sexta-feira, 5 de abril de 2013




                           O TIO WOLF


Acho pilhas de piada: o barítono que estava contratado pelo Festival de Bayreuth do ano passado para cantar a parte do Holandês (o protagonista) no Navio Fantasma foi despedido. Porquê?
Por ser um cão como cantor? Não.
Por ser russo (Evgeny Nikitin, um dos  mais reputados wagnerianos da actualidade)? Também não.
Então porquê?
Porque lhe descobriram uma suástica tatuada no peito.
Quem o manda despir-se à frente de toda a gente?
Ou será que os cantores agora, em Bayreuth, vão à inspecção como se fosse na tropa?
 O que aquela casa foi e o que aquela casa é…
Mas já que me lembrei da inspecção para a tropa – e já que continuamos em ano de Wagner - não calha mal alinhar aqui um arrazoado sobre precisamente o que aquela casa foi. Sim, o Festival de Bayreuth, o templo sagrado do wagnerismo…
Temos que ir ao Hitler, desculpem lá os mais sensíveis…


E se Hitler considerava ter tido como mestre também Richard Wagner, e se Hitler distinguira em Wagner a maior figura de profeta da Alemanha, o grande inspirador da sua cosmovisão e o maior cantor das virtudes alemãs, é justo que se fale das relações de Hitler com Wagner, com o wagnerismo, com o santuário de Bayreuth e com a família Wagner.


Houston Stewart Chamberlain (já falei dele aqui), fanático de Wagner, era um inglês acirradamente anti semita que casou em 1908 com Eva, uma das filhas de Cosima, passando desde então a integrar o núcleo fechado de Wahnfried (a casa de família) e a marcar profundamente a ideologia familiar.
                                                                
        
    


Chamberlain fora inclusivamente autor de um dos livros que mais impressionou as mentalidades racistas do princípio do século, Os Fundamentos do Século XIX. Era ele uma das razões da afinidade de Hitler com Bayreuth e com a família do mestre, se bem que Chamberlain tivesse morrido antes de os nazis chegarem ao poder.


                                                                                                                                                 

Havia também o herdeiro, o filho primogénito – estou farto de falar nele -, Siegfried Wagner, bom tipo, um cosmopolita e um estrangeirado, personalidade diz-se que algo frouxa que gostava de líderes políticos fortes – ao ponto de ter chegado a comparar Mussolini a Napoleão. Era ele a cabeça da família e o organizador dos festivais, dirigindo a orquestra, desenhando os cenários e encenando as óperas.  Goebbels definiu-o com originalidade e pouca simpatia como uma pessoa sem espinha dorsal. Uma pessoa cobardemente artística. E feminino. Mas de bom coração. E decadente. Justamente a antítese do bom nacional-socialista. 


E mais gritante ainda quando comparado com a personalidade intensa e apaixonada da mulher, Winifred, inglesa (Winifred Williams, tornada pelo casamento Winifred Wagner), fervorosa adepta dos nazis.

  
   
     
Aliás, logo que se perceberam os tempestuosos afloramentos do nazismo na arqui-conservadora família Wagner, que  pendeu imediatamente para esse lado, recebendo em Wahnfried todas as personalidades do partido emergente na vida política alemã.


Consta nos anais que Hitler é apresentado aos grandes iniciados de Thule e outros próceres do recém criado Partido Nazi precisamente na casa dos Wagner, em Wahnfried. Permitem-lhe aceder ao quarto do mestre, tocar os objectos do mestre, cheirar as relíquias mais pessoais do mestre, prosternar-se, olhos rasos de água, ante o túmulo do mestre. E desde então, os laços estabelecidos com aquela família foram muito fortes. Hitler encontrara nos Wagner uma nova família, ou a sua verdadeira família.

Em 1933, Hitler sobe ao poder e começa o processo profundo de nazificação de Bayreuth, de nazificação de Wagner. Outros poderiam ao invés chamar-lhe a wagnerização do nazismo. Ia dar no mesmo.

“O teatro da corte de Hitler”, chamaria Thomas Mann à Bayreuth dessa época.


                                                 


Peregrinação nazi a Bayreuth em tempo de festival. Verão de 33: centenas e centenas de forasteiros com bandeiras da suástica desfilam nas ruas; tropas de assalto S.A. circulam agressivamente pelas ruas e pelos cafés; fanáticos não param de cantar o Horst Wessel Lied (o hino do partido); as lojas e livrarias retiraram dos escaparates o Mein Leben (as memórias de Wagner) e substituiram-no pelo Mein Kampf; os bustos e as gravuras vendidas deixaram de ser os de Wagner, começavam a ser os de Hitler; os quartos dos hotéis e pensões estão cheios de propaganda do partido; Adolf Hitler Strasse, era, daí em diante, o nome da avenida principal da pequena cidade.
Mais papistas que o papa, todos. Porque seria o próprio Hitler a observar em tudo aquilo um perigo para a pureza artística do festival.
Dentro do próprio teatro do festival e no fim de cada representação a assistência cantava o Horst Wessel Lied e o Deutschland Über Alles. Foi preciso fazer uma recomendação em nome do Führer para que tal não voltasse a acontecer.

  



O catálogo do Festival de Bayreuth de 1933 não foi uma publicação de exegese wagneriana. Foi uma comemoração de Hitler – era aliás o retrato de Hitler que figurava no frontespício, em lugar do de Wagner. E na parte literária dizia-se que viria a ser Hitler “o criador de uma nova Alemanha, o agente da renovação moral dos alemães”

.
Na imprensa da cidade poderia até ler-se que milhares de milhões de alemães tinham sido convertidos à música de Wagner graças a Hitler, por intermediação de Hitler e do Mein Kampf. Quem queira entender o nacional socialismo tem de conhecer Wagner - frase plausivelmente atribuída ao próprio Hitler. Wagner era uma justificação moral do nazismo, de tudo o que ele já representava e de tudo o que ele pudesse vir a representar. No plano estrictamente cultural e artístico foram tempos de quase desastre para Wagner, para a obra de Wagner e para o próprio festival. Inclusivé os arquivos de Wagner, pelo que leio, foram manipulados, ou mesmo saqueados, no sentido mais conveniente para o regime e para a ideologia dominante.

Mas, em Bayreuth e em Wahnfried, Hitler sentia-se mais em sua casa do que em qualquer outro lugar. Entre 1933 e 1939, Hitler passa boa parte do seu verão em Bayreuth, hóspede de Winifred Wagner, assistindo aos espectáculos no antigo camarote reservado ao rei Ludwig.

Hitler era extremamente simpático, amável e terno para com aquela família. Adorava as crianças, Wieland e Wolfgang, nomeadamente, os filhos de Winifred e Siegfried. O próprio Wieland Wagner chegaria mais tarde a dizer que Hitler, o tio Wolf, poderia ter sido seu pai, assim como o seu verdadeiro pai poderia ter sido seu tio. Aquela família e aquelas crianças eram das pouquíssimas pessoas no mundo autorizadas a tratar Hitler pelo diminutivo, Wolf. O tio Wolf. Uma família, a dos Wagner, um clã, que Karl Marx achava tão bizarro como os próprios Nibelungos e merecedores por igual de uma saga de quatro óperas.


Winifred Wagner nutria, evidentemente,  grande admiração por Hitler. Eu julgo as pessoas pela forma como me trataram quando eu estava em dificuldades, diria ela. E Winifred era uma das quatro mulheres que Hitler mais admirava.


Segundo as memórias de um dos últimos ministros do Reich, o arquitecto Albert Speer – um dos condenados de Nuremberga – Hitler sentia-se lindamente em Wahnfried talvez por ser esse o único lugar onde estava a salvo das compulsões do poder e da sua representação. Em Wahnfried podia deixar-se ser um pequeno burguês divertido, paternal com os miúdos, muito prestável e obsequioso com a família, em particular com Winifred.  

Segundo Speer, Hitler, apadrinhando o festival e gozando da intimidade dos Wagner, estaria a realizar um sonho de juventude, um sonho que nunca, na juventude, lhe poderia ter passado pela cabeça realizar – ou o sonho que, na juventude, talvez nem sequer lhe fosse permitido ter, digo eu.
Mas as coisas entre Wagner (nomeadamente a música de Wagner) e o partido nazi e seus chefes, não eram tão idílicas assim. Há quem diga que a maior parte dos chefes e funcionários nazis eram socialmente uns carroceiros incultos. De qualquer modo, não seriam especialmente melómanos, e muito menos apóstolos da complexidade sacral da música de Richard Wagner. Hitler, talvez se possa dizer, era o único furioso wagneromano do círculo nazi.


                                                                                                              

Ainda assim, para Goebbels, Wagner era, antes de tudo o mais, um maravilhoso instrumento cultural de propaganda. Para outros, menos culturalmente sofisticados, resumia-se à obrigação social que era preciso aguentar.
O pior - ou o melhor – é que, como qualquer fundamentalista, Hitler entendia que todos tinham a obrigação de gostar daquilo de que ele próprio gostava. E então, por ocasião daquelas célebres marchas-comício de Nuremberga, Hitler ordenava que das festividades pagãs fizesse parte uma ópera de Wagner. Os Mestres Cantores, já se deixa ver. E lá tinha que vir a orquestra e a companhia da ópera de Berlim, lá tinham que vir os maiores cantores wagnerianos. Lá tinha que vir Furtwängler e todas essas coisas…
Pérolas a porcos, foi mais ou menos o que escreveu Speer. Todo o pessoal do partido, homens que puxavam da pistola logo que ouviam falar de cultura, depois de um dia inteiro de festanças, comícios, discursos, manifestações, salsichas e cervejolas, lá teriam de ir, à noite, a toque de caixa, ouvir Wagner, Mestres Cantores, cinco horas de música. Havia patrulhas específicas na cidade a controlar quem estava e quem não estava, e onde, na hora de Wagner, e a compelir os refractários…

Na imprensa de Bayreuth era um forrobodó. Finalmente, a Alemanha tem um chanceler que ama Wagner, compreende a cultura alemã e nem tem medo de mexer na questão judaica, escrevia-se. Era o sétimo céu. Bayreuth passaria a ser o centro de cultura de uma Alemanha finalmente regenerada.

Havia no partido os de vistas curtas, que consideravam Parsifal ideologicamente inaceitável, e havia até, mais surpreendente ainda, o cultíssimo Alfred Rosenberg, o filósofo do hitlerismo, a considerar o ciclo do Anel do Nibelungo pouco heróico e fracamente germânico.                                                                            A secretária de Winifred chegaria ingenuamente a escrever que o poder das trevas estava instalado no partido e consubstanciava-se na aversão de muitos à música do mestre.


Mas a fidelíssima protecção de Hitler garantia a sobrevivência de Bayreuth e do culto wagneriano. E mais: a gestão do festival estava posta fora do controlo esmagador do partido nazi, fora das garras de Goebbels: Goebbels, o todo poderoso ministro dos assuntos culturais nada podia sobre Bayreuth. Winifred conseguiu mesmo convencer Hitler a admitir cantores judeus nos elencos, os baixos Alexander Kipnis e Emanuel List, designadamente, mais o famoso Heldenbaríton Friedrich Schorr.
Política avisada e a favorecer de facto a sobrevivência do festival. Não era avisado esquecer que uma grandíssima parte do público germânico da ópera e do concerto era de ascendência judaica, e um anti-semitismo muito militante em Bayreuth iria repelir muito público e comprometer o festival – um paradoxo moral bem interessante, por acaso …               
                                                                                  
                                                                                     

Bayreuth era um reino espiritual, era uma dinastia. Morto o primogénito, Siegfried Wagner, em 1930, é Winifred quem assume o comando das operações. Winifred que, aliás, recorre a Hitler nalguns apertos, nos momentos financeiros mais críticos do festival, à medida que o regime se ia fortalecendo, que a qualidade de vida ia piorando e que as núvens ameaçadoras de guerra  se faziam sentir.
Hitler ordenava ao partido que adquirisse bilhetes e ao governo que prodigalizasse subsídios a novas produções. Hitler, enfim, também se tinha como mecenas estatal. Nada menos do que um continuador da acção do rei Ludwig.
Goebbels é que considerava intolerável a independência político-económica de Bayreuth. Winifred Wagner e as suas relações excepcionais com o Führer faziam-lhe inveja. Afinal de contas, para ele, o festival de Bayreuth era um pequeno negócio privado, uma intriga de família, um culto de seita que só tinha a ganhar se fosse arrancado às mãos dos Wagner. E ainda por cima tendo uma mulher à testa dos assuntos! E Goebbels não deixava de encher os ouvidos do seu Führer: Bayreuth, além do mais, era um cóio de homossexualidade que andava a precisar de uma limpeza, mas de uma senhora limpeza…

                           

Dou uma ideia da generosidade de Hitler para com o festival de Bayreuth a cada nova produção de uma das sete eternas óperas do cardápio wagneriano. Números. O exército dos Gibichungs, do Crepúsculo, que no tempo de Wagner levava um pelotão de 26 coristas, nos anos 30 não se fazia por menos de uma companhia de 101 homens. Elsa e Lohengrin, entre coristas e comparsas, estavam rodeados em cena por 300 almas, descontando os 70 pagens empunhando festivos archotes. 24 flores tentavam Parsifal nos dias da estreia absoluta, ainda Wagner era vivo, passando as tentadoras do herói a 48 em tempos hitlerianos. Em 1938, no final dos Mestres Cantores, chegaram a estar em cena 800 figuras.


Até que se chegou à conclusão de que era demais, tocava as raias do mau gosto, era demasiado parecido com uma cena de Cecil B. de Mille.
                                                            
           

Era o estilo nazi da estética wagneriana. Era uma fase, uma idade. Que aliás parecia aos velhos wagnerianos por demais inovadora em termos de cenografia e guarda-roupa, um atentado à memória do adorado mestre. Por outro lado, os wagnerianos nazis não descansariam enquanto não vissem centenas de flâmulas com a suástica agitadas no final dos Mestres Cantores;  ou do Parsifal, a estender o braço diante das cintilações do Graal. Mas, ao contrário de outras casas de ópera da Alemanha de então, Bayreuth nunca chegou a exibir no edifício as bandeiras e os símbolos nazis.
A cada nova produção a planificar, Winifred alargava-se em conversas telefónicas com o Führer sobre pormenores de cenografia, maestros e cantores a contratar. E, regra geral, vinham de Hitler as melhores sugestões quanto a elencos e movimentações cénicas. Mas depois veio a guerra.

Já em 14-18, Europa em guerra,  fora impossível manter o teatro do festival aberto. E em 39, Winifred preparava-se para fechar a loja. E tê-lo-ia feito se Hitler não interviesse energicamente. O festival teria de continuar.
Sim, meu Führer, pode ter-lhe dito Winifred, mas com que orquestra, com que coro, com que solistas, com que pessoal de cena, se está tudo envolvido no esforço de guerra e vai tudo dar com os costados na tropa não tarda nada? Não senhora, terá respondido Hitler, nenhum do seu pessoal vai para a tropa coisíssima nenhuma! Winifred que lhe mandasse imediatamente a lista do pessoal que era preciso. Todos ficariam livres do serviço militar por ordem expressa e pessoal do tio Wolf.

                                                           

                                                             

Mais tarde, muito mais tarde, em entrevista concedida ao realizador cinematográfico Hans Jürgen Syberberg, Winifred Wagner diria que, como toda a gente, Hitler tinha um lado obscuro e um lado luminoso, e que ela apenas tinha conhecido dele o lado melhor, o lado luminoso. Terá sido das poucas pessoas que conheceu verdadeiramente o tio Wolf, e, apesar das contingências da vida e da História, nunca quis deixar de ser fiel a essa memória.
E estaria tudo muito bem assim e com muita moralidade. O que não era preciso era Winifred, já com 70 anos, em 1968, ostensivamente convidar para o camarote da família Wagner, em Bayreuth, as amigas Edda e Ilse, que eram nem mais nem menos do que, respectivamente, a filha de Göring e a mulher de Hess, para além de, nessa mesma ocasião, ter igualmente convidado uma sobrinha de Himmler e o então chefe do partido neo-nazi.

Nas vésperas da temporada de 1940, Hitler decide: os festivais de Bayreuth, a partir desse dia seriam considerados festivais de guerra; o festival será aberto, e, mais, terá como assistência um certo número de pessoas a ser consideradas “convidados do Führer”.
Quem eram esses convidados especiais? Soldados e operários das fábricas de armamento. Podiam ir a Bayreuth organizadamente, e com todas as despesas a correr por conta do Estado.
                               

E além disso, em tempo de guerra, a organização e administração do festival de Bayreuth passariam directamente para as mãos do Führer.
Os soldados alemães, por essa época, ainda corriam os campos de batalha da Europa de vitória em vitória, exterminando os que a imprensa alemã chamavam de “judaico-bolchevistas inimigos do mundo”. Com as armas, os canhões e os tanques, a cultura alemã era para ser expandida triunfalmente por toda a Europa.

                                             

Uma palavra de ordem aos soldados do Reich: matem… matem por Wagner e pela Pátria.


A falange numerosa dos convidados do Führer aos festivais de Bayreuth constituíam um contingente de wagnerianos compulsivos. Eram obrigados a ir à ópera quando, nuns poucos dias de folga, teriam preferido estar com a família. Mas tinham que ir  a Bayreuth e tinham que gramar a pastilha de quase cinco horas de Valquíria ou de Mestres Cantores. Eram transportados no chamado Comboio da Música do Reich. Chegavam por volta das seis, eram aquartelados nas redondezas e iam em formatura até uns enormes hangares onde lhes davam de jantar e lhes forneciam um cartão que dava direito a cerveja extra, cigarros e uma noite de ópera. No teatro entregavam-lhes brochuras acerca de Wagner e da sua música. Na manhã seguinte eram metidos no comboio e regressavam às suas unidades. Às seis dessa tarde chegavam outros.


Hitler visita Bayreuth e tem o seu último encontro com Winifred Wagner poucos dias depois do violento atentado à bomba que o maltratou, em Julho de 44. Winifred diria, após as despedidas, que tinha sentido o roçar das asas da deusa da vitória. E no entanto, tudo se estava a desfazer em cinzas na Alemanha

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Já em 45, depois de Estalinegrado e da catástrofe já desencadeada, o tio Wolf telefonou a Winifred, preocupado com os planos para o festival desse verão de 45 – não sei se o tio Wolf já tinha posto na ideia suicidar-se antes que esse verão de 45 fosse chegado.


Valho-me uma vez mais do testemunho do arquitecto Albert Speer, ex-ministro de Hitler, para dizer, um: que o primeiro edifício oficial que o Führer exigiu visitar quando da sua viagem de Estado a Paris foi a Opera; e dois: que o primeiro dos ideais de vida do tio Wolf teria sido o ser cenógrafo, encenador ou director geral de um teatro de ópera. Uma pena não o ter sido. De resto, não foi só em Bayreuth que Hitler se meteu nos negócios da lírica. Em Berlim, mais perto de casa, na ópera estadual, gastava horas intermináveis a discutir encenações e luminotecní
as com o seu cenógrafo preferido, Benno Arendt.

Poucas semanas antes do fim, já Hitler estava com um pé no bunker subterrâneo da Berlim destroçada, onde se suicidaria, e Wieland Wagner, um dos netos do mestre, procura-o, em desespero. A destruição era total por todo o país e Wieland suplicava ao bom tio Wolf certa caixa de manuscritos que um grupo de industriais lhe oferecera em 1939. Esses manuscritos eram um velho fundo do rei Ludwig, o celebérrimo protector de Wagner. Constava de partituras originais das primeiras operas, cópias originais de outras óperas, o Ouro do Reno, a Valquíria, e esboços de orquestração do Crepúsculo dos Deuses e do Navio Fantasma. Em face da situação do país, Wieland implorava ao tio Wolf a guarda dessas preciosidades para as pôr a salvo da hecatombe – provavelmente sabedor de que já muito pouco tempo de vida restaria ao tio Wolf. Mas o tio Wolf deu-lhe uma nega. Recusou entregar-lhe os manuscritos. Que descansasse. Essas relíquias estavam a salvo, em lugar seguro.


                                                                       

Claro que as preciosidades desapareceram.
Mas Bayreuth era misteriosamente poupada aos bombardeamentos aliados. Não se explicava porquê, uma vez que aqueles edifícios não figuravam na lista de edifícios protegidos dos bombardeiros aliados.
Só mesmo no fim da guerra as bombas caíram. Wahnfried foi destruída. O teatro do festival foi mais ou menos poupado.
Os aliados entraram na Alemanha. As tropas chegaram ao edifício, ao Festespielhaus, e o lugar sagrado dos iniciados wagnerianos estava aberto, abandonado. Foi ocupado por prisioneiros aliados e por refugiados de guerra. Esses ficaram lá a viver um tempo e devassaram a casa de alto a baixo -  no palco ainda estava montada a cena final de Mestres Cantores

                                               

Quando os refugiados e prisioneiros chegaram aos armazéns do guarda-roupa foi a alegria para uma gente coberta de andrajos e cheia de frio. O assalto foi em grande. Os fatos de cena foram roubados e durante bastante tempo, nas ruas de Bayreuth e por muitas milhas em redor, eram vistas grandes quantidades de desgraçados vestidos ou com uma capa de Wotan, ou com o capote de Hunding, ou com as peles de Siegfried, com o vestido de Isolda ou com o capacete de uma valquíria.


Os americanos, ocupando o teatro, começaram a organizar operetas, variedades e comédias ligeiras para alegrar as tropas. Até que o novo mayor da cidade resolveu que era conveniente dar espectáculos mais respeitáveis.
E pela única vez na sua História no teatro do Festival de Bayreuth foram montadas óperas pouco sagradas tais como a Traviata e a Madame Butterfly.












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