinham visitado na noite escura, iluminada de vermelho pelo candeeiro junto da porta, eram os enviados do Super Ego, o que significava ser ela a responsável pela morte do rei.
Um parricídio. Mas como um parricídio se ela, quando recebe no sonho a notícia, nem sabe quem é Little David?

                                                                         

O analista interpreta. E interpreta o facto de ela se sentar na caixa contendo um animal que o cão pretende matar como a protecção que ela tenta fazer ao pai, um pai interiorizado pela sua líbido sado-oral, uma ameaça ao seu próprio Ego.
Uma interiorização do objecto decorrente da morte do rei.
Uma interiorização do objecto que é típica de uma crise depressiva, não guarda como finalidade a salvação, ou a protecção do objecto. Fico sabendo. (Pode ser que um dia, no futuro, me venha a ser útil saber isto.) Porque o dano já fora provocado quando a defesa da interiorização se desencadeou. O objectivo de uma interiorização destas é assimilar uma corrente de sadismo libertada pelo que o analista chama de “cheiro do sangue”.
Mas é assim mesmo. Parece que uma experiência que sugira a perda do real objecto amado depoleta o terror íntimo de perder também o mesmo objecto, porém na forma interiorizada.
Que engenhoso. Mas que querem, acho graça ao engenho das interpretações psicanalíticas. E é como dizia o outro, se non è vero è bene trovato…




sábado, 20 de setembro de 2014

  

    SCARFACE


                                                            


Entre os gangsters de cinema houve verdadeiros gangsters, para além dos actores que o eram no écran. O mais flagrante exemplo foi, repito, George Raft, um antigo dançarino protegido da Mafia, o melhor amigo do mafioso inventor de Las Vegas, Bugsie Siegel. Mafioso embora, Raft, para as suas composições de personagens de cinema, quase sempre criminosos, inspirava-se num gangster novaiorquino preciso, real, Joey Adonis, do grupo de Lucky Luciano, um mafioso elegante e pouco falador, bons fatos de seda, camisas pretas e gravata branca.


Em 1931 sai um primeiro filme de êxito sobre gangsters. The Little Cesar.

                                                                                            

Não era o primeiro filme em absoluto sobre gangsters, está bem, foi o primeiro a obter grande sucesso de bilheteira, isso foi, e foi o primeiro noutra coisa: o desenrolar da história era pela primeira vez acompanhado do ponto de vista do gangster. Com Edward. G. Robinson. Que todos de imediato pensaram ter-se inspirado em Capone, embora a sua representação sacudida nada evocasse o suposto modelo real.


Para o respectivo argumentista, The Little Cesar era um Macbeth do sub-mundo que certificava o quanto uma pessoa podia ascender ao poder ou ao dinheiro usando meios de risco. Foi um sucesso que obrigou os exibidores a programarem 9 sessões diárias.
                    
                                                                                                             

Howard Hughes, o milionário, compra os direitos de um romance chamado Scarface, publicado em 1930. Filmes de gangsters era o que estava a dar naquela América dos final dos anos 20, tal era o fascínio que eles e a vida deles exercia sobre o público. Aquilo é que era vida de luxo, aquilo era liberdade, aquilo era empreendedorismo, aquilo era  liberalismo, aquilo era dinamismo económico, aquilo era iniciativa privada, em suma.
O realizador Howard Hawks pode ganhar 25.000 dólares se realizar o filme extraído do romance Scarface – de resto, Hawks conhecera em Chicago diversos gangsters, e até o verdadeiro Al Capone, se calhar. Estava portanto dentro do assunto.


De que é que o realizador Howard Hawks se lembrou então? De assemelhar Al Capone com Cesar Borgia, o condottiere renascentista, o impiedoso assassino filho de um papa. E porquê? O porquê tem como base outra pergunta: e se Capone tivesse relações incestuosas com a irmã, tal como Cesar Borgia as teria tido com a irmã Lucrécia?

                                                        

                             

Ben Hecht. Escritor e argumentista, era então chamado de Shakespeare do cinema. É ele o escolhido para escrever o guião do filme. Mas ainda a ideia não tinha chegado à cabeça do milionário Howard Hughes já Al Capone sabia que Hollywood estava a planear fazer um filme sobre a sua pessoa.

                                                                                            

Batem à porta do hotel onde está o argumentista Ben Hecht. Dois tipos com ar de mauzões. Um deles traz uma cópia da sinopse que Hecht já tinha escrito e Hecht não faz ideia de como aquilo lhes fora parar às mãos.
- Foste tu que escreveste isto?
Hecht admite que sim, que foi ele que escreveu aquilo.
- Estivemos a ler isto.
- Ah sim? Muito bem. E o que é que acharam?
- Tu falas aqui do Al.
- Do Al?
- Sim, pá, de Capone!
- Bem - tartamudeou Hecht - não exactamente, fala-se de gansters, sim, em todo o caso… olhem, amigos, fala-se do Dion O’Bannion, por exemplo…
- Está bem, então vamos dizer-lhe que o que tu escreveste não é com ele, é com outros gajos.
E os mauzões fazem menção de se irem embora. Mas quando chegam à porta, voltam para trás.
- Mas então, ouve lá uma coisa, se isto não trata de Capone, porque é que tu lhe dás o título de Scarface? É que assim... tás a ver... toda a gente vai pensar que se trata mesmo dele…
Ben Hecht sente-se entalado. Bom, a história não era centrada em Capone, mas por uma questão comercial era preciso fazer crer ao público que se tratava de uma história acerca dele. Fazia parte dos truques do show-business.
- Então está bem, vamos dizer isso ao Al. Mas olha lá, quem é esse Hughes?
- Ah, esse é o papalvo que entra com o dinheiro para o filme, mais nada.
- Ok, a gente está-se nas tintas para esse…
Não vou contar a história do filme – que aliás nunca vi -, mas há momentos que tenho que esclarecer e que são importantes para a minha própria história de hoje.


Capone ficava a chamar-se Camonte e a estrela contratada para o protagonista era o então famoso actor Paul Muni. Ben Hecht já em tempos se encontarra com Al Capone em pessoa. Por isso dizia que Paul Muni não era a escolha acertada. Fazia pensar mais em Hitler do que num gangster de Chicago que na vida real fosse mais propriamente um homem volúvel do que um homem sinistro. Mas talvez, digo eu, talvez fosse mesmo essa a ideia de Howard Hawks e de Muni. Estavamos em 1930, 1931. Muni era judeu austríaco. Os mais esclarecidos já viam Hitler como uma ameaça antes mesmo de ele conquistar o poder.

                                                                    

E quem é que vai interpretar o papel do principal, à época, homem de mão de Capone, que na vida real dava pelo nome de Frank Rio: é George Raft, o actor protegido pela Mafia de Nova York nem menos. Raft havia sido apresentado a Capone justamente em Nova York, no célebre restaurante Delmonico’s, e era tu-cá-tu-lá com Lucky Luciano, Bugsy Siegel, Meyer Lansky, enfim com a nata das figuras de proa do crime.
George Raft – a exemplo, mais tarde, de Sinatra – admitiu certo dia que quando era novo teria gostado mais de ser gangster do que de ser actor. E quando se tornou conhecido muitos lhe faziam perguntas a respeito dos durões que ele frequentava, e ele respondia que eram as pessoas mais formidáveis do mundo.


- Esses tipos, Costello, Madden, Bugsy Siegel, Luciano, eram deuses para mim. Andavam de Cadillac. Para qualquer parte onde fossem apareciam sempre políticos ou altos comandos da polícia a prestar-lhes vassalagem. E eu então disse para comigo que o que aqueles homens faziam também não podia ser assim tão mau como constava. E eu gostava de me parecer com eles, de ser como eles.
George Raft, acho que já o disse atrás, para a composição do papel toma como modelo Joe Adonis, gangster real de uma família de Nova York de quem era amigo. Copia-lhe a maneira de mover as mãos, a maneira de falar, a inclinação do queixo. Foi uma impersonation perfeita. O próprio gangster ficou maravilhado. E tão maravilhado ficou que muitos anos mais tarde, em 1951, procurou George Raft para que ele lhe desse algumas lições de representação.

                                                                

Mas, perguntarão, V. Exas., para que precisa um gangster de saber representar. Bem, logo à partida, digo eu, todos precisamos para a vida, a cada  momento, e eu conheço, por exemplo, gestores de empresa que em representação nada ficam a dever ao maior actor que se possa arranjar. Já para nada dizer quanto a talentos histriónicos de presidentes da república, primeiros ministros e dirigentes partidários – e porque não, dirigentes sindicais…


Mas Joe Adonis tinha outro objectivo.
Joe Adonis estava intimado para responder perante uma comissão que investigava o crime organizado e sabia que o seu depoimento seria transmitido em directo pela televisão. E pronto, as coisas são mesmo assim, Joe Adonis estava no seu direito, queria ir bem preparado sob todos os pontos de vista, queria estar dramaticamente à altura.
Nos anos 50, como já anteriormente referi, George Raft mostrou que, gangster ou não que tenha sido, era um actor cheio de sentido de humor quando aceitou ironizar consigo mesmo no já por mim várias vezes citado filme Quanto Mais Quente Melhor, fazendo enfim o papel de chefe de gangsters, realizando no cinema o que gostaria de ter sido na vida real e não fora.
Voltando ao projecto de filme dos Howards, Hughes e Hawks, a censura avisou-os: proibiriam pura e simplesmente o filme se eles tivessem a infeliz ideia de o produzir. Todo o público americano e todas as diversas comissões de censura conscienciosas detestavam mafiosos e desordeiros. O cinema não devia em circunstância alguma fazer alusão ao gangsterismo.

                                                                                       

Hughes, o multimilionário financiador do filme não era homem que se temesse e escreve ao seu realizador, Hawks: estou-me a borrifar para a censura e para o código Hays. Começa lá as filmagens e faz-me um filme o mais realista, apaixonante e perturbador que puderes.
Certo dia, um homem que disse chamar-se George White apresenta-se no plateau onde decorrem as filmagens. Pede para assistir à rodagem. Hawks telegrafa imediatamente a um amigo de Chicago e pede-lhe informações sobre aquele George White.
George White, claro, não era George White. Quando muito seria Puggy White, de nome verdadeiro Withney Krokower, homem do gang de Capone e cunhado de outro bandido de marca, Bugsy Siegel.
Na manhã seguinte, White volta ao estúdio e Howard Hawks vai ter com ele. Hawks encara com o tal White e diz-lhe saber quem ele é, um proxeneta e um homem que à conta dele já mandou desta para melhor uma dúzia de indivíduos. White aceita o estatuto de assassino, mas recusa calorosamente o de proxeneta. Na verdade, está ali para dar alguns conselhos ao realizador na feitura de certas cenas, enfim, só para as tornar mais parecidas com a realidade. E dá logo uma ideia: os gangsters vão a um hospital visitar um dos do gang rival e levam-lhe grandes braçados de flores e desses enormes braçados de flores irão sair as metralhadoras que vão disparar sobre o doente. Aquilo sim, era uma coisa real que bem podia aparecer no filme. E dito por quem conhecia do ofício.


Outro pormenor do ofício: um dos do gang de Capone tinha o hábito de, ao assassinar alguém, deixar na mão do morto, em sinal de desprezo, uma insignificante moedinha de um cêntimo. Howard Hawks ouviu isto e pediu a George Raft que andasse sempre com pequenas moedas no bolso e que as distribuísse prodigamente a cada cena de tiros.

                                                                                 

Historiadores do cinema afirmam que o próprio Al Capone teria estado em Hollywood incógnito a observar o andamento das filmagens. Hawks foi ao ponto de confessar que o tinha convidado para ver os rushes, ou seja, os planos já filmados, mas não chega a dizer se Capone em pessoa lá esteve.
Quem lá esteve da parte de Capone, na fase de montagem, foram outros gangsters. Estavam da parte do patrão para ver ao certo como aquilo tinha sido feito.


Conta-se que no dia da estreia do filme, Capone organizou um cocktail em honra de Howard Hawks. Howard Hawks teria ficado encantado com a gentileza e a boa educação daqueles bandidos. Como também se conta que o ponto culminante dessa noite do cocktail foi a chegada do próprio Capone em pessoa. 


Vinha com um elegantíssimo fato de riscado e à guisa de recordação do ramo de actividade em que trabalhava ofereceu ao realizador Howard Hawks uma pequena metralhadora.Mas também alguns opinam que esse cocktail nunca se realizou, até porque, pelo menos no dia da estreia em Chicago, Capone já estaria preso.
O filme saíu. Todavia com uma advertência prévia para o público, já que era conveniente explicar a razão de toda aquela violência.
      Este filme é uma denúncia da lei da Mafia na América e da desumana indiferença do governo quanto à ameaça crescente à nossa segurança e à nossa liberdade. Todos os factos apresentados no filme que ides ver são uma reprodução de factos reais, e a finalidade desta obra é perguntar ao governo: que pensais fazer para deitar mãos a este problema?
O filme começa com uma recepção organizada pela personagem que é a encarnação de Big Jim Colosimo, o primeiro chefe de Capone. É visível a silhueta do homem que vai abater Big Jim Colosimo. É Tony Camonte (ou seja, Al Capone). E quando um detective pergunta a Camonte/Capone onde arranjou tão feia cicatriz, ele responde que foi ferido na I Guerra Mundial.


O contrabando do álcool, a partir da entronização de Capone, começa a ser organizado em bases racionais, quer dizer, profissionais, e os membros dos gangs concorrentes começam a ser implacavelmente assassinados até que Camonte/Capone esteja seguro do controle total.

                                                                                         

O filme mostraria também um Al Capone obsecado pela própria irmã sob o pretexto de lhe resguardar a virgindade – o pior é que a jovem é danada para a festa. E por aí fora… atentados à bomba, massacres continuados, tiros, facadas, contrabando, álcool, armas, prostitutas, jogo. Até à reconstituição da mortandade do dia de S. Valentim.


Uma cena houve, no entanto, inspirada na realidade mesma de Capone, que Hawks decidiu cortar. Capone passeava-se a bordo de um iate, nos mares da Florida, rodeado de famosas estrelas de cinema. Hawks cortou a cena alegando que era demasiado explícita do modo como pessoas do tipo de Al Capone podiam com toda a criminosa facilidade enriquecer num período crítico como era aquele em que se vivia, a grande Depressão. Seria um mau exemplo.

                                                                 

A cada assassínio cometido aparecia no ecran um X semelhante à cicatriz da cara de Capone.
Capone assassina friamente um homem que numa boite dançava com a irmã.
Capone rouba a namorada a um dos seus mais próximos colaboradores, o qual, por sua vez, tenta assassinar um dos meninos-bonitos de Capone e o próprio Capone. Mas Capone escapa e decide vingar-se.
Capone descobre que aquele a quem roubou a namorada acaba de casar em segredo com a sua própria e adorada irmã e desfaz-lhe o corpo a rajadas de metralhadora. Vai refugiar-se em lugar seguro mas descobre que esse lugar seguro está cercado pela polícia. Resiste à policia, mas durante essa resistência a irmã suicida-se…
43 assassínios num só filme. Classificação: para maiores de 15 anos.


Ao longo do visionamento de Scarface, o público vai ficando naturalmente cada vez mais indisposto com a sucessão dos acontecimentos e com a situação que o seu país na realidade vive. É por isso que Scarface, de Howard Hawks, para além de mero filme de divertimento, adquiriu uma aura de testemunho histórico sobre a realidade da democracia americana dos anos 20.
Scarface fica para a História, do cinema, digo, e não apenas do cinema. Fica para a História como a descrição mais penetrante, mais inteligente e mais desassombrada que alguma vez foi feita sobre a ascensão e queda de um mafioso. Para Howard Hawks ficaria para sempre como o seu filme favorito entre todos os que realizara.
Outro factor do interesse realista de Scarface é a interpretação do protagonista por Paul Muni no difícil jogo entre a depressão e a histeria que eram próprias do Capone real. Uma esquisofrenia provocada também pelas diversas fases da cocaína, e sendo essa uma das principais componentes do encanto e do carisma da pessoa de Al Capone: brilhante, fascinante e cortês num momento; abatido ou paranóico no momento seguinte.

                                                                            
                                                                   
É evidente que tanta violência e tanto realismo deixou a censura americana de cabelos em pé. Howard Hawks foi intimado a juntar ao título Scarface um subtítulo: a vergonha de uma nação. Era imperioso induzir a forma de pensar do público acerca daquilo que iria ver no écran.
A cena final, e por uma questão de moral objectivamente invocada pelos censores, também foi modificada: antes de se enforcar, Capone (que na realidade não se enforcou coisíssima nenhuma) ouve  (não sei como, não vi o filme) um discurso sobre as malfeitorias e os prejuízos causados à nação pelos gangs de Chicago.


Outra cena introduzida a martelo por ordem da censura é quando um grupo de cidadãos conscientes, incluindo um italo-americano, invade a redacção de um jornal e censura o editor pela cobertura obsessiva que está a fazer da guerra entre os gangs de Chicago, donde resulta que o editor desata a falar directamente para a câmara aconselhando os espectadores a lutar contra o gangsterismo. Foram aliás duas cenas modificadas ou acrescentadas posteriormente, já não dirigidas por Howard Hawks e representadas por um duplo de Paul Muni.
Quando o filme sai, em 1932, sai em duas versões: a versão, por assim dizer, moral, a ser distribuída nas zonas rurais; e a versão original a sair só nas grandes cidades.

                                                                           

Foi um sucesso de bilheteira. E não foi maior esse sucesso pelo custo das cenas adicionais de que falei atrás.
E foi sina de Brian de Palma fazer remakes de êxitos violentos do passado sob a temática da Mafia. Aconteceu com Os Incorruptíveis e aconteceu com Scarface.
No Scarface  de Brian de Palma, a acção é modernizada e não segue pari passu o argumento original, não obstante as semelhanças da intriga. É uma esplendorosa interpretação de Al Pacino, e é um argumento de Oliver Stone, deslocando os factos para os anos 80, quando o governo de Fidel de Castro faz sair de Cuba barcaças carregadas de dissidentes e criminosos de delito comum indesejáveis na ilha, a caminho da Florida. E está visto que o tema já não se centra no tráfico de álcool mas exclusivamente no dos estupefacientes.


Uma das cenas mais tocantes é quando Al Pacino (Scarface dos anos 80) pega num saco cheio de cocaína, enfia a cabeça lá dentro, inspira profundamente, e agarra num lança-granadas que dispara sobre os gangsters que o vêm matar.
Passando do ecran à realidade dos anos 30, seja dito que apenas sete meses passados sobre a estreia do primeiro Scarface, Capone começa a ser julgado por fraude fiscal.

                                                           
 É dado como provado que entre 1924 e 1929 Capone embolsara, pelo baixo, lucros de mais de um milhão de dólares, a que equivaleriam 216.000 dólares de impostos. O veridicto sai a 17 de Outubro de 1931: 11 anos de prisão e 80.000 dólares de multa. Recambiado para a Penitenciária de Atlanta.


Foi pelo lado burocrático e fiscal que o conseguiram apanhar e inculpar, e não por alguma coisa que se parecesse com negócios ilícitos e assassínios em série. E isto também quer dizer apanhado pela Justiça, segundo alguns, não tanto pela importância dos crimes de vária ordem e mais pela ostentação de riqueza que adorava exibir em lugares públicos, coisa escandalosa no momento em que o país passava pela tal profunda crise da Depressão.
Aquele homem volumoso, extravagantemente vestido, que se apresentava todos os dias no tribunal podia até ser confundido com algum banqueiro de Wall Street em excesso de peso.
Na penitenciária, Al Capone é declarado sifilítico. Para além disso, é portador de blenorragia crónica e tem o septo nasal perfurado devido ao excesso de coca. Tem só 33 anos.

                                                            

Em 1934 mandam-no para Alcatraz. Frequenta as consultas de neuro-psiquiatria da prisão. A saúde mental dele deteriora-se de modo galopante. Chega a travar com outro paciente uma batalha de excrementos.


      Acaba, como em tempos prometera, por voltar a Los Angeles, pelo menos aos arredores, à Instituição Correccional de Terminal Island. Já em 1939. E instalado numa cela bem jeitosa. 
     E em Novembro desse ano é posto em liberdade e vai ter com a mulher. Passa oito anos recluso, em casa: paranóia. Continua convencido de que o querem assassinar.
Mas não foi preciso assassiná-lo. E ainda durou uns bons anos. Morre de hemorragia cerebral a 27 de Janeiro de 1943.