quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

COISAS




- Responde-me cá, meu rapaz, sabes que isto é um espaço quadrado?
– Sei.        
- O espaço quadrado é aquele que tem os quatro lados todos iguais?
 – É.
– E estas outras linhas tiradas pelo meio não são também iguais?
– Sim.
         – Um espaço deste género não pode ser maior ou menor?
- Sem dúvida.
- Se este lado mede dois pés, e este lado o mesmo, quantos pés terá ao todo? Espera… considera a coisa deste modo: se este lado medisse dois pés e aquele apenas um pé, não é verdade que o espaço mediria uma vez dois pés?
- Sim.
– Mas como este lado mede também dois pés, isso não faz duas vezes dois?
– De facto, faz.
         – Então, o espaço é igual a duas vezes dois pés.
         – Claro.
         – Quanto é duas vezes dois pés?
         – Ó Sócrates, eu acho que são quatro
        – Vês tu, Ménon, que eu nada lhe ensino e que eu apenas o interrogo?
As coisas que são iguais a uma terceira são iguais entre si. Se a coisas iguais se juntarem outras iguais, os todos serão iguais. E se de coisas iguais se tirarem outras iguais, os restos serão iguais.
O que é uma coisa em si? Qual é a coisa que existe em si, e por si, e independentemente do que queiramos perceber ou conceber dela? Berkeley opunha-se a isto. Ao pensar numa árvore situada em lugar solitário onde ninguém estava presente para a ver, pareceu-me que se tratava de conceber uma árvore como existente sem ser percebida nem pensada, esquecendo que eu próprio, entretanto, a concebia.
Como pode a matéria ser causa das nossas ideias? Como pode produzir pensamentos a coisa que não pensa?
Pergunta Roland Barthes: onde estão as coisas? No espaço apaixonado ou no espaço mundano? Onde está o pueril reverso das coisas?
Oh, meu caro Horácio, ficai sabendo que há mais coisas entre céus e terra do que sonha a nossa filosofia… mas vinde como dantes, e sempre, e ajudai-me, por mais estranho que vos pareça o que eu fizer…
Pois é. Coisas. Como se pode falar de coisas? Que coisas? Coisas do arco da velha. Sim, claro. Coisas do diabo. E coisas loucas. Coisas e loisas. Ele há coisas…
Há as coisas da vida. Choses. Choses de la vie. Mas depois das coisas da vida ninguém se refere às coisas da morte.
Coisas de comer, coisas de beber, coisas de vestir; coisas de comprar e de vender. A coisa pública  – que dá uma carga de trabalhos tratar dela; e até conseguir conceber-llhe a existência. E há o dizer coisa com coisa – seria a homossexualidade das coisas. E mais aquelas vezes em que uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Ó homem, tu vais buscar cada coisa!
E quanto ao tal assunto, estás a ver, é destas coisas…
Coisas e coisinhas. Beber coisinhas quentes, comer só coisinhas macias. Tocar coisinhas fôfas. Evitar as coisas geladas. As coisinhas boas que comemos. As coisinhas más que de vez em quando nos dão. Ou então… comeste alguma coisa que te fez mal, foi o que foi…
A coisificação da vida também. A coisificação até das próprias coisas. Ora aí está. Estamos nisso. Tudo é um produto. Cada vez menos algo tem alma. Cada vez mais tudo é coisa. E se alguma coisa não é coisa, pois coisifica-se para melhor se dominar. Tudo se pode vender. Tudo se pode comprar. Tudo é cada vez mais concreto e material. O espírito e o respectivo incomensurável metem medo aos simples que cada vez mais somos. Há homens tratados como coisas. E mulheres.
Vivemos entre coisas. Até ao ponto de nos transformarmos em coisas. É preciso reconquistar todos os dias uma soberania de pessoa sempre comprometida pelas coisas que nos rodeiam, que tocamos e nos assolam.
Mas há quem viva entre coisas e contra as coisas. A cada um de nós é dado, num ou noutro momento, o nosso quinhão nesse combate contra as coisas e a sua inércia. Pode entender-se como uma luta da liberdade humana contra uma ordem social.
Há quem tenha o pavor das coisas, do que é só porque sim; ou do que é para uma única finalidade e que por tal existe; ou do que é por si e existe por si e só por si – conheço muitas pessoas/coisas dessas.
Será para uns o viver entre as coisas o que os angustia. Será para outros o viver entre as coisas o que lhes acrescenta o prazer de viver. Será para outros o combate contra as coisas a razão de viver. Será para aqueloutros sumo prazer o suportar apenas o poder das coisas.
Dizia por outro lado certo comentador filosófico: é absurdo pensar que as coisas visíveis nascem dos seus nomes. É impossível. Os nomes são o resultado da convenção. As coisas visíveis não são resultado de convenção, são produtos do impulso natural.
Há as coisas reais e há a nossa opinião a respeito delas. Com o senão de as características qualitativas e intrínsecas das coisas reais dispensarem bem a nossa opinião sobre elas. Já Kant o dizia: os objectos não são rapsódias de sensações.
Quando  as coisas se apoderam do espírito, as palavras acorrem – como queria Séneca, o Velho. Ou como, não menos velho, queria Cícero: as coisas atraem as palavras.
A tremenda força das coisas é aumentada pelo uso da palavra, a palavra que designa a coisa, a palavra que tantas vezes – e cada vez mais – substitui a própria coisa, a palavra que designando a coisa, ou substituindo-a, extrai de cada coisa uma moral, a moral que pode ou não ser a mais intrínseca moral de casa coisa, e que se não for passa a sê-lo por intermediação da palavra. Palavra que aproveita a ausência da coisa, que a representa ou que a mascara tornando a ausência em presença, em alienação, em poder.
A palavra relógio não nos mostra um relógio. Os sons que constituem a palavra relógio não dão horas, não são o relógio, são a fracção imaterial eventualmente contida num relógio.
A palavra relógio cria o conceito e a forma de um relógio, ainda que possam não existir relógios na materialidade do real. Há um significado que adere a um significante, como diziam os antigos – e os antigos são os dos anos 60 do século passado, quero eu dizer. Mas o significante não passa de uma arbitrariedade. O significante sonoro re-ló-gi-o é aleatório. Aquele mostrador com ponteiros poderia ter começado a ser designado por quaisquer outros sons e nesse caso a sua materialidade objectiva talvez fosse diferente.


                                                         

Relógio. Como watch para os saxões – um nome que desencanta uma outra materialidade; um outro mundo interior sob a forma do mesmo objecto; uma outra organização sonora do visível; a palavra que engendra outra forma, um diferente espírito; uma variação moral.
Forma, conteúdo, significante e significado da coisa unidos na sua diferença da coisa.
As coisas são os seres da natureza. Têm essa força. Assumiram o contorno de vida que interveio sobre o caos e sobre a arritmia diabólica, recuperando as coisas essa condição (de coisas) a cada momento, a cada confrontação com a virtualidade do som da palavra que as designa, impondo, as coisas, a temível liberdade da sua estrutura.
Há leis que pretendem organizar o caos, ou seja, deter o movimento irredutível das coisas. Mas são as coisas, com o seu poder, que acabam por desbaratar a força das leis. Porque as leis são as palavras que a todo o momento lutam com a essência das coisas.
A palavra pretende dominar, assenhorear-se da realidade, a  visível e a perceptível. A palavra pode impor o inexistente pela força sonora e implícita de uma moral que não existe nas coisas e no poder delas, essa moral que só a palavra faz existir e impor como verdade às coisas que elas designam apenas um som.
As palavras existem para fechar as coisas numa redoma de destino e significados. Até que as coisas e o seu poder rebentem as grilhetas da moral da palavra e imponham a sua linguagem de mutismos irredutíveis e não morais. E para esta confrontação titânica e eterna concorrem os fenómenos da natureza, da política, do quotidiano individual.
O combate imemorial trava-se entre a superfície e o fundo.
Todo aquele que compreende que duvida, compreende uma coisa verdadeira e está certo dessa coisa que compreende. De uma coisa verdadeira é que ele está certo, logo, quem quer que duvide da existência da verdade possui em si uma verdade acerca da qual é impossível a dúvida. Mas só pela verdade há verdadeiro. Portanto, não deve duvidar da verdade aquele que de alguma maneira duvidar.
O homem sábio, dizem, é o que respeita a ordem das coisas. E não apenas isso. É o que, respeitando a ordem das coisas, as sabe governar, às coisas, como convém.
E ainda com Aristóteles, ficamos na qualidade suprema do homem que é sábio, e que é pôr cada coisa no seu lugar.
Mas será que há um lugar pré-determinado para cada coisa? O que é um lugar? É um compulsivo escrínio para uma coisa? Ou a existência da coisa determina e condiciona o destino de um lugar? O lugar em função da coisa; ou a coisa em função do lugar que a contenha?
Mas uma realidade, quando ordenada para certo fim, acha nesse fim a regra que lhe determinará o lugar na ordem geral do mundo.
Julgo que Tomás de Aquino foi quem disse que a melhor disposição das coisas é a subordinação ao fim que lhes convém. E qual será o fim para as coisas?
O fim para todas as coisas é o bem.
O chefe encaminha os subordinados/coisas para o objectivo da sua actividade. O médico determina a farmácia/coisa porque a saúde é o objecto da medicina e dos medicamentos/coisas cujo lugar é a farmácia. O objectivo da construção de um navio/coisa é a navegação.
Tomás de Aquino chamava às técnicas que comandam as coisas de arquitectónicas, e os que as dirigiam, os arquitectos, podiam ser chamados de sábios.
O último fim de uma coisa é aquele determinado pelo autor da coisa, ou pelo menos pelo promotor dessa coisa. Se a coisa é o universo imenso e inteiro, o seu autor é a inteligência. Donde, o fim supremo do universo ser o bem da inteligência. E sendo o supremo sentido da inteligência a verdade.
A verdade, para Aristóteles, é o princípio primeiro de que depende a existência das coisas. De todas as coisas.
As coisas em si poderiam estar submetidas a leis, ainda que não houvesse entendimento que as conhecesse; mas os fenómenos são apenas representações de coisas que não poderemos conhecer o que são em si. Como simples representações não estão submetidas a nenhuma outra lei de ligação senão a que prescreve a faculdade que conexiona.
Muitos filósofos na esteira de Kant sustentam que as relações são obra do espírito e que as coisas em si não têm relações, que é o nosso espírito que reúne as coisas num acto único de pensamento, e que, assim, é o pensamento que produz as relações que ele julga existentes entre coisas.
Tenhamos a ousadia iluminista de aprofundar a natureza de uma coisa e descubramos que a nossa acção de aprofundamento da natureza dessa coisa desemboca na descoberta de uma nova coisa. E assim se superam as fronteiras entre o real e o ideal.

As coisas derivam da substância primordial, queria Anaximandro. E derivam as coisas da substância primordial por um processo de separação. Há uma substância infinita em movimento perpétuo, movimento pelo qual dessa substância se separaram os contrários, quente/frio; seco/ húmido…

O mundo infinito das coisas seria gerado pelos processos de separação que são propriedade da substância primordial. O ciclo das coisas durará então a eternidade. Mas a separação que gera as coisas é uma ruptura da unidade que é própria de todo o infinito. A separação das coisas da sua substância primordial é um princípio de diversidade. De onde imperava a homogeneidade e a harmonia desprenderam-se as coisas e criou-se, com a separação das coisas, o contraste.


A separação que originou as coisas criou para as coisas a condição do finito. A condição de uma morte. Uma morte que é paga da separação das coisas, do movimento das coisas. É paga, pela finitude, do regresso das coisas à Unidade.
E lá dizia o enorme Heraclito que as coisas opostas estavam unidas. O que não era exactamente o mesmo que estarem conciliadas, e sendo a guerra o seu estado permanente.
Mas Hegel teimava, e queria, pelo contrário, para as coisas opostas um estado de conciliação, e porque essa conciliação atestaria das coisas a sua verdade.
Já Pitágoras queria que a substância das coisas fosse o número; e queria que os princípios matemáticos marcassem o princípio das coisas, de todas as coisas. Os números, e não a terra, nem o fogo, nem o ar. Nos números distinguia Pitágoras a semelhança com as coisas, as que eram e as que deviam ser. O número era uma causa material. O número era uma hipótese de compreender as coisas, a probabilidade da moral que pode medir as coisas.
Será o número o modelo mesmo das coisas?
Porquê o número como modelo das coisas?
Por constituir, implícita, a ordem nas coisas, e assim em função de uma perfeição ideal contida no número.
As figuras geométricas são os elementos substanciais das coisas, dos corpos, princípios de realidade do corpo das coisas.
E afinal de contas, a diversidade das coisas depende da diversidade da forma das mais pequenas partículas que compõem as coisas.
Quando é ele que a tem na mão, essa cafeteira parece outra: parece  mais verdadeira. Em contacto com ele todas as coisas parecem verdadeiras. Ele deita o café nas chávenas, vejo-o beber, e bebo, mas sinto que é na boca dele que está o verdadeiro gosto do café. Quando ele se vai embora, o café perde o gosto verdadeiro, desaparece o verdadeiro calor, a  verdadeira luz. Fica apenas isto. Uma cafeteira. (Deixa de uma peça de Sartre já muito fora de moda, Les Mains Sales.)
O magnífico poder das coisas… a incrível inteligência das coisas aparentemente inanimadas… a pequena peça da janela da minha marquise que, inteligente e cruelmente, num dos períodos de maior frio deste inverno, se decidiu pela inércia, impedindo a janela de ser fechada - uma manifestação de poder e inteligência das coisas que me inspirou esta escrita. A soberania esplêndida e o irresistível e dramático humor de uma membrana do meu inteligente esquentador, que de conluio com a inteligência da peça da janela da minha marquise, e que no pino da friagem da invernia decidiu deixar-me tomar em paz e delícia os primeiros cinco minutos do meu banho quente, para depois, passados os cinco minutos, sem aviso, me fustigar sardonicamente com a fracção fria, gelada, da coisa que é a sua água.
As coisas… e o seu poder… e a sua ironia inerte… e a força imbatível da sua moral… . digam os filósofos acerca das coisas o que disserem…
Mas entre a janela da marquise e o esquentador pode erguer-se na nossa vida  uma outra e mais maravilhosa coisa. Um espelho.
O espelho. Lembrei-me agora. Coisa poderosa entre todas as coisas, porque dotada dos mais amplos e sinistros poderes.
O olhar e o sorriso da mãe é o nosso primeiro espelho. Estamos nele. Não o somos. Só lá estamos. Porque desde logo, e enquanto pequena coisa que somos, ansiamos por um lugar que nos contenha. E seguimos o nosso impulso vida fora para abraçar esse espelho e sofremos porque ele se estilhaça mal julgamos que nos temos a nós mesmos nos braços, e quando esse nós-mesmos era somente representado numa coisa que era e ao mesmo tempo não era esse nós-mesmos.


O espelho é a coisa que nos devolve o ser.
O espelho são os olhos que nos devolvem os olhos. De onde pode decorrer o que os entendidos chamam de patologia do amor-próprio.
Entre a minha marquise e o meu esquentador olho para uma coisa que arbitrariamente chamaram de espelho e amo a imagem de um homem. Que sou eu? Sim, mas quem sou eu senão aquele que vejo numa coisa, numa coisa chamada espelho, e de uma forma tão completa e complexa que eu nunca poderei ver-me a mim mesmo num dado momento a não ser por intermediação de uma coisa, um espelho.


Eu não existo. Só existe aquele que se move, e faz caretas e sorri exactamente como eu e que está contido numa coisa. À qual, arbitrariamente, emprestaram o som a que chamaram palavra – espelho; mirror para outros. Logo, eu sou eu e a própria coisa que me informa da minha presença no mundo e na minha primeira qualidade de ser eu, que é a ilusão de uma aparência comigo mesmo.

                              

E entre as coisas e o seu poder descricionário há o amargo sentimentalismo de uma lâmpada que se funde no ponto mais apaixonante da leitura.

Há o moralismo exasperante das molas de uma cama que rangem no momento físico que requer máxima concentração dos sentidos…
O antigo 1ºministro indiano Nehru revelou a André Malraux uma ideia interessantíssima – e orientalíssima – acerca das coisas. Chegara a Inglaterra e ficara muito interessado pelo conceito ocidental de beleza. Entendia que o conceito ocidental de beleza procurava conquistar as coisas, diversamente da ideia oriental de Nehru, que procurava libertar-se delas.


O desejo da coisa, e não a possibilidade de fruição da coisa.
Revertendo ao meu tão frequentado Denis de Rougemont, encalho em Tristão e Isolda. Cada um será uma coisa para o outro. Não se amam. Amam o amor. Amam o facto de amar. E, não se amando, concedem-se uma condição de coisas, cada um como objecto/coisa da paixão do outro. Não se amando, e amando somente a ideia de amar, permanecem sujeitos ao seu próprio mundo, no seu próprio mundo, sem necessidade de objecto a amar, dispensando, por assim dizer, a coisificação do outro. Diz Rougemont: Isolda nada faz para reter Tristão junto de si. Um sonho apaixonado lhe basta.
Tristão e Isolda. Têm necessidade um do outro para arderem de paixão, mas não um do outro tal como cada um é; não da presença do outro; muito mais da sua ausência.
A presença do objecto amado é a coisificação desse objecto. A separação pode compensá-los num subliminar contentamento mais do que a presença do objecto vivo da paixão, a coisa. Sim, digo, a coisa em que cada um de nós se torna logo que desejado e amado pelo outro.
O amor mais sagrado pelo outro/coisa pode ser só a paixão de se sentir só no seu sonho. Um sonho sem coisas.
Há os pensadores que dizem que Deus é um intellectus archetypus, ou um intuitus originarius. O que quer dizer que só pelo acto de pensar uma coisa, cria, realiza, produz essa coisa.
Coisas que nada tenham de comum entre si também não podem ser entendidas umas pelas outras, ou por palavras diversas, o conceito de uma não envolve o conceito de outra.
Nada acontece sem que haja uma causa, ou pelo menos uma razão determinante, ou alguma coisa que faça servir para dar razão a priori, porque dada coisa é existente e não inexistente, e porque dada coisa é de uma forma e não de qualquer outra. Quanto às ideias das coisas corpóreas nada reconheço nessas ideias de tão grande e de tão excelente que de mim não pudesse vir. E se as inspecciono mais de perto acho que muito pouco nelas há que eu não tenha concebido clara e distintamente, a saber: a grandeza (comprimento, largura, profundidade); a saber: a figura; a saber: a situação que entre si mantêm esses corpos; e a saber:  o movimento, a mudança de uma situação para outra. Acrescentando eu ainda: a substância, a duração, o número, e demais qualidades de natureza táctil, luz, cores, sons, cheiros, sabores. Acho-as no meu pensamento tão obscuras e tão confusas que ignoro se as ideias que delas concebo são ideias de coisas reais, ou se me representam seres quiméricos que nunca poderão existir.
É que pode haver nas ideias alguma falsidade material, que é quando representam o nada como se fosse qualquer coisa.
Escrevi isto ao passar uma fase má, em que me deu para ler. Aristóteles, Euclides, Platão, Heraclito, Pitágoras, Anaximandro, Descartes, Bertrand Russell, Michel de Montaigne, Séneca, Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Shakespeare, Sartre, Nehru, Berkeley, Denis de Rougemont, Roland Barthes, Kant, Leibniz, Spinosa, eu sei lá…





sábado, 25 de janeiro de 2014

          A MENOS  QUE  A NECESSIDADE  NOS
                         OBRIGUE  A  SER BONS


Tornando ao velho Nicolò Macchiavelli. Porque acho proveitoso. Hoje. Ainda. Por isto. E por aquilo. Por tudo. E por nada. 

                                                                           


O pior que pode acontecer a um príncipe cujo povo é seu inimigo é ser abandonado por ele. Mas se os grandes lhe são contrários, deve temer que lhe caiam em cima. Gente de melhor visão e mais astúcia do que o povo, os grandes não perdem tempo. Põem-se ao fresco e só procuram cair nas graças de qualquer outro que venha a seguir.


       













       O príncipe pode ser o médico que diagnostica e trata os achaques do Estado. Isso é verdade. Mas o nosso Nicolò quer vê-lo sobretudo como um artista capaz de pensar esteticamente esse Estado que emerge da massa informe e bruta do conjunto dos seus cidadãos; capaz de inscrever os interesses antagónicos e arbitrários, feios, numa categoria do Belo; o príncipe paradigmático de Nicolò é um arquitecto que sobre sólidos alicerces sabe construir um edifício harmónico.
         O Estado pode ser uma obra de arte, um monumento ao espírito empreendedor do Homem, contando para a sua execução com as partes necessárias de instinto, força, sorte, planeamento, improviso, razão e acção.

                                                     

        Parte importante da doutrina maquiavélica, chamemos-lhe assim, é a insistência na separação do puro pensamento político do pensamento ético-filosófico. É instaurar a autonomia da arte de pensar a política relativamente a quaisquer coordenadas de natureza teológica.
         Definitivamente fora da moral haveria de estar a política.
       E não importará provavelmente tanto saber a forma melhor de um governo, ou mesmo tentar definir em rigor a essência de um poder, senão que, muito pragmaticamente, obter um fim superior, conseguir uma estabilidade e uma ordem funcionais para o Estado.
         De todo o modo, será bom acentuar na ideia de Maquiavel que o poder por si só não garante áquele que o detém nem a glória nem a virtude. Um príncipe poderá absolutamente actuar do lado de fora das normas éticas dos tradicionais e religiosíssimos códigos. O que é de aceitar como coisa natural. Ou até como coisa desejável. Porque o que mais importa são as finalidades, já se sabe. E talvez por isso tivessem acusado Nicolò de ter escrito um tratado imoral e  mais próprio para funcionar como vademecum de tiranos.
         Os fins e os meios. Cá está. E os fins que justificam os meios. Cá está. Cá está o conceito mais facilmente vulgarizado  do pensamento de Maquiavel.


       Para as acções dos homens, designadamente dos poderosos, nunca, ou raramente, na hora de delinear uma acção política, existe por perto um árbitro imparcial ou uma autoridade moral acima de toda a suspeita. Nessas condições, da humaníssima realidade, então, o único critério de aferição da bondade das acções humanas em geral e dos governantes em particular é a qualidade dos resultados obtidos. Ou o grau de adequação do resultado final de uma acção política ao conceito que lhe esteve na génese. Ou, finalmente, o grau de eficácia dessa acção na resolução do problema concreto que a determinou. E não se tratando, portanto, da pura legitimação do Mal; ou de uma justificação dos tais meios que os fins pudesse aconselhar.

Não é virtude matar os cidadãos, trair os amigos, ser desleal e pouco compassivo ou pouco religioso. Assim, será possível conquistar o poder, mas nunca a honra.

        Toda a virtude de um senhor se relaciona com a natureza dos fins a que se propõe.
                                                            
                                                             

         E se a violência é determinada pelas exigências do interesse geral, são admissíveis certas acções eventualmente condenadas pelos códigos ético-religiosos de cada tempo, questionando-se se aqueles que criticam certas acções, uma vez chamados eles próprios à responsabilidade de decisores e de actores, e tendo em mira finalidades positivas, não as teriam igualmente praticado. E assim por uma questão de moral. A moral dos meios. Por acaso, abissalmente diferente da moral dos fins, como Maquiavel no-lo demonstra.
         Um príncipe é mais do que um indivíduo – e sem embargo de o ser e de se exercer e exacerbar como tal. Um príncipe é uma instância social onde se corporizam, e concretizam, as aspirações da comunidade. É a potencialidade integradora e universal dessas aspirações.
         A saúde política de um Estado estaria então na intensidade dos seus conflitos sociais. Já na República Romana, sistema nunca por demais exaltado por Maquiavel, era o conflito entre plebeus e senadores aristocratas a dar o tom da grandeza e da liberdade do Estado. Daqui o dizer-se que a estabilidade política se basearia no equilíbrio muito dinâmico e inevitavelmente conflitual existente no pluralismo das forças vivas. Jamais na supressão ou na repressão dessas forças vivas, porque daí resultaria algo parecido com uma estabilidade laboratorial, fictícia.

As disputas entre o povo e a nobreza na antiga Roma travavam-se na argumentação e na troca de razões, enquanto em Florença tais diferenças se dirimiam em lutas violentas. Em Roma eram as leis que resolviam os conflitos; em Florença eram o exílio e o assassínio de muitos cidadãos.


As diferenças na situação da antiga Roma e da então moderna Florença poderiam resumir-se na diferença dos seus objectivos finais: o povo romano gostaria de partilhar algumas honrarias e benesses com os patrícios, sendo que, por outro lado, os populares florentinos acalentavam um furioso desejo de se governar a si próprios sem qualquer participação da nobreza no destino da cidade. Estava-se no tempo de uma Itália enfraquecida, dividida, minada por lutas intestinas entre os partidos, ou seja, entre os seus senhores. E daí a conveniência de um governo mais ou menos despótico para uma situação crítica em extremo. Mas um governo despótico que não desprezasse o uso da violência como meio de conseguir um novo e mais alto estado de civilização e unidade na Península Itálica.
         Pois bem, os fins eram excelentes. Os meios poderiam não o ser à inflexível luz de uma moral. Mas pelo menos justificavam-se. E justificar-se-iam em pleno se os objectivos fossem de alguma maneira atingidos se a Itália pudesse passar a respirar livremente como Estado moderno e não como reserva do Mal e da barbárie a ser aproveitada pelos invasores e ocupantes estrangeiros.
      A violência de uma repressão em nome do interesse geral e nacional deveria prevalecer sobre a violência gratuita dos partidos e dos senhores uns contra os outros quando perseguiam unicamente o fim dos seus interesses privados.
       Na arcaica Roma Romulo matou Remo, o irmão que com ele mamara na teta da loba. Matou Remo e fundou Roma. E nota Maquiavel acerca do gesto de Romulo que a acção acusou-o, mas o resultado dessa acção desculpou-o.

                                                                        

         Se o resultado é bom e a finalidade superior é atingida, os meios serão desculpáveis, quiçá legitimados. É esta a moral maquiavélica. Elástica e perversa, dir-se-á, mas de todo inescapável nos patamares da alta política, como a História nos ensina a cada passo.
    Maquiavel reprova a violência que tem por objecto a pura destruição – a gratuita, digamos. Porém, não pode ele deixar de aplaudir uma violência que, um tanto bizarramente, vamos lá, se poderia chamar de construtiva – ou, se preferirmos, como na medicina, de preventiva.
       Um conflito pode produzir efeitos benéficos na ordem pública, desde que no quadro de um Estado organizado e controlado por instâncias políticas estruturadas.



Os fundamentos principais de todos os estados, sejam eles novos sejam eles antigos, são as boas leis e as boas armas.
                                                                             
                                       


       E aqui Maquiavel opta nitidamente pela excelência das armas. Mas como meio e não como fim. E exactamente quando o objectivo superior e civilizacional a atingir são as leis. Se uma boa lei não achar outro meio de se impor na bárbara comunidade dos homens e dos respectivos interesses, que se usem as armas sem preconceitos nem má consciência.
     Maquiavel aceitava até a violência a escalões muito pouco aceitáveis aos nossos olhos de hoje.
         E aceitava a violência intra-muros na forma de conspirações e atentados políticos. Da mesma sorte que julgava inevitáveis as guerras entre estados soberanos.


       O conceito de herói político apontava para o príncipe desassombrado e impetuoso que não recuava na movimentação ofensiva dos seus exércitos. E deplorava os príncipes  e os estados mais tímidos na sua própria defesa, os mais contemporizadores, os que escolhiam mais depressa as políticas de compromisso e negociação do que as acções decisivas. Talvez por isso a arte da guerra lhe merecesse também vasta teorização.
       Maquiavel defendia a existência de boas armas, quer dizer, de adestrados exércitos, como força de educação dos povos. Na moral do tempo, a instituição militar instilava nas consciências jovens os mais nobres valores de cidadania. As vitórias externas dos exércitos incrementavam noções de orgulho nacional e de patriotismo. Mas, mais importante ainda: cabia à força militar organizada e disciplinada ser, em teoria, pelo menos, acho eu, um obstáculo à instalação do poder tirânico.
                                                        
                                    


                                            

Que ninguém se deixe cair na certeza de aparecer quem o levante. Só são boas e duráveis as defesas que dependem de ti e do teu valor. 

         E também:

É admirável o príncipe que se mostra amigo ou inimigo e que sem hesitações se manifesta a favor de alguém contra outro. É mais proveitoso este procedimento do que a neutralidade. Se um vizinho teu declara guerra a outro também teu vizinho, ser-te-á útil fazer jogo limpo e franco e tomar um partido. O que ganhar não quer amigos suspeitos que não o ajudem quando precisa; o que perder não te socorrerá nunca, porque tu não quiseste, pelas armas, compartilhar da sua sorte.
        
                                                            



Maquiavel, não obstante tudo, tinha inegáveis simpatias republicanas. Mas em 1513 a república é abolida em Florença e Maquiavel deixa entre parêntesis essas simpatias republicanas. Escreve rapidamente O Principe


Em 1513, o filho de Lorenzo, o Magnífico, Giovanni de Medici, é elevado à suprema dignidade de chefe da Igreja, passando a chamar-se Leão X (Maquiavel dedica-lhe um memorial versando a organização de um sistema político para Florença). 

                                                                           

Giuliano, irmão do papa, morre inesperadamente em 1516, e sucede-lhe Lorenzo de Medici, Duque de Urbino. 


E O Príncipe, que Maquiavel havia dedicado a Giuliano, passa a ser dedicado a Lorenzo, e até porque os Medici só terão que aproveitar um conjuntura política (fortuna) que lhes é favorável: tropas estrangeiras invadem a Itália; um Medici ocupa o trono de Pedro e tem poderes sobre os estados papais da Itália central; enquanto outro Medici domina Florença e toda a Toscana. Seria um primeiro esquisso de unificação política da Península, a convergir para o centro geográfico a possível aliança de interesses e principados contra o invasor.
         Maquiavel entendia a conjuntura como um desafio, a occasione, para a virtù de um novo príncipe, uma dádiva da fortuna, a deusa que no universo político poderia aparecer em lugar da providência divina.
        Só o Bórgia. Rodrigo Bórgia, o papa Alexandre VI, pudera em tempos dispor de tão afortunada conjugação de factores favoráveis, a qual Bórgia, aliado com  seu filho César, não aproveitara em cheio por motivo de falecimento.
         Maquiavel via um elo político de ligação entre as famílias Bórgia e Medici, um destino político singular, ao qual eram oferecidas semelhantes oportunidades para a realização do alto desígnio de fortalecer politicamente a terra itálica, tão cobiçada pelas potências do exterior.
         Neste dédalo de coincidências nasce a oportunidade para a obra, O Príncipe. Mas a fama devassa dos Bórgia corria mundo e daí que os adversários de Itália aproveitassem os rumores de dissipação e vício que soavam acerca dos príncipes e condottieri italianos para pôr a correr que a Itália era afinal a terra do Anti-Cristo, do ateísmo militante, da traição, da perversão e da pouca vergonha dos políticos “maquiavélicos”. Lá está.

                                                                


Será melhor ser amado que temido, ou o inverso? Preferível seria ser ambas as coisas, mas como é difícil conciliá-las mais seguro será  o ser temido do que o ser amado, se só se puder ser uma delas.  

         Dedicado ao Duque de Urbino, Lorenzo de Medici, e usando longamente como modelo o tão mal visto César Bórgia, O Príncipe daria a pior das famas ao grande Nicolò Macchiavelli.
         A cultura europeia, tanto ao nível do ensaísmo político como até ao nível, por exemplo, das dramaturgias isabelinas, Christopher Marlowe e Shakespeare inevitavelmente incluídos, integraria nos seus léxicos os termos “maquiavélico” e “maquiavelismo” como sinónimos de imoralidade, manobrismo político, expedientismo e falta de escrúpulos. Tudo isso e mais umas botas até ao século XVIII. Então, Maquiavel passa a ser olhado e entendido como um moralista, como uma percursora figura de proa da ideia italiana de independência e unificação. Afinal de contas, escrevendo um guia para o tirano, Maquiavel mais não fizera nas suas obras do que levantar as pontas do véu do Mal e revelar a natureza mais profunda dos estados, dos poderes e das tiranías mesmas.


         A família Medici encomenda a Maquiavel a redacção de uma História de Florença, mas não o promove a mais altas funções de Estado.

                                                     

         Em 1527 acontece o saque de Roma e na sequência indirecta dele a república é reinstaurada em Florença. Maquiavel ainda está vivo – será por pouco tempo – e sempre acreditara na restauração da república a seguir aos Medici, sempre esperara por ela, e mais (segundo Burckhardt), teria até sonhado mais alto ainda, e mais longe, com uma forma moderada de democracia política.
         Mas os Medici organizam em 1530 uma empresa de guerra contra a república florentina e os florentinos partidários da república defendem-se heroicamente, ainda que em inferioridade numérica. Maquiavel é que já não vive para assistir a isso.
         O pensamento de Nicolò Macchiavelli marcou culturalmente a Europa, e até para lá das matérias militares ou estratégico-políticas. Calcula-se que Maquiavel chegaria  a influenciar muitos passos das teorias relacionadas com negócios ou com a gestão das empresas, coma gestão dos recursos humanos e com as técnicas de avaliação psicológica. E, apesar de todos os preconceitos ou obsolescências, esse pensamento continua a fascinar-nos pela agudeza das conclusões acerca de nós mesmos, seres humanos, visceralmente bons ou originariamente maus que sejamos, ou as duas coisas, ou nenhuma delas.
         Quem somos nós?
         Somos o que somos. Para o bem e para o mal. Como se costuma dizer.




Os homens acabarão sempre por se revelar maus, a menos que a necessidade os obrigue a ser bons.