BERLIM, OU O HOMEM DAS
ESQUINAS OBLÍQUAS
Não, também nunca fui a Berlim. E nem posso dizer que não
gostasse de lá ir. O que tenho é as minhas exigências como turista.
Adrian Leverkhün, personagem que os mais lembrados já
identificaram como o protagonista do Doutor
Fausto, de Thomas Mann, não tinha interesse nenhum em viagens feitas
com a finalidade receptiva, ver coisas para adquirir cultura. Estou mais ou
menos como ele.
Viajar para adquirir cultura? Mas se conheço tantos
viajados sem cultura nenhuma!
É por isso que acho que
tudo se deve passar ao contrário. Faz-se a viagem porque se conhecem coisas,
porque se tem informação, porque se adquiriu previamente a cultura implicada
nessa viagem. Cultura é justamente tudo aquilo que se deve levar para uma
viagem. Caso contrário, acontece o que aconteceu a algumas daquelas pessoas que
começaram a viajar logo a seguir ao 25 de Abril, com ordenados da função
pública aumentados (oh, que tempos!) e quando a economia portuguesa parecia ser
verdade: Roma, Nápoles, Florença e Veneza em cinco dias. Ao sexto dia, o mediano
funcionário público de estatuto adquirido, com garantia de pleno emprego vitalício
e ordenado aumentado, oh, sim, era uma pessoa viajada.
Então e que tal Veneza? “Ui! Uma
porcaria velha e mal cheirosa. Detestei.”
Ou como o casal de portugueses que numa primavera há muito passada
encontrei à porta de um hotel em Génova a deplorar uma Itália que não se
renovava urbanisticamente com a necessária rapidez, uma Itália que insistia em
se manter histórica e em manter de pé uma data de velhos palácios, “são
bonitos, está bem, é como o outro, mas já fizeram a sua época, já não têm
serventia para nada”. E Veneza? “Com Veneza nada há a fazer. Em vez de entrarem
na modernidade, secarem aqueles canais e fazerem prédios modernos e ruas
decentes por onde possam passar carros, não senhor. Veneza, meu amigo, é um
caso perdido, nada daquilo já se pode renovar.”
Eis um português mediano viajado. Cultíssimo! Não sei se
era funcionário público. Cheirou-me a engenheiro.
Tudo isto para dizer que, bem vistas culturalmente as
coisas, Berlim é cidade que não me desperta gulas de maior, não obstante lá se
terem passado importantes, belas e desgraçadas coisas. Berlim não está nada
parecida com o que culturalmente já foi. Está boa para ser visitada pelo casal
português de que falei.


“Mas vá lá, seu parvalhão convencido, leve lá então a sua
cultura para Berlim”. Está bem, mas se eu levar a minha cultura berlinense para
Berlim o mais certo é não gozar muito com a viagem, visto que, como digo, a
Berlim da minha cultura já não existe. Porque a Berlim da minha cultura, ou a
cultura da minha Berlim, me obriga às visões impossíveis de uma Berlim de
entre-guerras que já não há.
O que é que eu quero dizer com isto? Quero dizer a Berlim
expressionista. Já não há Alemanha expressionista. Mas se em vez de Berlim
estivesse em causa Munique, poderia contentar-me com uma Munique romântica –
que por acaso também já não deve haver, é claro. “Bom, daqui a nada este
está-nos a dizer que a Alemanha já não existe só porque não existe na
fantasia-retro-pseudo-cultural que é a dele”. Pois, meu amigo, é essa a
vantagem de quem não viaja. Deter o tempo de uma cidade em ideais
fantasias-retro. Culturais. Ou pseudo.
A Berlim da minha fantasia é uma Berlim de espectros
alongados. Uma cidade onde, por uma ninharia qualquer, um homem pode perder a
sua sombra ou deixar de se ver reflectido num espelho. Uma certa Berlim mística
e mágica, cenário de combate entre forças obscuras no íntimo de homens
aterrorizados que aparecem e desaparecem por esquinas oblíquas, que beberricam
em cabarets de fantasmas; uma Berlim
arquejante de sobreviventes e desempregados da vida; a excessiva Berlim dos
vencidos e humilhados de uma Primeira Guerra; a Berlim de onde brotou uma
estética.
Na noite de S.
Silvestre o diabo reserva-me sempre uma surpresa especial. Ele sabe bem como
fincar o seu fino espeto no meu peito e com espantosa ironia regalar a vista
com o sangue que esguicha do meu coração. E todavia, isto foi escrito por
um alemão que viveu muitos anos antes dessa Primeira Guerra. E.T.A. Hoffmann.
Claro, o expressionismo é o diabo. E o diabo, depois de o
ter feito abundantemente na Idade Média, frequentou assiduamente Berlim pelos
decénios de 10 e 20. Até se transformar em estética e comunicação.
O diabo é o
autor das linhas interrompidas e das formas distorcidas das cenas onde uma
suposta realidade supostamente se desencadeia. Foi mesmo o demónio
expressionista quem regulou a luz baça e os densos fumos dos famosos cabarets berlinenses. Foi o diabo que
sempre perpetrou as dolorosas derrotas alemãs. Foi o diabo que marcou o
compasso das tragédias pessoais dos habitantes da cidade. Foi o diabo que
regulou o tráfico em Alexanderplatz ou na Wilhelmstrasse. Era o diabo o
enigmático recepcionista que registava viajantes furtivos e culpados nos lobbies dos grandes hotéis dos anos 20.
O diabo conduziu os pensamentos abstractos e doentios dos berlinenses do meu
sonho cultural. E o diabo hoffmaniano fez mais: esteve presente e chegou a
governar Berlim por treze infindáveis anos, a começar em 33 e rematando o seu
trabalho em 45.
O berlinense actual, alimentado pela cultura do mercado e
babado com a pós-pós-modernidade da arquitectura, vê os factos e as coisas com
muito mais pretensa lucidez, tenho a certeza, do que o berlinense
expressionista da minha cultura. Mas esse berlinense expressionista ia mais
longe: não via o real tal como era; tinha visões. Para o berlinense
expressionista os factos e as coisas nada eram em si mesmos, porque guardavam
uma essência oculta que só ele, homem expressionista, podia esmiuçar e manter
eternamente secreta. O berlinense expressionista não se contentava com a
realidade porque via na evidência do visível uma realidade falsa. O homem
berlinense julgava ver das pessoas e dos objectos, para além da forma imediata e
perecível, a sua significação eterna: uma expressão e uma latência mágicas,
sangrentas. E por isso se desligava da sociedade, da moral e da mesquinhez da
lógica e dos remorsos burgueses. E por isso se abandonava, deleitado e
deprimido, aos seus impulsos e assim vivia o êxtase maligno do espírito. O
berlinense expressionista chamava-se a si mesmo um adolescente apocalíptico e
opunha-se aos velhos, aos expoentes do conformismo. Hölderlin reconhecia o
tormento, a dilaceração de alma, o paroxismo dos seus compatriotas, os eternos
bárbaros, como lhes chamou.

A Noite de Cristal
é um alto e desgraçado momento de vida do homem expressionista. Outra noite, a
dos Facas Longas, dá no momento
próprio a cutilada final nas costas do realismo que ainda pudesse subsistir na
alma do berlinense, do homem expressionista.
Depois, o incêndio do
Reichstag. Depois, a ascensão de Hitler, de Himmler, de Goebbels. Os pesadelos
raciais. As celebrações guerreiras entre as sombras maléficas projectadas pela
luz dos archotes de Nuremberg. A iniciática das SS. A guerra. Estalinegrado.
Por fim, a queda. O bunker.
O espírito e a estética que a cidade inventara desciam
sobre os últimos dias de Hitler quando, no bunker
dessa Berlim, convocava pateticamente os astrólogos que ainda sobrevivessem
entre as chamas e a ruína; quando assassinava o seu cão favorito; quando
grotescamente casava com Eva Braun; quando ia ao armário dos venenos privados
que tinha no gabinete e ingeria a pastilha de cianeto em gesto coordenado com o
disparar da pistola para a própria boca; quando representava enfim o seu papel
na peça expressionista que ajudara a conceber. E isso feito alguns poucos
metros abaixo da Berlim fantasmática de fogo e escombros, quando não havia já
pedra sobre pedra: era o expressionismo vivido que se abatia sobre a cidade
real com a força do cumprimento de uma profecia. De uma estética. De uma
cultura.
Que me interessa a Berlim envidraçada, brilhante,
financeira, arquitectónica, festivalesca e hiper-racional de hoje, desprovida
de tragédia e de cenografias, uma cidade que o diabo já não frequenta e onde as
coisas parecem exactamente aquilo que são?
Como poderia eu levar para Berlim a cultura que tenho de
Berlim?

Para levar para Berlim a cultura que possui de Berlim deveria, para começar, não ir de avião, mas sim de comboio. Passando por Jena, Leipzig e Magdeburgo, através da mítica floresta de duendes da grande Planície Norte europeia.
ResponderEliminarDeveria ficar num apartamento habitacional, familiar ou comunitário, ou então hospedar-se numa Pensão modesta, talvez no Bairro de Kreuzberg, junto à Ponte da Porta da Silésia (reservada em exclusivo aos moradores de Berlim-Oeste com autorização especial de visita a familiares do outro lado do Muro, durante os tempos da R. D. A.) e, de preferência, deveria ir no Outono.
Deveria evitar ostensivamente toda a zona central da "nova arquitectura" pós-moderna, tecnocrática e falante do Esperanto artístico e cultural, bem como toda a zona "cosmopolita" do Turismo de luxo (e do lixo) e das super-defendidas Embaixadas ocidentais mais poderosas (lá se ia a Porta do Brandeburgo e o troço inicial da Avenida Sob as Tílias, mas paciência), e fugir do mostruário obsceno de ostentação da longa Kurfürstendamm (Ku'damm), os "Campos Elíseos" de Berlim, assim como dos centros comerciais e das passeatas turísticas organizadas.
E começar por ir a Potsdam e depois ao Wannsee, antes de mergulhar específicamente em Berlim.
Aí, evitar as enchentes, escolhendo os dias da semana em que os Museus não são gratuitos ou mais baratos, e percorrer as zonas mais populares ao final da tarde e princípio da noite, nas velhas esplanadas e cervejarias de Bairro, olhando bem os idosos - grande parte do atual fascínio de Berlim reside no magnético, mas quase insuportável, olhar dos mais idosos, em especial no das mulheres (já que homens idosos quase não há...).
Subir à Torre das Telecominicações (Alex), na Alexanderplatz, ponto de visita obrigatório dos antigos turistas de Leste à R. D. A., dará uma boa perspectiva da traça urbana central, reerguida dos escombros ("Auferstanden aus Ruinen", tal como começava o Hino da ex-Alemanha Oriental...) após 45.
E procurar lojas com velhos Mapas, livros nos alfarrabistas, ir à Feira da Ladra local (Mercado das Pulgas) e perder-se nos corredores dos principais Museus, ou ficar tranquilamente a ler num relvado à beira do Rio Spree, ou num dos muitos Cafés de inspiração parisiense e huguenote, poderão ser outras maneiras de penetrar na magia única e envolvente de Berlim, que apesar da destruição física e humana por que passou continua a sentir-se, ou pressentir-se, de uma forma difícil de explicar, mas que indelévelmente marca o visitante menos superficial da Cidade.
Tenho lá amigos onde pode ficar, se conseguir fazer algumas concessões (não demasiadas) a um certo convencionalismo e provincianismo tripeiro (dela) e bávaro (dele), mas com larga vantagem para a simpatia e a generosidade.
Sabe onde me contactar...
Boa viagem!
Como eu o compreendo. Estudei em Londres nos anos 60 e em Berlim nos anos 70. A Londres voltei e não me encontrei e a Berlim também tenho receio de voltar. Concordo totalmente consigo, viajar tem muito que se lhe diga. Consumir locais e países, isso é fácil...
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