segunda-feira, 20 de maio de 2013



   JESUS VON NAZARETH

                Foi em Janeiro de 1849 que Wagner começou a esboçar um projecto de drama lírico, enquanto deixava cristalizar as ideias que mais tarde seriam concretizadas na saga dos Nibelungos. Naquele mês de Janeiro de 1849, depois de ter sido apresentado ao chefe anarquista Bakunin, antes de assinar artigos de retórica socialista, antes de se meter ao fabrico caseiro de granadas de mão, antes de se envolver em insurreições, antes de ser procurado pela polícia e ter escapado por uma unha negra à prisão, antes de ser obrigado a exilar-se na Suiça, a ideia que lhe ocorreu para uma ópera chamava-se Jesus Von Nazareth. Um libreto em cinco actos e, ao que dizem os exegetas, ainda dele sobreviveram alguns esquiços musicais. 

                             
           
               
         Seria mesmo uma ópera? Podia ser.       
     Mas podia ser uma oratória. Ou qualquer forma mista, ou intermédia.       

           

       A impressão que fica é de que o projecto se inscrevia no universo das preocupações de Wagner daquela época. Preocupações de ordem política, de ordem ideológica, sim, mas bastante para lá da teoria. Wagner queria acção, Wagner envolver-se-ia na acção e a figura de Jesus era nesse sentido que o motivava.


        Não exactamente Jesus, o Cristo, o Messias, o salvador das almas, a força espiritual que lhe servia de base à concepção da obra e para efeitos dramáticos. Não era a força espiritual de Jesus, era a materialização dessa força o que mais interessava Wagner. O Jesus de Nazaré de Wagner era o activista revolucionário, o homem politico, futura vítima não das autoridades de Roma, sim das classes aristocráticas da Judeia. Quando o amor se submete à força do dinheiro, o resultado é a miséria, a desgraça – pensava ele.


        Para o projecto de Jesus Von Nazareth Wagner devia alguma coisa à influência de dois jovens neo-hegelianos, de seus nomes David Friedrich Strauss e Bruno Bauer. Tinham esses recentemente dado à estampa trabalhos em que se questionava a credibilidade dos episódios narrados nos evangelhos. Mas Feuerbach teria tido também a sua influência no espírito de Wagner – a natureza profunda do amor comportaria o auto-sacrifício, o qual derivaria de uma vontade de liberdade, e no qual estaria bem patente a essência divina do Homem; e afinal, invertendo o dogma, Deus não era mais do que uma projecção da vontade humana, fantasma criado pelo Homem à sua imagem e semelhança.


        Os teóricos anarquistas (fala-se de Proudhon) teriam tido ainda uma palavra forte a dizer na concepção wagneriana da figura de Cristo. A propriedade era um roubo. A protecção da propriedade era de considerar um crime contra a própria natureza, porque sem a maléfica instituição da propriedade não ocorreriam crimes contra essa mesma propriedade. E lá dissera Jesus: “não ajunteis tesouros na terra onde os ladrões minam e roubam (cito de memória), ajuntai antes tesouros no céu, onde os ladrões não minam nem roubam”. Quem para si se apropria de valores e bens que a natureza mesma ofereceu à comunidade inteira é que é o verdadeiro ladrão. Quem é de facto o ladrão, é o que rouba ao proprietário para matar a fome, ou o que possui bens que não lhe fazem falta?

                                                      

      Mas os mais modernos dos estudiosos de Wagner podem sugerir que afinal a leitura que ele fazia da mensagem bíblica e da figura de Jesus não andaria, no fundo, e bem vistas as coisas fora do contexto político, assim tão fora do entendimento comum e do padrão consagrado. 

                                    

      Sim, talvez os evangelhos não especificassem muito bem o perigoso (ou duvidoso?) facto de os romanos terem executado Jesus pelo crime de sedição. Jesus teria a dimensão de um chefe revolucionário. Jesus seria uma ameaça para a casta dominante dos judeus, polícias do seu próprio povo, um povo que conspirava contra a ocupação romana. E assim porque entre os discípulos de Jesus se contavam alguns zelotas – seita de militantes da resistência armada ao ocupante – e que pelo menos um deles era geralmente tido como terrorista: Pedro.


        Por esse tempo, 1849, Wagner era amigo de um chefe de orquestra, August Röckel, demitido de todos os cargos que ocupava por actividades subversivas e que no ano anterior começara a editar um semanário republicano, Volksblätter, em que Wagner, sob anonimato, chegou a escrever alguns artigos contra os príncipes (o que é a vida!), contra os privilégios, contra as desigualdades. 


     Wagner e Röckel debateram bastante o projecto Jesus Von Nazareth, e o republicanismo, e o socialismo, mas a ideia de uma ópera directamente sobre a figura e a vida de Jesus abortou. E se alguma influência por assim dizer cristológica reapareceu na obra de Wagner, ainda que sob tintas e roupagens diversas, místicas, esotéricas, podemos falar de Parsifal.
        Wagner voltaria à figura de Jesus mas não por música. Só em forma literária. No ensaio Arte e Religião. Muito curioso. Atribuindo a Jesus uma exortação aos discípulos para que tornassem vegetarianos, dado que oferecera a sua carne e o seu sangue em expiação de culpas e pecados gravíssimos e originais – “tomai e comei, este é o meu corpo; tomai e bebei, este é o meu sangue”, na simbologia do pão e do vinho da ceia memorial.


       A causa primeira – diz Wagner – da decadência da Cristandade residiria na recusa dos fiéis em absterem-se de comer animais. Jesus teria sido erradamente identificado com o Pai judeu, criador dos céus e da terra, e além disso - Wagner a recair num tema que lhe era muito caro – era mais do que duvidoso que Jesus fosse um judeu. O sangue do Salvador era puro, significava o mais alto patamar de perfeição da espécie humana.

     

        O regresso à alimentação natural seria o pressuposto único para uma regeneração do género humano. Vegetarianos e amigos dos animais deveriam unir forças às sociedades de temperança e aos socialistas, em ordem a tal regeneração, e porque tal regeneração da espécie humana seria o solo onde frutificaria a verdadeira religião.


        A religião convencional não passava de um artifício, deixara-se aprisionar pelos dogmas, e só a arte poderia funcionar como meio de comunicação das verdades vegetarianas, naturistas e regeneradoras da Humanidade. E essas ideias, e a essência de uma verdadeira religião, só poderiam ser conveniente e eficazmente expressas pela simbologia e pelo mito. Quer dizer: pela Arte.   


1 comentário:

  1. Que interessante, não fazia Wagner nada assim...O ser humano é sempre uma surpresa...

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