domingo, 30 de junho de 2013

VERDI -  DE TRAFICANTE DE ARMAS A

        DEPUTADO




Já na noite de estreia de Simão Boccanegra, no Scala, os patriotas que assistiam à récita haviam lançado o famoso grito de Viva Verdi. Um grito de glorificação do compositor, sem dúvida, mas com um sentido secreto e mais imediato que ultrapassava a admiração artística e associava o compositor à luta patriótica. Queria dizer Viva Vittorio Emanuelle Re D’Italia.

                                                          

A 9 de Janeiro de 1859, o mesmo Vittorio Emanuelle II faz uma proclamação ao Parlamento do Piemonte: respeitaremos os tratados, mas não seremos insensíveis aos gritos de dor que nos chegam de toda a península itálica.
A 26 de Abril, as tropas austríacas passam o Ticino e entram no Piemonte, preparando o assalto à capital, Turim.
E os combates rebentam. Os italianos averbam algumas vitórias sob um comando bipartido: o rei à testa dos soldados piemonteses e Garibaldi comandando os seus caçadores alpinos. Os franceses vêm a a entrar também em cena e os austríacos são repelidos para lá do rio Míncio. A 8 de Junho, Vittorio Emanuelle e Napoleão III entram em Milão e são aclamados pelo povo. O imperador francês declara-se preparado para manter a guerra até à libertação final da terra italiana, e até que a vontade de povo italiano se manifeste através do voto livremente expresso.
Verdi está em Sant’Agata. Rejubila com as notícias da guerra, mal podendo acreditar que o sonho da unificação política esteja à beira de realizar-se.
A chamada dos italianos ao combate, feita pelo rei a 29 de Abril de 1859, depois das notícias das movimentações austríacas pelo Piemonte, havia coincidido, é curioso, com a data do casamento de Verdi com Giuseppina Strepponi. E agora, no remanso da sua casa de Busseto, situação matrimonial regularizada, Verdi pouco se preocupa com a música. Quer assumir uma inequívoca posição política.  E mais do que política, moral.


                                                     

Verdi comprometera-se na militância contra o opressor, pela unificação política e administrativa de toda a Itália. E nesse compromisso usara a sua obra artística como clarificação, se se pode dizer, das suas ideias e dos seus anseios, vaticinando em música (e pelos argumentos das suas óperas) o grande evento que se aproximava. A hora era de tomar posições na trincheira moral. A música bem podia esperar. 


                                         

O nome de Verdi era bandeira para os patriotas. O nome de Verdi era um signo moral. A 17 de Fevereiro de 1859, em Roma, noite de estreia do Baile de Máscaras, na plateia  e nos camarotes do Teatro Apollo, o grito de Viva Verdi ecoara nos intervalos do espectáculo como consigna revolucionária de vitória.
E foi a partir dessa noite do Baile de Máscaras no Apollo de Roma que as palavras Viva Verdi começam a aparecer pintadas nas paredes de toda a Itália.
Entre 1859 e os primeiros anos da década seguinte, a guerra e as vicissitudes da política passam a ser, para Verdi, a grande questão de moral, o grande sentido de uma vida. Tanto assim que nas cartas do isolamento de Busseto envia ao amigo e maestro Angelo Mariani, as questões musicais são para ele de somenos importância.
Parece que em Piacenza os austríacos fizeram saltar fortalezas e se foram embora. Estão a ser vistos passar em Cremona, a caminho de Mantova. Vê se me mandas notícias sobre o andamento da guerra.
Fico feliz com os teus êxitos artísticos, mas preferia que me falasses de outras músicas, daquelas que possivelmente não interessam a vocês, músicos, dignos filhos de Apolo. Como estão as colcheias e as semi-colcheias de Garibaldi e suas tropas? Esse sim, é um verdadeiro maestro. E que óperas ele compõe! E que belíssimos finais ele arranja, feitos à força de tiros de canhão…
A intervenção política mais directa de Verdi vai começar. Promove subscrições públicas para auxílio dos feridos e das famílias dos mortos em combate, e assim cairia no ilícito penal de alta traição, caso os austríacos voltassem a ter autoridade sobre o ducado de Parma.
Não era aliás a primeira vez que Verdi desafiava o poder austríaco. Fizera-o em 1848, integrando uma delegação que solicitava ajuda político-militar à França contra a tirania opressora das regiões do Veneto e da Lombardia.


A 12 de Julho é assinado um armistício. Todas as esperanças patrióticas são adiadas. O Veneto continua na posse dos austríacos. A Lombardia passa para a jurisdição do reino do Piemonte. Parte da Saboia será cedida aos franceses. O rei é sob reserva que assina a paz e Cavour retira-se da política activa. Os povos da Emilia e da Toscânia associam-se ao rei do Piemonte e constitui-se uma liga militar pronta a repelir o regresso dos austríacos. Chega Agosto e prepara-se em toda a Itália um plebiscito. Será ou não conveniente a anexação das regiões ao reino do Piemonte, pergunta-se ao povo.
Era uma primeira etapa jurídica para a Itália unificada.


Em Busseto, a votação é feita numa igreja. O momento tocante do dia ocorre quando Verdi entra e deposita o seu voto na urna. Estrondeia uma sentidíssima ovação. Há gritos patrióticos. Há lágrimas. Viva Verdi. Até aí era crime pronunciar o nome “Itália”, assim só, único, unificado.

Na sequência da sua posição cívica, Verdi toma a decisão moral de se deixar eleger como deputado da sua região, contrariando o próprio feitío e a própria e muito pessoal vocação. Passa a ser o representante de Busseto na assembleia das províncias da região de Parma. É eleito a 4 de Setembro. A 14 desse mês, junto com uma delegação, viaja até Turim e apresenta-se ao rei. Considera honra enorme e lisonjeira a distinção de que foi alvo ao ser eleito pelos concidadãos. Era pouca a sua preparação política, mas era, por outro lado, grande o seu amor a uma pátria unificada e à ideia de uma nacionalidade italiana homogénea.
Por intermediação do embaixador britânico dá-se o encontro entre Verdi e o conde de Cavour. Era um encontro desejado por Verdi, tanta era a admiração que nutria pelo estadista. E se o músico admira o político, este não menos admira o músico. Cavour considerava Verdi um dos mais formidáveis indutores de patriotismo e de vontade italiana de unificação. Nessa conformidade, o nome do músico deveria ficar historicamente ligado ao grande momento de libertação que se  vivia. A Verdi é conferida a cidadania honorária de Turim.
Ratazzi está presidente do governo piemontês, não quer desagradar a  Napoleão III, demora em reconhecer a vontade das regiões em serem anexadas pelo reino do Piemonte, claramente expressa pelo voto. Há desordens. Multiplicavam-se os atentados contra algumas das personalidades mais chegadas à Áustria e logo em seguida vinham as represálias. Na vida de Verdi chega o momento de se exercer como traficante de armas. É o caso das 172 espingardas.


                                                                                                             
Verdi está feito um revolucionário romântico. Mariani, meu caro, trata de me encomendar aí em Génova um carregamento de 172 espingardas. A nossa causa é sagrada.
Era preciso armar as milícias populares da região de Parma. Mas faltavam os fundos. Verdi adianta a vultosa verba. Tem cartas de apresentação do embaixador inglês para um oficial das forças garibaldinas. Mas o dito oficial, inexplicavelmente, rói a corda. E Verdi não faz mais nada: volta-se para o companheiro filho de Apolo, o então famoso maestro Angelo Mariani. Um outro mais tarde famoso maestro, Franco Faccio, também está metido no esquema.
Angelo Mariani, ilustre maestro, feito intermediário no tráfico de armas, manda a Verdi as 172 espingardas – sem se esquecer das respectivas baionetas. Dessas 172, Verdi tira uma para uso próprio – às vezes, nunca se sabe…


Estamos a 21 de Janeiro de 1860. Cavour regressa à política e põe-se à testa dos negócios do Estado do Piemonte. O voto expresso pelas regiões quanto à sua anexação ao Piemonte não pode caír em saco roto – é o que Cavour diz a Napoleão III. 
A vontade politica das regiões é reconfirmada por grande maioria e as regiões são anexadas, contra a cedência aos franceses de Nice e da Saboia. Os deputados das regiões anexadas são convidados a integrar o novo parlamento piemontês.
Sublevações e insurreições são o pão-nosso-de-cada-dia. Sicília. Não sei se lembram do filme, O Leopardo. Talvez o filme mais verdiano que alguma vez foi feito…


Sicília. Calabria. Nápoles. Garibaldi actua no sul. Acumula vitórias. Chega a Palermo.
A 7 de Setembro, Garibaldi entra em Nápoles. Nápoles e a Sicília são anexadas ao reino do Piemonte.
1860 – o ano que marca o advento da unificação italiana. Só a região de Veneza e os estados pontifícios permanecem excluídos da pátria itálica.
   Os eleitores de Busseto propõem a candidatura de Verdi ao primeiro parlamento nacional italiano em vésperas de se constituír. A propositura de Verdi é para eles uma questão de moral. Verdi recusa. Mas Cavour encoraja a candidatura do compositor declarando a alta importância moral da presença de Verdi nesse primeiro parlamento nacional italiano. Cavour também pensa fazer eleger Alessandro Manzoni, o maior poeta vivo das itálias.
Sim, sim, era um tempo em que os políticos profissionais prezavam muito os contributos dos artistas e homens de letras como força moral de uma nação.
Mas Verdi sente aproximar-se o perigo de ser transformado em político a tempo inteiro. E se a sua figura serve de caução moral às novas instituições e à nova nacionalidade, o estatuto de político representa uma agressão aos severos princípios de uma moral artística e pessoal.


Enquanto uns fazem tudo para ser deputados, meu caro Mariani, eu vou a Turim para evitar sê-lo.
Verdi tem audiência  marcada com o conde de Cavour para 18 de Janeiro de 1861.
Estão 14º negativos em Turim no dia 18 de Janeiro de 1861. Verdi argumenta com Cavour. Expõe-lhe as razões pelas quais, sem falar na honraria, não deseja prestar à pátria aquele tipo de serviço político. Nem fez os necessários estudos para tanto. Não possui cultura politica que se veja. É homem de paciência escassa e avesso a discursos. O seu lugar é outro na barricada da unificação.
Cavour desmonta-lhe ponto por ponto a argumentação. Apresenta os seus contra-argumentos, e de tanto peso eles são que Verdi, evidentemente pouco calhado no trato com políticos, acaba por aceitar o encargo. Com uma condição, porém: demitir-se-á ao cabo de alguns meses de actividade parlamentar. O ministro assente. 
- Muito bem, mas quando isso acontecer, muito agradecia que mo fizesse saber com antecedência.


Há ainda formalidades políticas a cumprir. Verdi não quer apresentar-se como candidato ao colégio eleitoral da sua região. Terão de ser os amigos a propô-lo. E eles propõem-no. Segue-se que Verdi terá de travar uma batalha eleitoral com um certo Minghini-Vaini, político regional que ambiciona a cadeira parlamentar. E Verdi ganha-lhe: 288 votos contra 185. Uma maioria que não é tão absoluta que lhe permita uma eleição imediata. Organiza-se uma votação de desempate.
Verdi não quer o cargo, é verdade, mas também é verdade que não gosta de perder. Terá de fazer apelo à sua fibra de político de outras batalhas, ao seu espírito competitivo.
E volta a ganhar. Está definitivamente eleito. A sessão de abertura do primeiro parlamento nacional italiano está marcada para o dia 19 de Fevereiro.
Bem, meu caro Mariani, vou para Turim mas tenho que descansar um pouco e equilibrar a minha bílis antes de pôr uma gravata branca. Quem haveria de dizer, ahn? Mas é assim. Não há nada a fazer.
Mas qual terá sido, se foi, se houve, a razão de fundo para tanto apoquentar Verdi  quando na iminência da eleição? Se calhar foram várias as razões. Se calhar, a maior de todas essas razões foi a encomenda que entretanto lhe chegou logo em Janeiro desse ano de 1861: uma nova ópera para o Teatro Imperial de S. Petersburgo. Ópera essa que após diversas hesitações quanto ao libreto, viria a ser a Força do Destino.
Numa primeira fase, Verdi passa quatro meses na capital piemontesa com assídua assistência às sessões da câmara e muito atento ao andamento dos trabalhos.
Mas não é de crer que a actuação parlamentar de Verdi se tenha pautado pelo brilhantismo, nem que alguma intervenção sua tenha ficado para a História.
A disposição e a disponibilidade de tempo podiam não ser as melhores para Verdi se lançar à composição da nova ópera. A Strepponi cuidava dos confortos que pudessem adoçar a próxima estadia na Rússia: tagliatelle, fettucini, macheroni, prosciuti, queijos, salames, Bordeaux, champanhes. 
Passado o mês de Julho, Verdi começa a compor a música.
Maldito contrato este que me obriga a trabalhar e a suar no verão para vir depois a refrescar-me em demasia no inverno.


A Força do Destino, ópera tão cheia de acção, de situações guerreiras e morais, de imprecações, de desespêros e de maldições, de luz e de trevas, uma figuração, digamos, da experiência patriótica e revolucionária do seu autor no  marcante momento histórico da nova pátria italiana, estreia com êxito em S. Petersburgo a 10 de Novembro de 1862.
Como disse atrás, não é de crer que a performance  parlamentar de Verdi tivesse andado por grandes vôos de oratória. A presença dele na câmara dos deputados era sobretudo uma questão de moral. Segundo ele próprio, o seu voto foi sempre um voto seguidista, apoiante das posições do grande ministro Cavour. Pelo menos, assim, tenho a certeza de não errar - confessou.
Mas não se pode dizer que não tenha travado interessantes relações pessoais naquele mundo perigoso e fascinante, e tão diverso do seu. Teve ensejo de conversar longamente sobre arte com o próprio conde de Cavour, numa época, note-se, em que os ministros de Estado eram homens de cultura. Teve ensejo também de inspirar o político nas melhores intenções de contribuir para o desenvolvimento da cultura italiana – coisa que, na boca de um político, já se sabe, vale o que vale. Mas isso é outra conversa, outra moral.
Verdi expõe a Cavour um projecto de reordenamento dos teatros líricos e dos conservatórios: três teatros principais nas três principais cidades, Roma, Milão e Nápoles; teatros sustentados pelo governo, e, em cada uma destas cidades, instituição de conservatórios de ensino gratuito, aptos a fornecer os respectivos teatros da mão-de-obra musical requerida, entre instrumentistas, coros e solistas. Mas recusará a nomeação pelo governo  como presidente de uma comissão de reforma orgânica do Conservatório de Milão.



O reino de Itália foi efectivamente declarado como constituído na sessão parlamentar realizada no Palazzo Carignano em 15 de Março de 1861. Vittorio Emanuelle II é proclamado rei dos italianos. E Verdi sente chegada a hora do seu adeus aos negócios políticos. Fala com Cavour.
Cavour pede-lhe paciência. Que espere até que Roma seja também parte do reino de Itália. Si, ma quando? , pergunta Verdi. O conde, claro, como político de primeira água, evita a resposta frontal, ah, quando, quando… beh, intanto me ne vado in campagna, allora andate, state bene, addio
(A conversa de Verdi com Cavour, traduzida, foi: 
- Mas então diga-me, conde, quando é que Roma fará parte do reino de Itália? 
- Oh meu caro Verdi, quando, quando, sabe-se lá… 
- Bem, conde, então, enquanto o reino de Itália chega e não chega a Roma, eu vou andando para o campo… 
Ao que Cavour, decerto já sem paciência para aturar as esquisitices de Verdi replicou: 
- Olhe, Verdi, então vá, adeus e passe muito bem.)
E foi a última vez que os dois homens se falaram.
Se quisesse fazer a minha biografia como deputado escreveria no centro de uma bela folha de papel que os 450 membros da câmara foram efectivamente 449, pois que Verdi, como deputado, nunca existiu.
E sim, Verdi vai à sua vida, segue o seu destino. Há a “força” desse mesmo destino. Há o Hino das Nações. Há viagens artísticas, S. Petersburgo, Londres, Paris, Madrid.


Cavour morre. Verdi inicia a revisão de Macbeth.
1865 assinala o fim da legislatura e a dissolução desse primeiro parlamento nacional, e o fim do mandato de Verdi como deputado. Dos quatro anos da investidura, em dois deles primou pela ausência. Lá terá pensado que a maior parte da sua missão moral fora cumprida com a proclamação da unidade italiana.


Ainda se pôs a hipótese de uma recandidatura, mas a opinião de Verdi sobre a política e os políticos não mudara muito entretanto. Perdera demasiado tempo numa actividade onde, segundo ele, se fala muito, de mais, se polemiza de mais. E recusou, evidentemente, uma recandidatura.
Mas Verdi não se vai da política sem indicar o perfil daquele que gostaria de ver sentado na sua cadeira parlamentar, alguém que desse provas de franqueza e rectidão de carácter.
Fazem-se maravilhosos discursos, dizem-se coisas belíssimas, sem dúvida alguma. Mas é tudo uma perda de tempo – eis a caracterização de Verdi da actividade política e parlamentar.
À hora do fim do seu mandato já Verdi congemina o D. Carlos, uma das mais geniais das suas obras, e curiosamente, aquela cujo libreto era da maior (e mais pessimista) consistência política.
   





1 comentário:

  1. Perdeu-se, felizmente para todosnós, mais um político.Belos tempos, no entanto, em que Política e Arte se entre-cruzavam...

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