A MORAL DE BAYREUTH – A ESTÉTICA
Terminara a II
Guerra Mundial. Para um tão singular empreendimento artístico como o Festival
de Bayreuth outra guerra estaria para começar, uma guerra democrática, vamos
lá, de sobrevivência moral, de redenção dos horrores, de recuperação de
prestígios. Impunha-se uma profunda revisão estética – para não falar da
inevitável actualização dos compromissos políticos. Impunha-se a tarefa de
revalorizar aos olhos do mundo da cultura a intemporalidade de Wagner, e por
consequência da missão do festival.
A Europa não seria
mais a mesma. E Bayreuth ainda significava uma legitimação dos pesadelos à mais
excelsa escala espiritual e cultural.
Bayreuth fora parte de uma poética
do nazismo. Reabilitar Bayreuth poderia ser também reabilitar a cultura alemã
tão negregada naqueles tempos, tão conformada aos valores do racismo militante,
do militarismo e do genocídio. E uma reabilitação da cultura alemã passaria sem
a mais pequena sombra de dúvida por uma reabilitação de Wagner – da obra, que
não do homem.
Empresa de ciclópicos contornos,
quando tantos atribuíam a Wagner, à sua música e ao poderoso pensamento que lhe
dava forma, boa quota parte da paternidade moral e cultural do nazismo
agressivo e devastadoramente anti-semita.
Bayreuth, já se vê, era um teatro
especial. Mais do que um teatro, era uma instituição e um templo do espírito
germânico, e com uma estética específica e bem evocadora dos fastos
hitlerianos. E tudo isso num mundo comunicacional, cultural e artístico em que
os judeus nunca tinham deixado de pontificar moralmente, e agora com posição
reforçada. Bayreuth era uma catedral onde, se não era permitido mudar de
religião, haveria ao menos que tentar o (como agora se diz) branqueamento dessa
religião reformando-lhe as liturgias.
Recuperar Wagner para a memória do
mundo era recuperar a validade da sua música para os valores do pós-guerra, do
parlamentarismo, da democracia representativa, do Plano Marshall, do mercado
livre. Era, enfim, e por meio de uma formidável renovação estética, recuperar
na sua música um universalismo que alguns punham vigorosamente em causa, de tão
associados que estariam à tragédia do nazismo e do holocausto.
E dá-se a fundação do que se
passaria a chamar o Novo Bayreuth. E, mais difícil ainda, será na família do
próprio Wagner que germinarão as coordenadas reabilitadoras.
A partir de 1951, por acção dos
irmãos Wieland e Wolfgang Wagner, netos do mestre, irrompem no imaginário dos
melómanos menos renitentes as novas possibilidades de ouvir e ver o drama
wagneriano sem demasiados agravos de consciência. No sagrado espaço de Bayreuth
inaugura-se a alternativa redentora, o experimentalismo, a vanguarda estética
(doravante a abarrotar de Freud), despojada tanto das cangalhadas naturalistas
de Oitocentos como das comemorativas pompas nazis. Afinal, Wagner ainda poderia
ser uma hipótese numa Europa devastada, mas, enfim, democratizada.
Toca a Wieland Wagner mostrar ao
mundo novo do Ocidente a valência inesgotável da obra de seu avô, arrojando
para longe da sagrada colina as concepções passadistas em favor da estilização.
Wieland deixa Bayreuth e a cultura wagneriana no divã da psicanálise,
instaurando a luz como elemento central de uma dramaturgia sobrecarregada.
Dessacralizando o drama wagneriano dos panejamentos dogmáticos, Wieland vai
acabar por sacralizá-lo de um modo, este sim, verdadeiramente cerimonial,
litúrgico, acentuando-lhe as religiosidades virtuais pela esculturalização e
pelo hieratismo dos oficiantes, os cantores-actores.
Para
um teatro vivo e actuante não podemos conceber um estilo que não seja um estilo
contemporâneo,
disse ele, antes de pôr o seu genial avô no íntimo das consciências artísticas
europeias mais insuspeitas e menos susceptíveis de serem confundidas com a
ideologia maldita.
Por outro lado, perde pontos para a velha guarda
tradicional, encabeçada pela própria mãe, Winifred, racista e nazi até mais
não. Winifred começa a duvidar da qualidade do sangue daquele seu estranho
filho, de tal arte é a desfaçatez com que ele consuma a traição aos mais caros
princípios do genial avô.
O celebrado maestro wagneriano
Hans Knappertsbusch, em carta a Wieland Wagner, diria: a minha fidelidade a Wagner é absoluta, e maior, infinitamente maior do
que a sua, Wieland. De modo que não sei se no quadro do novo Bayreuth ainda
poderei ser útil. Em qualquer dos casos, sinto muita pena ao verificar que
Wieland Wagner abandona o caminho único que conduz a Richard Wagner.
Wieland Wagner foi a mais
importante referência inovadora na estética teatral de Bayreuth. A ele
seguir-se-ia (em minha opinião) como mais marcante das renovações estéticas a
do francês Patrice Chéreau, que em Bayreuth mostrará, já nos anos 70 (e com
Pierre Boulez na direcção musical), uma
Tetralogia que em muitos momentos semelhará um drama burguês, de personagens
ataviadas a época da Revolução Industrial, e inspirado em escritos do próprio
Wagner datados do tempo em que concebia os seus libretos, e assim repondo, da
mitologia wagneriana, uma outra forma de contemporaneidade ao sublinhar-lhe a
óbvia categorização histórica.
Mas a verdade é que Wagner estava
nesse tempo a compor uma nova música. Wagner tentava colocar sobre o tablado
uma nova visão teatral, inconfundível e futurista. Wagner ansiava ter como
público um novo Homem criado por uma
revolução. Wagner fazia construir novos instrumentos musicais. E no entanto – ou
por isso mesmo – do ponto de vista técnico-teatral, há quem diga que essa tão
aguardada estreia absoluta da Tetralogia num espaço cénico para ela
expressamente construído, foi um desastre – no mínimo uma irrelevância – quando
cenários e maquinaria não funcionaram convenientemente; quando houve sempre um
pano de boca que subiu ou desceu tarde ou cedo de mais; quando foi visto um
ajudante de maquinista a safar-se de cena no último momento com o seu martelo e
balde de pregos em punho; com luzes, guarda-roupa e adereços aflitivamente
medíocres; com cantores afinal a exibirem os convencionais vícios histriónicos
– com o primeiro Wotan, o barítono Betz, a perder ridiculamente o anel, símbolo
do seu poder e da sua fortuna.
De sublime? A música.
Wagner inventara, a vários
títulos, é certo, um novo drama lírico; ou, como ele gostava de lhe chamar, a música
do futuro. Mas a estética teatral que presidiu ao primeiro wagnerismo não foi
muito mais do que um repositório de naturalismos desvairados e de concepções
cenográficas estafadas e tributárias em excesso de um romantismo a essa hora já
bastante dessorado.
E a inovação – não sei se
pseudo-inovação – que se seguiu à morte do mestre foi tímida, tolhida pelo
conservadorismo da primeira geração dos herdeiros – os carnais e os
espirituais. É, como já disse, no festival de 1924 que o filho único,
Siegfried, se permite, e com todas as cautelas, arriscar alguma coisa parecida
com inovação. Cenários tridimensionais. Acaba-se com a luz de gás e instala-se
iluminação artificial. Porém sem outras rupturas com a mais reaccionária tradição.
Mas a contestação dos lados da
velha guarda não impediria Siegfried
Wagner de contratar, em 1927, um cenógrafo pouco convencional, de seu nome Kurt
Söhnlein. Como também não impediria a conservadoríssima Winifred de contratar,
em 1934, por entre a ganga estética do nacional-socialismo, um homem chamado
Alfred Roller, já então famoso, e que viria mais tarde a influenciar a
revolução de Wieland.
Mesmo assim, Wieland, o reformador
da estética de Bayreuth, não despreza as contribuições que ainda em anos nazis
tinham sido acrescentadas ao wagnerismo. Em especial no domínio da luz. Wieland
reiluminava a obra do avô e sujeitava-a sem complexos de culpa ao penetrante
foco que a vai repropôr à discussão nos areópagos internacionais, que lhe vai
emprestar validade para os novos tempos, permitindo-lhe nova respiração, nova
visibilidade, e impressionando até os espíritos mais progressistas.
Wieland prestava atenção aos
conceitos de Adolphe Appia quando este postulava (já em 1895) que todo o
objecto se torna plástico apenas em função da luz que sobre ele incide, por ser
a iluminação a paleta de cores de um encenador.
Fundar em Bayreuth uma nova moral.
Apagar em Bayreuth as evidências sinistras dos anos alemães mais recentes. Era
esse o escopo principal de Wieland. E em 1951, com uma nova Tetralogia e com
Parsifal, dava ele o primeiro passo para um movimento que ultrapassava a
simples inovação cenográfica. Estava na hora da desnazificação de Bayreuth.
Estava na hora do exorcismo dos demónios.
De todo o modo, Wieland, enquanto
director artístico do Festival de Bayreuth, sempre diligenciou andar
esteticamente a la page, sempre na
crista da onda de tudo quanto era vanguarda artistica apadrinhada pelas
esquerdas.
Basta considerar o Tannhäuser de 1961, quando contrata Maurice
Béjart e respectiva companhia - que deixaram em Bayreuth inolvidável memória;
ou quando contrata para o papel de Venus – suprema audácia no alto bastião
ariano – uma jovem cantora americana negra ainda pouco conhecida, Grace Bumbry.
Reabilitar Bayreuth pela esquerda,
ou pela integração racial, era o mesmo que dizer à opinião pública mundial que
Wagner não poderia de modo algum ser apropriável por uma ideologia, por mais
total, salvífica, sanguinária, anti-semita que ela fosse; que a sua mensagem
era tão universal e aglutinadora como universal era a mitologia de Eros, e que,
por isso mesmo, tão bem ficava na figuração de uma cantora negra como na de uma
branca.
E um dos mais fortes apelos que a
nova moral de Bayreuth faria à consciência asseada e progressista da nova
Europa culminaria com a contratação de Pierre Boulez, exemplo acabado, e talvez
raro na época, de músico alinhado pela esquerda pura e dura – e com quem
Wieland não pôde colaborar tanto quanto desejava, por razão da doença que em
breve o mataria, aos 49 anos.
A experiência mais óbvia de
desnazificação teatral perpetrada por Wieland Wagner foi a produção de Mestres
Cantores de 1956: uma encenação despojada dos signos que haviam incendiado as
imaginações nacionalistas dos anos hitlerianos, esquematizando a sugestão das
ruas de Nuremberg e diluindo a carga mítica do famoso sabugueiro. Valeu-lhe
remoques da crítica: preço demasiado irrisório para o quanto, em termos
familiares, estava em causa.
Wieland não esquecia que para bem
comunicar a essência e complexidades do drama wagneriano havia que levar em
atenção uma primeira coisa: o primado da música. À cenografia competia deixar
no imaginário do espectador o âmbito de expansão da absoluta forma musical; e à
encenação conviria não ser uma duplicação do que essa música, e o texto
literário que lhe subjaz, possam exprimir, e sim um complemento do entendimento
essencial.
Para Wieland, a luz, e a cor que
dessa luz pode jorrar, funcionariam como uma alegoria do inconsciente. Wieland
pretendia espectacularizar o inconsciente, tomando como fundo a
perturbação musical criada pelo augusto
avô.
Um exemplo: o Tristão – os corpos
a fundirem-se nos elementos míticos e intemporais da cena, sob uma iluminação
difusa que os faz flutuar, suspensos na noite, fora de toda a contingência
terrena. Ou política.
Penso
que reside na luz a grande magia de tudo.
E a luz desencadeia a cor. E a cor
descerra a cortina dos mais escusos territórios da alma. Wieland centra a visão
wagneriana nos imponderáveis do inconsciente dos heróis. Há bons e maus
objectos interiorizados na psique das personagens. O vermelho violento que
decorre da paixão de Isolda, em conflito com a crueza do verde que se projecta
no ciclorama, testemunho do ódio inconsciente da mesma Isolda pelo ser amado.
Há bons e maus objectos
interiorizados pela alma alemã que é preciso exorcizar. E desvenda-se o azul projectado no
proscénio, o gélido azul da noite de todas as noites de teatro, a noite desse
2º acto de Tristão que virá a explodir no Nada.
Estatismo do gesto; imobilidade
escultórica dos corpos. Pode exaltar-se uma premonição. Podem conter-se,
sufocando-os, os transportes da paixão e da inevitável insensatez, contexto,
somente, do movimento feroz de um inconsciente perturbado e relutante em
comunicar-se, traço brutal do gesto suspenso e largo que completa a imobilidade
e acrescenta memória ao sopro divino das estátuas.
Tudo
se pode interpretar á luz da psicanálise, e nos nossos dias a psicanálise ocupa
o lugar que outrora foi dos contos de fadas, das religiões.
Ou: por detrás de todo o drama estão os arquétipos. E parece-me profunda a
interpretação segundo a qual Tristão era de facto filho do rei Marke.
Ou ainda: a eterna luta entre pai e filho, o mais célebre conflito da Humanidade
depois da interpretação de Freud, julgo-a infinitamente mais trágica e mítica
do que o adultério de Tristão com a mulher do seu tio.
Wieland propunha montagens sugestivas de tudo quanto não estivesse na
música nem no libreto. Em Tristão e Isolda, Wieland avança para uma moral
complementar, se se pode dizer. Tristão leva a noiva ao rei Marke, sendo
simultaneamente do rei Marke um vassalo. E se, no 1º acto, Wieland entende
reforçar os ombros do fato do herói, fazendo-o permanecer junto do fálico
mastro do navio, sugerindo-lhe o masculino poder, a vontade de penetração
violadora, no 3º acto, esse reforço simbólico do poder é-lhe retirado do
guarda-roupa. A união física é para
Tristão e Isolda uma situação inssatisfatória, visto que os move uma aspiração
essencial de unidade absoluta entre dois seres.
Nem
Tristão nem Isolda aspiram na verdade à consumação do seu amor numa esfera
terrena. A situação humana fundamental que me fascina é esse destino que obriga
à existência entre o amor e a morte de uma relação tão directa quanto
misteriosa. Eros e Thanatos.
“Onde estamos?”, perguntará
Tristão. “Perto do fim”, responde Isolda.
Tem que se dizer que Wieland
Wagner venceu todas as suas batalhas. O mundo livre do pós-guerra despertou e
deu-se a discutir sem complexos e sem culpas um Wagner desnazificado e um
Festival de Bayreuth mais culturalizado do que politicamente salpicado de
sangue.
O universo wagneriano e a moral de
Bayreuth, com Wieland Wagner, fosse por sua convicção artística, fosse por mera
estratégia de preservação familiar – ou pelas duas coisas – veio a ser
reequacionado à luz de uma contemporaneidade democrática. E com a subida ao
poder em Bayreuth da última geração dos Wagner tem sido objecto de infindáveis
experiências vanguardistas – e até brechtianas (Heiner Müller).
Nas experiências, por exemplo de
Otto Klemperer de 1927, amaldiçoadas pela hierarquia familiar, viu Wieland
Wagner a hipótese de sobrevivência e vitalidade cultural futuras para a obra de
seu avô. Viu uma saída para a modernidade. Viu a oportunidade de uma redenção
política.
No final, a Isolda de Wieland Wagner estende os braços ao
infinito. A luz destaca-lhe a materialidade do corpo, salva-a da ameaça das
sombras do esquecimento que a circundam. Depois, a luz inunda-lhe somente o
busto. Até aos compassos finais, quando se lhe concentra no rosto,
intensamente, ferozmente.
Uma transfiguração, como propusera
o mestre. Ou o doce e definitivo reencontro de Isolda com o cadáver de Tristão.
Ou a descoberta de uma pulsão de eternidade sobre os êxtases da morte, o fôlego
humano e a vida transcendente da música de Wagner em ambíguo triunfo sobre
barbárie da História – o cheiro cadveroso das valas comuns de Treblinka, as
câmaras de gás de Auschwitz…
(À guisa de conclusão, diria que
em Portugal, a linha estética de Wieland Wagner, tanto quanto posso saber, não
teve expressão particular na casuística da programação wagneriana dos tempos do
pós-guerra. O que não quer dizer que não
possa ter mais ou menos influenciado o trabalho de um ou outro encenador de
terceira ordem dos que se encarregaram
de encenar Wagner em S. Carlos.
Tivemos em S. Carlos, isso sim, alguns interessantes
trabalhos encenográficos do filho de Wieland, Wolf-Siegfried Wagner, que nos
visitou assiduamente pelos finais dos anos 70 e princípio dos anos 80. Um
Wolf-Siegfried a meu ver algo distanciado das propostas estilísticas do pai e
mais próximo das concepções de Chéreau, historicistas, materialistas
dialécticas, talvez, se assim lhe quisermos chamar. O que pode ter sido, para o
filho do renovador da estética de Bayreuth uma bela maneira de muito
freudianamente renegar a família, matar o pai.)
Muito interessante! Parece que ainda hoje sentimos o impacto da inovação em Bayreuth - será que algum dia vamos reconhecer-lhe a genialidade? Obrigado pelo seu texto :)
ResponderEliminar