sábado, 3 de agosto de 2013


       MONÓLOGO A FAVOR DE UM LICENCIADO                   
                        SEM EMPREGO


 


                                                             

Pronto, senhor doutor, aqui tem. Vá lá dez euritos para uma sopa. Não me agradeça. Eu sou um privilegiado. Tenho só a antiga quarta classe. Está a ver. Mas… olhe, desculpe, diga-me uma coisa…isto sem querer ser indiscreto…o senhor é doutor em quê? Licenciado? Ah, bonito. Os meus parabéns. Mas licenciado em quê?  Ah, sim, estou a ver, matéria finíssima. E complexa. Sim, sim. Mas deixe lá. Não pense muito nisso. Melhores dias hão-de vir. Não se esqueça de que eu, que já cá ando há uns anos, sempre ouvi dizer que este era um país de doutores. Por isso…já vê…melhores dias hão-de vir. Mais tarde ou mais cedo, o país dos doutores reconhecê-lo-à como um dos seus, e recompensá-lo-à como mais um doutor. É do que o país precisa. De doutores, sim, não tenha dúvidas. Isto é só uma questão de conjuntura. E bem vê, senhor doutor, as coisas são como são, e mais pontapé daqui mais canelada dali, e se numa volta da vida elas deixam de ser, sim, as coisas, acabam sempre por voltar a ser o que são. As coisas, pois claro. A vida. Tudo. É verdade. Fique lá com os dez euritos. Vá comer a sopita e deixe-se de escrúpulos. Sabe, eu sou praticamente analfabeto, como lhe disse, a quarta classe antiga, mas tenho o meu nível de vida. Ainda sou de outro tempo, do tempo em que a gente se contentava com um emprego. E o que me faz espécie é o senhor doutor ter andado a matar a cabeça tantos anos, a empinar coisas complicadas…bom…é assim mesmo…coisas complicadas que, desculpe lá, vai-se a ver, e não lhe estão a servir para nada. E já agora, desculpe-me outra coisa, diga-me lá: como é que eu vou incentivar aqueles que tenho lá em casa para estudar? Eles são espertos. A gente não os percebe, mas eles são espertos. Lêem os jornais e alguma coisita compreendem. E já leram de certeza aquelas estatísticas a respeito do desemprego entre licenciados. Há anos, aliás, que andam a ler essas estatísticas, e a emigração dos cérebros e coisa e tal. De forma que, qualquer dia, estou sujeito a que me respondam, sim, aqueles que lá tenho em casa, que me respondam estudar, nós?, estudar para quê?, desemprego por desemprego, tanto faz ser burro e ignorante como doutor. Está o senhor doutor a ver o caso? Não vêem furo à frente deles. Está o senhor doutor a compreender? Veja lá o meu mais velho. Não quer ser nada. Nada. Já que não tem jeito para a bola nem para a política, pronto, aí está, não quer ser nada. Diz que não vale a pena ser nada fora da bola e da política. Estúpido! Nem doutor quer ser – onde iremos nós parar com este andamento, quando a rapaziada começa a deixar até de querer ser doutor? Mas a minha mais nova gosta de letras, o que é outra chatice, porque sempre ouvi dizer que letras são tretas e o que dá é um cursozinho de economia (mesmo que também digam que já não dá como deu). Ou de Direito. Que também me dizem que já deu o que tinha a dar. Mas está bem. De qualquer das maneiras, gostava de a ver tirar um cursozinho mais técnico, científico, uma coisa mais verdadeira, uma coisa séria…agora cá letras…letras são tretas, sempre ouvi dizer, essa é que é essa. e eu queria para eles um futuro. O futuro já acabou, diz o senhor doutor? Ah sim? Bem, o senhor como é doutor saberá melhor do que eu. Eu? Eu queria para eles uma especialidade que contribuísse para o desenvolvimento do país. E não são as letras que desenvolvem um país, oh, não, não! Pois. Mas mesmo assim. Mesmo a saber que os cursos mais técnicos também têm os seus quês com respeito a empregos. Mesmo assim. E eu até me lembro do que se passou com um sobrinhito meu que teve o azar de se formar em engenharia electromecânica no Técnico. Mas numa altura bera, já lá vão uns aninhos. Sim, é verdade, todas as alturas têm sido beras nesta terra, é verdade, mas aquela era particularmente bera, sabe. Uma altura, veja bem, em que o mercado de trabalho, não sei porquê, até para engenheiros estava pela hora da morte. Mas como eu ia a dizer… de forma que o moço lá teve de se fazer à vida e começou a responder a anúncios, que os pais não eram ricos, claro está, não podiam sustentar um matulão daqueles à boa vida, jogador de râguebi, e ainda por cima engenheiro, – bem bastava já o terem-lhe proporcionado o cursozinho. E vai daí, o rapaz, que era alto e muito bem constituído e desempenado e jogador de râguebi, respondeu a um certo anúncio. Foi a uma entrevista. O emprego, calcule o senhor doutor, era num circo. O emprego, calcule, era enfiar uma pele e fazer de macaco, de gorila, e andar aos saltos por aqueles cordames, por aqueles paus que há nos circos, a entreter e a fazer rir o pagode, está o senhor doutor a compreender? E o rapaz, claro está, torceu o nariz. Evidentemente. Um engenheiro electromecânico, atleta de eleição, jogador de râguebi… a fazer de macaco de circo? Mas aquilo não era (relativamente, já se vê), pois não, não era mal pago, e o moço encheu-se de coragem. E lá foi. Lá foi ao primeiro ensaio. Não tinha saída, coitado. Não tinha cunhas de qualidade nenhuma. Os pais, estupidamente… sim, o meu irmão e a minha cunhada, muito parlapié e muita coisa, mas nunca lhe tinham arranjado um cartãozito de um partido, a política deles era o trabalho, como dizia o outro. Mas enfim. O rapaz lá foi. E eu lembro-me de que quando saíu de casa, coitado, até ia branco. Mas lá foi e lá vestiu a pele. Ele era muito ágil, um atleta, jogador de râguebi. E lá deu uns saltos como lhe ensinaram, num número com um domador. Sobe pelas cordas. Faz para lá…agora é que se pode dizer com propriedade…faz para lá umas macacadas…e nisto…quando está lá em cima, ouve uma espécie de rugidos. E olha cá para baixo com a morte na alma, o pobrezito. O que é que ele vê? Uma quantidade de leões muito agitados em volta do homem, do domador, e todos a olharem para cima, para o macaco que lá andava em cima, macaco esse que era o tal meu sobrinhito, o engenheiro, o jogador de râguebi. O pobre do rapaz começa a encher-se de nervos e de suores frios, se eu caio daqui abaixo estou feito num oito, os leões dão cabo de mim, de mim, engenheiro electromecânico formado pelo Instituto Superior Técnico, um engenheiro electromecânico e jogador de râguebi devorado por uma quantidade de leões. Mas não se desmanchou. Continuou a pular de uma corda para a outra, de um pau para uma corda, de uma corda para um pau. Queria diminuir o risco de se estatelar cá em baixo, no meio das feras, está o senhor doutor a compreender? Foi descendo. Foi descendo. Aos poucos e poucos. Um engenheiro electromecânico e jogador de râguebi a fazer macacadas, uma vergonha! Um engenheiro electromecânico, e ainda por cima jogador de râguebi, a morrer vestido de macaco! (O que vale é que ninguém o conhecia vestido com aquela pele.) De forma que… bem, chega cá abaixo, quase ao nível da pista. E é quando vê um leão vir mesmo mesmo direito a ele, e depois outro, e outro, ai Jesus, agora é que é, e os leões a chegarem-se todos ao pé dele e ele a ouvir uma voz que vem mesmo lá do meio da chusma dos leões, uma voz que lhe diz  estás com medo?, eh pá, não tenhas medo que a gente não te faz mal nenhum. Nós também somos malta do Técnico. E…pois é, é a vida, amigo. Como? Já conhecia o caso? Conhecia-o como anedota? Talvez. Mas, ouça, não é anedota nenhuma, afianço-lhe. Passou-se com o meu sobrinho Jorge. Ah, não. Não, não. Não chegou a fazer carreira no circo. Hoje pertence ao conselho de administração de uma multinacional alemã. É verdade. É isso mesmo, amigo! Vá com Deus. Desejo-lhe tudo de bom para si e para os seus. Muita sorte. A vida não acaba amanhã. Mas…olhe…doutor! Ó doutor! Então? Já não quer os dez euritos para a sopa? 



                                                   

1 comentário:

  1. Tantas vezes me faz rir (só me faltam a voz e as inflexões) com este deambular pelo (i)real!
    Abç

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