quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


                           

A MINHA ÓPERA FAVORITA


Já, vida fora, tive várias, como é evidente, até a Bohème já foi minha favorita, e uma das primeiras, e Rigoletto, e Tosca, enquanto ia ficando mais fino, e depois foi mais Valquíria, e ainda depois foi a dúvida Bodas/D.João que ainda hoje permanece, e foi Tristão, e hoje é esta. Achei-a a mais moral de todas. Digo eu, claro. Uma ópera que esteve por um tris para não ser aquilo que foi, ou como hoje a conhecemos. E esteve para não ser aquilo que veio a ser por uma questão de moral. E moral política.
Desaparecido Meyerbeer, e com Wagner ainda em fase de afirmação internacional do seu génio, tocava a Verdi a liderança do mercado mundial da ópera. E Verdi não deixa de ter em mente o futuro do melodrama. O que não quer dizer que renegue o passado. Acaba de se safar da aventura político-parlamentar de Turim. Está aborrecido com a política, mas não pode deixar de prestar atenção ao mundo que o rodeia. Em Busseto querem-no outra vez candidato ao parlamento.
                                          

- Não posso aceitar. Perde-se muito tempo. Discute-se demasiado. O mais que posso fazer é recomendar-vos um sucessor. Sim, um homem frontal e sincero, e de formação liberal.
                                                                               
                                                        

E o interessante é que por entre as amarguras da sua hostilidade pessoal à vida política, vai maturando a sua ópera política entre todas, o D. Carlos.
Os tempos iam agitados pela Europa. Karl Marx publicara  O Capital em 1866.  D. Carlos vai subir à cena, em Paris, em 1867.
       E as nuvens de uma grande tempestade política continuam a pairar sobre a península itálica. A capital transfere-se para Florença, daí resultando forte agitação de massas no Piemonte. Verdi diz a isso:
            - Aos torineses falta o verdadeiro amor pátrio, e as mais belas e espirituais intenções desvanecem-se neles logo que os interesses materiais entram em jogo.
            O povo vai sendo incitado pelos partidos a uma nova guerra contra a Áustria. A Áustria mantém o Veneto na sua posse e em Abril de 66 a Itália alia-se à Prússia na estratégia de retirar aos austríacos a hegemonia sobre a Confederação dos Estados Germânicos. A guerra está aí a rebentar. Verdi vai confiando os seus pensamentos aos amigos mais chegados.
                                                            
                                                                     

            - A todo o momento estou à espera de ouvir troar o canhão. Não me admirava se uma manhã destas uma bala viesse fazer ricochete nas paredes do meu quarto. Mas enfim, a guerra terá de se fazer. Essa coisa do Congresso é uma plaisanterie…



                                  
            Abandonar Itália? É uma primeira intenção. Porque vive numa zona sempre exposta aos combates. Mas falta-lhe ânimo para tanto. Deixar a Itália, muito bem. E ir para onde?  E fazer o quê?
            Para já, vai respeitando a encomenda parisiense e vai compondo o D. Carlos. Acabara o terceiro acto. Começava o quarto. Acabado o quarto acto, a ópera era de considerar concluída. O quinto fazia-se por si. E depressa. Oito, quinze dias de trabalho bastavam. O libretto é francês, mas tenho quase a certeza de que Verdi o pensa musicalmente em italiano; e pensará, claro, fazê-lo representar mais dia menos dia em italiano e em Itália. Em fins de Junho entregará o original e logo depois partirá para Paris para começar os ensaios.
            - Sabe que voltei a escrever ao Escudier… a pedir-lhe que transmitisse ao Senhor Perrin a minha vontade de continuar em Itália para além do tempo combinado. Se eu for imediatamente para Paris, duvido que me seja possível acabar a ópera. Falo sério. Não sou capaz de trabalhar em Paris.

                               

            Só sabe compor quando esta na sua casa de Sant’Agata. È fatto cosi. Em Sant’Agata trabalha muito, os temas vão-lhe ocorrendo,  as situações dramáticas vão ganhando consistência musical. Está concentrado. Mas nem por isso o D. Carlos progride rapidamente.
            A 18 de Junho o exército italiano entra em combate, e a 24 sofre a famosa derrota na batalha de Custozza, um acontecimento que marca a História contemporânea de Itália e que serve de fundo ao famoso filme de Luchino Visconti Senso.


                                    

            Mas Verdi também não quer ficar em Sant’Agata. Génova? É uma hipótese. Ele gosta da cidade.
            - Entre tantas batalhas, tanto fogo e tanta agitação, esta ópera, ou vai sair melhor do que as outras, ou será uma coisa intragável… 
            A mulher, a Strepponi, desabafa com as amigas:
            - Ai, amigas, não me falem em Sant’Agata. Se ao menos eu arranjasse por lá uma família com quem pudesse trocar meia dúzia de palavras… oh, mas o meu Verdi tem aquele carácter de ferro… gosta do campo mesmo no inverno… aquelas planuras geladas, aquelas árvores nuas como esqueletos. Ele sabe criar prazeres, ocupações, cada estação do ano tem o seu interesse para ele…


            Eu faço ideia. Ela, Giuseppina Strepponi, uma citadina, uma cantora lírica habituada ao cosmopolitismo milanês, ali metida. Indo para Génova seria um alívio para ela, ali mesmo defronte do mar, a poder decorar a casinha ao seu gosto. Ah, os boatos que corriam…
            - A Áustria cede Veneza ao imperador dos franceses. É o que leio nos jornais. Estás a ouvir, Giuseppina? Se eu mandar dizer isto ao Escudier ele bem pode fazer uma ideia do meu estado de espírito. Como é possível? O Escudier é sensível a estas questões da pátria e da honra. Ele que se ponha no meu lugar.
            A questão de moral de Verdi era de uma simplicidade atroz: tinha um contrato de trabalho para respeitar na capital de um império que daí a dias poderia vir a aceitar a oferta feita por outro império de um pedaço de território da sua pátria. Da sua amada Itália! E sem que os italianos tivessem metido para aí prego ou estopa.
            - E agora diz-me lá Giuseppina… que fará o imperador francês com o Veneto? Devolve-o a nós? Fica com ele? Que ganham os austríacos com isso? E entretanto, Paris acende as luminárias! E o Escudier vai ter de dizer ao Senhor Perrin que eu não estou capaz de escrever uma nota…
           Franz Joseph, imperador dos austríacos e Napoleão III, pela França, negoceiam a paz.

                                                          

            Giuseppina Streponni escreve cartas:
            O meu Verdi anda de um humor muito negro. Mas também nenhum italiano que se preze pode andar bem disposto, e ainda menos os que se vêem obrigados a ir à capital dos fanfarrões. E da maneira como anda o meu Verdi não me surpreenderia nada que mandasse tudo para o diabo, o contrato, o Perrin, a Opera, a Paris e tudo o mais. E se fosse meter outra vez em Sant’Agata.
            E Verdi pede directamente a Monsieur Perrin a desvinculação do contrato com a Opera. Monsieur Perrin recusa.  O contrato para montar o D. Carlos é para ser cumprido.


                                                            

            O exército italiano averba nova derrota. Em Lisse. A 20 de Junho. A neura de Verdi adensa-se. O humor de Verdi é cada vez mais fúnebre.
            - Fiz os possíveis e os impossíveis para anular o contrato com a Opera. Não consegui. Agora imaginem-me lá vocês um italiano como eu, que tanto ama a sua terra, a trabalhar como um doido em Paris.


                                                           

            De facto, vai a Paris num pé e vem noutro. O tempo à justa para passar as partes dos solistas. Mas ainda não acabou o trabalho de composição da ópera. Ver-se-ia se nos Pirinéus, num lugar de nascentes de água fresca, num apartamento de hotel, se conseguia terminar a partitura.
            Consegue. D. Carlos fica pronto.
        Aos primeiros dias de Setembro Verdi está em Paris. Ensaios de conjunto. A Opera (la grande bottega) é uma máquina imponente e pêrra. Nada funciona bem e depressa. Passa-se o Setembro e passa-se o Outubro. A paz com a Áustria é assinada em Viena. A Itália sente-se humilhada. Em Paris, as cosias com o D. Carlos não há meio de andarem. Entrava Dezembro. Quando estreará o D. Carlos? Não se arrisca uma previsão.

                                  

Em Itália rebentam os tumultos. Teatros fechados. Verdi sabe disso e sente-se mal por estar em Paris, no bem-bom, trabalhando que nem um condenado, sim, mas moralmente desfeito. Ensaios e mais ensaios. E o D. Carlos sem atar nem desatar. Suspensões. Adiamentos. Incompetências. Doenças deste  e daquele, verdadeiras e falsas. Más vontades, ui!
Dona Strepponi já deve ter feito algumas amigas em Paris. Deve estar a dirigir-se a elas quando a ouço daqui dizer:
- Pois se for da vontade de Deus… e das tartarugas da Opera… o D. Carlo… ou o Don Carlôs, se as minhas amiguinhas quiserem… subirá à cena lá para os fins de Janeiro. Mas digo-vos que é um castigo para todos os pecados cometidos por um compositor ter que montar uma ópera neste vosso teatro de tramóias e maquinismos feitos de mármore e de chumbo… oh, amigas, o que eu quero é ir depressa para Génova, tratar da mobília do nosso apartamento, da decoração e tudo o mais. Já não posso é ouvir mais discussões sobre se o Faure pode fazer assim, ou se a Sass pode fazer assado. Dio Santo, che noia
1867 – outro ano maldito para Verdi. Outro annus horribilis. Para lá dos acontecimentos políticos e militares, para lá dos aborrecimentos com os ensaios na Opera, a 14 desse mês de Janeiro morre o velho Carlo Giuseppe, o pai, 82 anos. Um pouco mais tarde, o querido amigo e libretista Piave ficará paralítico. Está à conversa, ao serão, com a mulher:
- Foi um ano tão maldito como o de 1840. Não achas? Desgraças e mortes. Não vejo o dia de deixar este grande país…
- O maior país do mundo…
- Está bem, não contesto isso. Mas o que quero é chegar a casa…
- Tem calma. A estreia afinal está para quando?
- Fins de Fevereiro…
- Oh, filho… só de pensar que no dia a seguir à estreia todos os nossos baús estarão fechados e prontos a seguir viagem…
- Pois é. O pior é se em fins de Fevereiro o D. Carlos ainda não está em condições de ir a cena…
- Tens um pressentimento?
- Não sei…
E  não estava.
Sai Fevereiro, entra Março. Dia 9: ensaio geral. Dia 11: estreia.


                                                



Grande solenidade. Presente o tout Paris, imperador, imperatriz, ministros, embaixadores, gente da política, das artes, das letras e das ciências. Cantam a Sass, o Faure, o Obin, o Morére e o David. Heinl, o chefe de orquestra, não tem temperamento para aquelas vidas verdianas. Slancio, é o que é. É o que ele não tem. É alemão. A orquestra também não é grande espingarda, nem se recomenda pela precisão. A execução em geral é frouxa. A banda interna é dirigida às três pancadas (e consideravelmente desafinada) por Adolphe de Sax – o inventor do saxofone…
Tantos meses de esforço, tensões, irritações, que vão desaguar num morigerado sucesso, um sucesso de circunstância. Inspiração grande do autor, sim, sem dúvida, e grande nobreza de escrita, e no entanto muito pouco calor.
Qual é o real valor deste D. Carlos se apreciado no dia seguinte ao da estreia? Pois está  instaurada a polémica. As discussões, públicas e privadas, sobem de tom. Critica-se a direcção da Opera, o primeiro teatro lírico de França, e por uma razão magnificamente medíocre: já que se tinha de encomendar um trabalho inédito para a grande Exposição Universal (a inaugurar daí a dias), porquê escolher um estrangeiro?
- Que me dizes?
- Pouco me importam as opiniões, sabe-lo bem. O trabalho está feito. O contrato está cumprido. Não teve o sucesso que eu próprio esperava, mas não tenho tempo para pensar nisso. 
– O que vale é que vamos já amanhã à noite para Génova…
- Ora é isso mesmo o que mais importa…
Cerca de dez anos antes. Saint Saëns, um decidido anti-verdiano, já tinha escrito um artigo acerca das Vésperas Sicilianas aconselhando Verdi a compor óperas sobre as batalhas de Pavia e Watterloo. E desta vez criticava os seus compatriotas com responsabilidades na matéria por abandonarem os jovens compositores franceses e aplaudirem um estrangeiro.
Críticas. O Moniteur: Clarétie diz de Verdi que tem 80.000 libras de renda, que o seu nome é um dos símbolos da liberdade da pátria, que foi um parlamentar respeitado, que é costume ser levado em triunfo nos teatros, abraçado por todos, aclamado por todos, louvado por todos, e pergunta-se que mais quererá ele da vida. Théophile Gautier diz que a música de D. Carlos, ainda que possa não ter agradado ao público, sem dúvida que o surpreendeu, porque a força dominadora que lhe fundamentava o génio aparecia em toda sua simplicidade, a mesma simplicidade que o havia tornado universal, mas agora alicerçada num desenvolvimento maior dos meios harmónicos e de novas formas melódicas.
Também houve quem dissesse que para o êxito muito mediano de D. Carlos pesou o facto de a imperatriz Eugénia ser uma declarada wagneriana e deveras hostil ao italianismo musical, e sendo além disso mulher muito devota e muito pouco progressista. Terá ido aos arames, a imperatriz, na cena  entre Filipe II e o Grande Inquisidor, e quando o rei brada tais toi, prêtre! E diz quem viu claramente visto que nessa altura a imperatriz virou pudicamente as costas à cena. A multidão irada invade o cárcere onde está o infante D. Carlos e a imperatriz fica fula...

                                                                                         

Bom, mas nem por isso a imperatriz deixou de convidar Verdi para o castelo de Compiégne, mostrando-lhe que era conhecedora do trabalho dele, e até das obras que nunca tinham subido à cena parisiense.
              Verdi partia para Génova mas deixava estipulados os cortes a fazer nas subsequentes representações, o 2º acto, a ária do soprano, o dueto de barítono e baixo, a cena da revolta depois da morte de Posa. Já iria a pensar no seu D. Carlos cantado em italiano.
            Verdi partia para Génova, está bem, mas antes bem tinha calcorreado os relojoeiros mais finos dos Grands Boulevards e da Étoile, porque não se esquecia da sua Peppina Strepponi. Vá, tome lá para si, sua tola, este relógio numa bracelete de ouro esmaltado com as suas iniciais gravadas, que tal…
            Chegada a Génova Dona Strepponi parte para a tarefa de mobilar e decorar o novo apartamento.


Mas Verdi vai a Sant’Agata. 


                                                                    

A revolução industrial fazia-se sentir. Chegava a idade das máquinas. Inaugurava-se o mundo moderno. E como Verdi era um músico invulgarmente curioso pelas verdades da vida, com a civilização das máquinas sente-se no seu elemento, ainda que continuando a plantar as suas árvores e a tratar dos seus jardins. O D. Carlos? Como? Não era nada com ele. Escreve a um amigo em Londres. Manda vir livros de agricultura. Anda a cismar num modo novo de irrigação artificial das suas propriedades e sabe que há em Inglaterra umas máquinas catitas para isso, umas máquinas cujas chaminés medirão os seus bons quinze metros de altura. Também precisa de uma máquina para extrair água da ribeira que passa perto, e de uma conduta subterrânea que calcula terá uns seis metros de profundidade e 25 metros de comprimento – não contando com o poço de sete metros de fundo
- Ai rapazes… todo o meu santo dia é passado lá em baixo, a estimular e a dirigir os operários. Se me disserem que o meu D. Carlo não vale realmente um pataco… ai, amigos, sinceramente… não me aquece nem me arrefece. O que não queria era que me contestassem a minha habilidade como mestre de obras. Isso é que eu vos levaria mesmo a mal…
Precisava de passar uns dias sossegados e esquecer tudo o que de desagradável se passara em Paris.
Teria Verdi chegado a folhear algum exemplar do recentemente publicado O Capital?
Não se sabe.   

           









3 comentários:

  1. similitudes..interessante esta perspectiva

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  2. Excelente, este contextualizar da criação artística e musical nas circunstâncias pessoais, históricas e políticas (morais...) do seu tempo!


    Parabéns.

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