quarta-feira, 5 de junho de 2013

   UM PENSAMENTO LOUCAMENTE POSITIVO

        Portugal é um dos dez países que mais ameaçam o resto do mundo com as suas severas atribulações orçamentais – dito pelo FMI.


        Mas vá lá, por uma vez estamos bem acompanhados, EUA, Reino Unido, Japão, França, Itália… é verdade, mas com a vida dos outros podemos nós bem…
        Sim, eu sei, isto de finanças públicas, macro-economias e sociologias não é para amadores…
             Ou é?
        Estou a ver que é. Que também é. Por aquilo que se tem lido, visto e ouvido, e pelos tantos palpites contraditórios de especialistas, começo a crer que aquelas disciplinas tão intimidantes para o homem da rua podem ser uma questão de fézada. E começo a crer que os amadores superficiais (eventualmente pessimistas) também podem ter direito a umas bocas analíticas e a uns prognósticos. É de borla e não responsabiliza ninguém – o que se enquadra perfeitamente na especialidade nacional, não responsabilizar ninguém.


        E quem foi o filósofo que disse que prognósticos só no fim do jogo? E quem disse que não estamos mesmo mesmo a chegar ao fim do jogo?
        Bem, mas ao dizer amadores quero referir-me ao tal homem da rua, ao tal cidadão especializado somente no senso comum, e a que por isso mesmo se costuma chamar de cidadão comum, e em função do qual existem finanças públicas, e em função do qual existe aquilo que de mais melindroso pode existir e que se chama política. O especialista do senso comum é o actor principal da comédia e da tragédia que pode representar-se na vida pública e em nome de quem se fazem – e em grande parte dos casos não fazem – as coisas. É ou não é? É.


        É esse velho e memorialíssimo homem da rua, rudimentar de educação e cultura, eleitor só porque sim, inefável e rancoroso pagador de impostos, que lê nos jornais o estudo da Augusto Mateus & Associados e fica sabedor de que Portugal recebeu (ou foi recebendo) em fundos comunitários, durante 25 anos, qualquer coisa como 9 (nove) milhões de euros por dia, destinados a orientar-lhe um pensamento loucamente positivo quanto à sua vida, a presente e a futura. E se lhe perguntarem por que razão ele (e os seus parentes, amigos e conhecidos) com tanta injecção de dinheiro não está hoje a viver melhor do que na verdade vive, ele não sabe responder e fica confundido, e o pensamento dele do positivo passa depressa ao negativo.
        O cidadão da rua sente-se a viver de calças na mão e fica confundido com a desorientação e os cálculos sistematicamente errados dos seus maiores, governo, parlamento, presidente da república, depois do formidável abanão civilizacional que foi a entrada plena na U.E. em 86.
        Pois foram justamente esses milhões fáceis, caídos do céu aos trambolhões e em barda, os chamados milhões da CEE, que criaram  no português desprevenido a ilusão de que, passados os míseros fadunchos do salazarismo, era chegada a hora da prosperidade, da modernidade de vida, do optimismo desmedido. E assim estava instituída a moral inescapável do pensamento positivo. Loucamente positivo.


        Ainda me lembro, pois lembro, de um 1º ministro Cavaco Silva muito ufano, a gabar-se de Portugal estar a ser visto na Europa à sua própria imagem (própria dele, sim, Cavaco) de bom aluno, o bom  aluno que ele deve ter sido. A esta hora talvez o presidente Cavaco não esteja tão ufano, nem se deva gabar da qualidade do aluno europeu chamado Portugal.
        Pois por ser bom aluno na Europa do dinheiro essa Europa premiava Portugal com as tais injecções de capital que o bom aluno, a cada vaca obesa que entrava a fronteira do Caia, insistia em cultivar um pensamento loucamente positivo e ia perdendo a cabeça em shots atrás de shots de sucesso e empreendedorismo como numa sexta feira à noite de Bairro Alto, mostrando-se mais vocacionado para desperdiçar o que não lhe custou a adquirir do que a aproveitar a mão que se lhe estendia.



        9.468 quilómetros de estradas na fase do optimismo e do pensamento loucamente positivo que se inaugurara no país do fado, do futebol e de Fátima e que fazia sonhar o cidadão comum beneficiado com tanta fartura. Sonhar? Sim, sonhar. Com  as auto-estadas dignas do Ferrari que estava em vésperas de ter (e com as casas de campo e praia que estava em vésperas de comprar; e com as garinas brasileiras boas como o milho que estava em vias de engatar). O Ferrari  ainda não o tinha. Mas tinha que o ter quanto antes, não podia deixar de o ter para poder voar naqueles 9.468 quilómetros de estradas e auto-estradas.
        Hoje, são 9.468 quilómetros de auto-estradas por onde se passa pouco, e por onde o cidadão comum não voa.  Não voa porque o que já voou foi o seu querido Ferrari vermelho, e mesmo o modesto FIAT está encostado lá na rua. Ou então não encostou nada o carro, o que não está é para pagar as exorbitâncias de portagem e passou a transitar pelas velhas, bucólicas e tradicionais estadas salazaristas – é o que se lê na imprensa – e assim promove ele alguns rombos na economia das empresas chupistas que lhe cobram as exorbitantes portagens.

                                 
      
      26.000 milhões dispendidos em cursos de formação profissional.  O homem da rua pergunta porque, com tanta guita, não formaram então gestores como devia ser, honestos e competentes, que não levassem  milhares de empresas à falência, e directores que soubessem  planear, prever, e gerir, e motivar a produtividade dos seus dirigidos (loucamente embevecidos com o pensamento positivo a que os dinheiros de Bruxelas obrigaram) com vista à máxima produtividade, à máxima competitividade.


        26.000 milhões! Então porque não se formaram mentalidades políticas que tivessem sabido governar honestamente e moderar os pensamentos loucamente positivos, por forma a que o país não chegasse à situação em que está?
        O que resultou de tão volumoso investimento em cursos de formação foi uma maior qualificação de recursos humanos para o mais impressionante nível de desemprego que alguma vez por aqui se viu – 50 empregos por hora destruídos na economia portuguesa (5 de Junho).


        Foi como se houvesse todos os dias e ao desbarato larga oferta de lugares de administrador à espera dos candidatos altamente qualificados. E deu como consequência a diabólica situação de um homem (ou mulher) comum ficar com os seus atestados de alta qualificação académica mas não conseguir com eles um emprego daqueles mais corriqueiros mas que dão para ir comendo uma bucha, e exactamente por ter qualificações a mais para o lugar e os patrões torcerem o nariz a doutores em certos lugares; enquanto outros, os cábulas, também não conseguiam emprego de jeito por terem qualificações a menos. Daqui se seguindo que, no fim das contas, o que mais convinha para obter esses empregos não seriam tanto as qualificações académicas, ou o alto potencial do candidato, seria, sim, ou um avental asseado com um esquadro e um compasso bem desenhados, ou um rutilante cartão de sócio do partido político mais empregador em cada conjuntura.


        Altos níveis de qualificação académica das novas gerações. Doutores, quer-se dizer. Doutores de matérias irrelevantes, tantas vezes, mas doutores, complacentemente avaliados e classificados pelo alto só porque convinha politicamente nivelar os aproveitamentos escolares pelos índices europeus.
        E concomitantemente à formação de quadros superiores, há apoio europeu (entre 2000 e 2006) a 12.000 empresas pequenas e/ou médias. Empresas essas, evidentemente, destinadas à falência em 2012, 2013…

                                            
  
                                                                    
        Falando de doutores, não esquecer as relvadas e loucamente positivas licenciaturas, as socráticas suspeitosas e dominicais licenciaturas. Essas e outras que a gente não sabe.

                          
        (Ah, sim, amigos e amados irmãos, existe mais aquilo que a gente não sabe do que aquilo que a gente sabe…)
E sem nunca se saber também ao certo (por não constar do correctíssimo relatório) se se fez mesmo formação de quilate académico real, ou se, pura e simplesmente (e loucamente), as universidades (as mais privadas sobretudo) se limitaram  a vender canudos e a figurar na estatística.

        Ou então 26.000 milhões de euros aplicados em cursos de formação que formaram efectivamente técnicos competentes, quem sabe se mesmo brilhantes, cujo destino era emigrar – incentivados a isso pelo próprio governo – e pôr as suas prendas ao serviço de países outros, enquanto por cá se cantava o facto-fado de não haver gente capaz para levantar o país.
        Foram milhões a facilitar. Milhões a fomentar o optimismo parolo. Milhões a desencadear facilidades de vida. Milhões em desprezo da qualidade real dos indivíduos e dos conhecimentos e a instaurar o primado da quantidade. Milhões geradores da mediocridade que é mãe do feio e do mau gosto; mau gosto que é pai da imbecilidade e tio da incivilidade, que é a madrinha da anarquia, da impunidade e da irresponsabilidade, padroeiras por sua vez da corrupção que é a raínha da descrença, da desconfiança civil e do desinteresse nacional. Isto anda tudo ligado. Pois anda.


        E estádios de futebol. Magnífico investimento. O que não se sabe é se foi um investimento no desporto nacional se foi um investimento indirecto no futebol sul-americano, visto que pouco falta para o seleccionador nacional não ter por onde escolher entre futebolistas portugueses acima da mediania e ter de naturalizar  brasileiros – qualquer dia argentinos, sérvios, eslavónios. Estádios que custaram  os olhos das caras e que continuam, alguns, a custar às respectivas câmaras os outros olhos que houver…5 milhões de prejuízo.
        Uma data de centros de saúde construídos à pala dos milhões europeus. E aqui só me vem à ideia o meu próprio caso, sei lá quantos anos à espera de ter médico de família, eu homem da rua, cidadão militante do senso comum…


        O nível de vida melhorou em Portugal em consequência da injecção dos milhões europeus?
O relatório diz que sim. E diz que esse sim é um sim óbvio.
        Que seja sim. Quem sou eu para discordar? Que o seja assim tão óbvio já me causa alguns suores frios.
        Que o nível de vida melhorou… o nível de vida de quem? De quantos? Se o nível de vida melhorou, porque chegámos à tão indigente situação em que o país está? É da conjuntura internacional. Pois seja. Mas a melhoria que vinha de tão longe, 1986, não era brincadeira, podia ter-se aguentado se fosse real. Mas talvez não fosse. Talvez o que tenha melhorado tenha sido a concessão de crédito. E o crédito é mágico, disfarça a realidade, pinta-a de cor-de-rosa: rosa flamejante, primeiro, e depois rosa-chá, e por fim, no fecho das contas, rosa-velho.
        Se a melhoria do nível de vida português foi uma ilusão demoníaca, também não deixa de ser óbvio que o nível de vida de alguns subiu, e muito, e de que maneira – BPN, BPP, parcerias, limas, loureiros, valeazevedos, isaltinos… já para não falar do nível de vida que honradamente aumentou rendimentos aos correctos belmiros, soares dos santos, espiritos santos, amorins e outros, muitos, e muitos mais do que aquelas poucas famílias do antigamente salazarista.


(Não digo nada sobre a rapaziada da ex-administração do BCP que se reformou, e porque alguns deles estão indignados com os seus choradinhos 70.000 euros mensais de reforma.)


        E os outros? E a generalidade? Ou a melhoria do nível de vida nacional foi circunstancial (quando foi); ou ela se ficou por um apelo desesperado ao pensamento positivo, loucamente positivo, em que as derrotas, por uns bambúrrios de linguagem e de contabilidade, até se pareceram com vitórias. Ou até se transformaram, pela manhã seguinte, em vitórias.



        Mas sim. Sim, o nível de vida deve ter melhorado quando sabemos das loucas noites da juventude (alegadamente desempregada) das sextas-feiras no Bairro Alto, entre shots variados, cerveja, erva, coca, ecstasy.
       
                                         
         
        (O número de casais desempregados cresceu desde o ano passado para 67%.)


          Sabemos da melhoria do nível de vida pelos grandes concertos de rock que esgotam com rapidez, apesar dos preços proibitivos; e quando é evidente que a grande afluência a esses concertos é de pessoal jovem que se queixa de não conseguir arranjar emprego, pessoal jovem que se diz estar a ser financiado pelos pais, que também começam a ver os seus empregos em perigo, ou que também já perderam o emprego e estão por sua vez a ser financiados pelos respectivos pais (avós dos jovens dos concertos de rock) que vivem das suas pensões e reformas (algumas de miséria) e onde o governo não cessa de sacar…


        O grande sucesso na aplicação dos fundos comunitários alimentou mais as estatísticas do que a realidade das coisas. Foram um investimento no quantitativo em subalternização (senão em desprezo) da qualidade das pessoas e das coisas, e sendo a estatística das quantidades o mirabolante elixir que permite ganhar eleições. Claro. E sendo o ganhar de eleições (que fornece cargos para distribuir pelos apaniguados) o escopo final e privilegiado do sistema político português, desse sistema partidário em que já ninguém acredita, do qual já (amargamente, desprezivelmente) a maioria dos homens de bem e de senso comum troça cantando-lhes a Grândola Vila Morena.


        Os milhões europeus incentivaram o pessoal à produtividade? Ah, luxo, estatuto aparente, desfile de vaidades ocas, isso sim. Trabalho? Está quieto. Trabalho e competência e rigor e estratégia e produtividade: pouco.
        Os milhões europeus foram mais um afluente que calhou à maravilha ao nosso peculiar gosto de parecermos aquilo que não somos: inteligentes, pelo menos razoavelmente letrados, finos e de boas famílias, civilizados, modernos, bonitos, bem vestidos - mas sobretudo ricos.
        O tal semi-falhanço de que falam os comentários ao relatório da Augusto Mateus &Associados, pode ser semi, como pode ser total. E citando o próprio Dr. Mateus: o roteiro prospectivo da convergência tem de começar a ser construído na melhoria da qualidade das instituições e no reforço da democracia (…) para garantir escolhas colectivas mais claras e acertadas e permitir políticas públicas mais bem fundamentadas e mais eficazes na promoção do interesse geral.
        Ora aí está, o interesse geral. E outra: depois de tantos anos de milhões a chover o roteiro prospectivo da convergência tem de começar a ser construído. Começar a ser. Passados tantos anos há coisas decisivas que em Portugal ainda nem começaram a ser. E coisas, bem entendido,que servirão ao colectivo, ao interesse geral, mais do que aos interesses particulares.
        Ao fim de tantos anos, as nossas empresas ainda não são competitivas – se é que, por este andar, e passados outros tantos anos, algum dia o cheguem a ser. No fim de contas, passados estes anos, ainda não estamos preparados para enfrentar as concorrências em tempos desapiedados de globalização. Mas quando o estaremos se a nossa produtividade por hora trabalhada ainda não passa de metade da média europeia?
        E neste soalheiro país é tudo pelo contrário em matérias do social e do económico. Depois de tantos anos, a respeito de competitividade, em vez de progredirmos, pelo contrário, estamos sempre a descer. Desde 2006. Seis lugares no ranking competitivo do Forum Económico Mundial descemos nós…

                                                                               

   

           E o que me perturba mais, a mim, desentendido de finanças postas para lá do bolso do meu casaco, de macro-economias e de sociologias, é ter ficado a saber que foi maiormente com Salazar que a nossa economia mais cresceu. Entre 1962 e 1972. 7%. E assim  com cinzentismo social, miséria, barracas, censura, polícia política, fado, futebol e Fátima, emigração, guerra colonial… e escudos para desvalorizar.
                                  
                             
                                                         
        Com Salazar é que estavamos bem? Com Salazar estavamos a nossa dimensão natural? A preto e branco. Modestinhos. Pobretanas. Tristíssimos. Atrasados. Matarruanos. Socialmente inseguros. Tementes a Deus e à PIDE. De boca calada. Perdidos em pensamentos loucamente negativos. Com medo do presente e com medo do futuro. Com medo da vida. Era assim que estavamos bem?
        Quem sabe se não era…
                     
          
                                                         
              Fado, futebol e Fátima em tempos de Salazar? Essa é boa. Se era assim que a economia crescia 7% ao ano, então, nos dias de hoje, deviamos estar de cavalinho, pois nem ao Salazar lembrava instituír a civilização do fado, do futebol e de Fátima em doses tão maciças e mediáticas como hoje em dia, que quando crescemos 1% já abrimos uma garrafa de champanhe.


        Ao cidadão da rua e do senso comum que frequenta os transportes públicos e ao qual, como digo, falham as bases teóricas para o entendimento dos aspectos mais cripticamente técnicos do relatório da Augusto Mateus & Associados, escapam grosso modo as melhorias mais espampanantes que os 25 anos de um Portugal europeu nos acrescentaram.
         A gente lê e a nossa boca fica com um gosto húmido a abstracção e a minudência académicas. Mas alguma coisa percebemos. Falta-nos isto e falta-nos aquilo; não fomos capazes nem disto nem daquilo; falhámos aqui, ali e acolá: são os pontos cruciais que neste país do fado, do futebol e da Senhora de Fátima conseguimos reter com mais premência: onde falhámos, o que não pudemos, o que nos falta.
        Lidos os jornais do dia, ouvidas as tsf’s pela manhã, vistos os desmesurados telejornais da noite, conhecendo as previsões da OCDE… percebe-se que Portugal pode ser um país inviável. Se não o é já. Se não o foi sempre. Pois.


        Portugal é um dos sete países onde mais aumentam as tensões sociais – dito pela Organização Internacional do Trabalho. Pudera!


        O homem de senso comum que caminha cabisbaixo pelas ruas ouve os receios expressos por alguns notáveis quanto à probabilidade de, por força da crise, da austeridade, da recessão, dos maximalismos da troika e das canalhices sociais do governo, de um dia para o outro, perder as estribeiras e o medo salazarista que ainda o arrefece por dentro, e vir por aí abaixo, e passar à violência tipo Turquia destes últimos dias, enfrentar as forças anti-motim, apedrejar, partir, incendiar, bater, matar e esfolar, firmado no pensamento loucamente positivo de que assim resolveria alguma coisa da sua triste vida.
        Não resolvia nada, claro. Continuaria a ser gozado, roubado, explorado. Mas vingava-se. De quem? Não importa. Talvez do destino…
        O que importa dizer é que o argumento da violência social iminente é usado por alguns notáveis como incitamento ao presidente para dissolver o parlamento, demitir o governo e convocar eleições legislativas – que segundo as recentes sondagens (4 de Julho) por um lado daria maioria absoluta aos partidos de esquerda, embora por outro gostasse de manter o actual governo até ao fim do mandato, só com o quesito adicional de poder mandar o ministro das Finanças para o olho da rua. É isto: no seu louco (e novo, e ainda europeu) optimismo, a que os políticos oportunistas chamam  sabedoria, o portuga deseja cada coisa e o seu contrário, devia ser assim, mas também não era mau que fosse assado…


        Mas o presidente Cavaco Silva não é nenhum palhaço, não, não é, é preciso que se diga com toda a ênfase - porque Miguel Sousa Tavares (parece impossível) seguramente não percebe nada de circo nem sabe da humanidade, da solidariedade e da grandeza de alma das gentes do circo – e como não é um palhaço (nunca poderia ser) não iria, não vai, na conversa desses notáveis, porque também ele, tocado pelo seu pensamento loucamente positivo, crê que não há paz nem salvação fora do quadro político vigente.


        O presidente também lê jornais e vê televisão e espreita pelos janelórios do palácio. E portanto sabe que quanto mais apertada está a vida para o cidadão comum e quanto mais os espectros do desemprego e da fome vão enegrecendo os horizontes do senso comum desse cidadão, menos esse cidadão parece empenhado em alinhar em manifs, quanto mais desatar a partir coisas, ir à cara da bófia ou deitar fogo a carros.
        É um facto: desde a mastodôntica manifestação de Setembro que passou, contra a TSU, a afluência às manifs tem decrescido a olhos televistos. E, o mais cáustico, tem decrescido na razão inversa do aumento das dificuldades da vida e da proximidade do que muitos chamam de catástrofe social – se eu percebesse de sociologia saberia dizer porquê…
        Ora se o homem da rua nem para uma romântico-revolucionária passeata de repúdio se mostra virado, que outro homem da rua, que outro cidadão comum, que outro povo, podem fazer tremer o governo, o presidente ou o sistema se a desgraçada situação que está a viver nem ao menos o mobiliza para um giro gritado até S. Bento, até Belém ou até à Alameda?


        O homem da rua e do senso comum começa a desconfiar da viabilidade de Portugal como país soberano e independente no actual quadro global, ultra-liberal (impiedosamente liberal) que o mundo lhe oferece. Porque o homem da rua também leu umas coisas e ouviu umas bocas, e como tal sabe das pimentas da Índia e dos ouros do Brasil, tanto quanto sabe dos euros de Bruxelas. E pergunta-se: qual será a próxima sorte grande que  nos pode sair, agora que depois da torrente dos euros de Bruxelas o mapa dos nossos possíveis benfeitores e da quantidade de benfeitorias de que sempre precisámos para viver foi drasticamente reduzido?

    

        Subsidiómanos (para não dizer chulos) que somos de pimentas, de ouros e de euros, teremos em nós forças, vitalidade, vontade, fé, porventura talento, para empreendermos em nós uma mudança radical de vidas e de pensamentos e assim escaparmos a um destino de dependências suseranas de outros, justamente o estatuto que até aqui temos encarado alegremente e com um pensamento loucamente positivo? 

                                
       
     O século XXI, que não há muito era o futuro (loucamente positivo), está a revelar-se-nos desastroso. Quando, provincianos atrasados em tudo, partimos do quase-nada para paisagens económicas europeias, crescemos, fomos o menino Isá, o bom aluno, atento venerador e obrigado do que nos diziam os burocratas enevoados de Bruxelas, e loucamente positivos progredimos o nosso bocadinho, até que, do quase-nada, atingimos o alguma-coisita. E estagnámos. Embriagados. Loucamente positivos. A pensar loucamente em positivo. E descansámos nesse pensamento, convencidos de que tinhamos chegado. E não tinhamos. E estavamos ainda loucamente longe de ter chegado.


        Lembrei-me agora da cena bíblica. Fomos levados pela Europa ao pináculo do templo e mostraram-nos o mundo, e disseram-nos: “tudo isto será teu se prostrado me adorares”, e nós fomos adorando, até que nos cansámos de adorar.
        Ou como Mefistófeles acenando ao velho doutor Fausto com os deliciosos esplendores da juventude de Margarida em troca da alma e incitando-o a assinar o pacto…


        A Europa deu cabo da nossa alma de país salazarista, sacral, tradicional, senhorial (que persistimos em continuar a ser – um dos grandes problemas). E chegou a hora da cobrança. 25 anos depois.
Mas se não entrássemos na Europa ricalhaça e dela não respeitássemos os ditames e as severidades, o que seríamos, quem nos valeria na nossa gula dissipadora de quanto de valioso nos chega de fora, pimentas, ouros ou euros?



        É neste enguiço do “nem com ela nem sem ela” que assenta o drama da nossa viabilidade como país soberano em democracia - vigiada.

1 comentário:


  1. Prometeram-nos o Céu na Terra, com a Europa e o Euro, e nós... acreditámos! De quem foi a maior culpa?

    E protestar para quê, agora, se nos sentimos tão culpados (de ter acreditado, de ter consumido, de ter folgado, de ter esquecido os nossos deveres, de ter festejado o derrube do Sócrates, de ter votado no Cavaco, no Passos/Relvas e no Portas, ou de não ter ido sequer às urnas, de dar crédito aos papagaios das televisões mercantis e dos pasquins tablóides...)?

    ResponderEliminar