quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

           FLORENÇA-1498, OU O INDIVÍDUO

                              

Uma coisa se pode dizer de todos os homens: que são ingratos, mutáveis, dissimulados, ávidos de ganhar. Enquanto lhes fazes bem são teus, oferecem-te o seu sangue, os bens, a vida, porque a necessidade é futura. Mas quando a necessidade se aproxima, fogem-te, e o príncipe que se firmou somente nas suas palavras está perdido.


         Em Florença, por 1498, um certo Nicolò di Bernardo Macchiavelli assumiu funções na chancelaria. Foi secretário no Conselho dos Dez da Guerra e mais tarde dos Nove da Milícia. Nascera a 3 de Maio de 1469, e ninguém teria apostado um soldo nele.
         Ninguém teria apostado um soldo no espertíssimo rapaz, mas ele vai adquirir experiência da vida e dos homens, e tal experiência vai levá-lo a teorizar muito clara e muito plasticamente sobre a vida pública e o fenómeno político e a moral de ser poderoso, e de ser mau, e de ser bom… e de ser homem.
Sem a oportunidade, os talentos do Príncipe e o seu espírito ter-se-iam perdido; mas sem os talentos, a oportunidade teria aparecido em vão.
         Maquiavel observa e reflecte acerca de uma nova figura institucional. Um Príncipe. Mas um novo príncipe, despojado de princípios, de ancestralidades, de tradições e de História (familiar, pessoal). E mais longe vai Maquiavel tocando na natureza humana, na compleição pessoal e moral da nova figura política e na excelência dos seus objectivos. Maquiavel foi um Galileu na análise dos homens, dos poderes, dos estados. E seja permitido dizer que por lhe ter tocado fundar a hoje tão ensinada Ciência Política foi ele estudado e comentado ao longo das eras por um Pareto, um Mosca, até um Gramsci - sem mencionar, por demais conhecidos os comentários de Napoleão e Mussolini.
Dá-se hoje muito valor à Antiguidade e compram-se por alto preço pedaços de esculturas antigas para a decoração das casas, e a nossa arte imita as formas clássicas. Por outro lado, admiram-se mais do que se imitam os exemplos das antigas repúblicas, dos antigos príncipes, capitães e homens de leis, o que é uma pena.
         Por aqueles sonoros, brilhantes e cruéis séculos italianos, contava-se que nos estábulos de Lorenzo, Il Magnifico, havia o mais esplêndido leão que se conhecia, e leão esse que foi um dia despedaçado por outros leões, sendo a sua morte considerada vaticínio de perda do próprio Lorenzo. Quando na Florença de Quatrocentos os leões lutavam entre si, tal era de considerar como sinal funesto para a cidade.
         Ao escrever umas Histórias Florentinas, Maquiavel apreciara a sua terra natal como se ela fosse um ser vivo, e notara-lhe o desenvolvimento como semelhante ao crescimento e desenvolvimento regular de um indivíduo. E o individualismo então florescente muito se figurava em expressões como uomo singolare, uomo unico, indicadores de uma cultura exacerbadamente individualística, uma noção acrescentada da irrepetibilidade do fenómeno pessoal em vulnerabilidade e transcendência.
         Mas já por 1390, na mesma Florença, deixara de haver uma moda explícita para o vestir masculino, e já a maneira de vestir se definia como emblema do indivíduo que a qualquer custo se pretendia impor pela originalidade. Porque antes, na Idade Média, a fé um pouco enevoara os espíritos ao incitar à reserva e ao preconceito. O Homem, segundo o famoso tratado de Jakob Burckhardt, era uma raça; o Homem era um povo; o Homem era uma corporação ou uma família. O indivíduo era parte do colectivo. O Homem era uma entidade geral e indistinta. E é na Itália que se opera o corte. 
       Na Itália instaura-se a mais valia do subjectivo. O Homem acorda uma bela manhã da sua vida a entender-se como fase final de um processo evolutivo, social, psicológico, estético, e torna-se indivíduo, ser espiritual, senhor de si e da sua quota-parte de soberania.
         E o Homem do Ocidente toma a mais lata consciência de si porque já o Grego e o Árabe o haviam feito, separando-se do conceito de bárbaro ou de homem asiático gregário.
     Na Itália do século XIV não havia quem não se quisesse tornar notado, diferente do outro no ser, sim, mas sobretudo no parecer. E a tirania pessoal, o ácume do subjectivo, do arbitrário, desponta no momento até então mais agudo do individualismo humano. 

                        

                                                        
     O príncipe, o condottiere, é indivíduo, e como indivíduo autónomo, soberano, alimenta a protege a mais cristalina das manifestações do individualismo: a arte, a poesia, espiritualizações de um estado de graça da consciência pessoal, e ao mesmo tempo engrandecimento do poder e da individualidade daquele que o detém.


         A Igreja já não se confundia com o Estado. E o Estado estava para ser uma entidade mais vasta do que uma forma ou um modelo de governo dos povos
         A circunstância histórica e psicológica é propícia ao aparecimento do aventureiro destemido, não raro um bandido devidamente cônscio do poder da sua individualidade, um bandido profissional que se alista no exército do seu senhor, que trai esse senhor e lhe toma o lugar; ou um outro bandido que pega em armas, arregimenta multidões de homens menos seguros da sua própria individualidade, arremete contra as cidades, conquista-as, toma o poder e transforma-se num príncipe adulado e admirável que a História se obrigará a comemorar.
Os milaneses, quando o seu duque morreu, contrataram Francesco Sforza para os comandar na guerra contra os venezianos, e ele, depois de lhes ganhar a batalha de Caravaggio, juntou-se a eles, venezianos, para oprimir os milaneses que lhe pagavam.
   Sobre o individualismo maximizado dos senhores funda-se uma moral.
         A pouca legitimação política dos príncipes do século XV italiano era consoante com o pouco ou nenhum lustro da origem social deles, e assim o condottiere, o comandante militar contratado, mercenário, podia tornar-se príncipe num abrir e fechar de olhos.
         Mas instituíra-se que os grandes actos de individualismo deveriam de ser as circunstâncias detonadoras da fundação de reinos, de repúblicas, inclusive de religiões, enfim, do eclodir das ideias, e os únicos capazes de regenerar organismos político-militares doentes de sonolência operacional e de corrupção. Tal não estaria segundo a pureza dos mais propalados princípios cristãos, mas cedo Maquiavel compreendeu que essa prática seria o mais eficaz dos estratagemas contra a intromissão indesejada de estrangeiros nos assuntos itálicos.
         Uma ocasião, certo condottiere salvou uma cidade (possivelmente Siena) de uma invasão inimiga, fazendo jus à gratidão de todos. Como e quando poderia a cidade pagar-lhe tal favor? Nunca. E de nenhuma forma. É então que numa assembleia alguém propõe: que o general seja assassinado pelos cidadãos e posteriormente, e por toda a eternidade, glorificado e adorado como santo patrono da cidade.


         A Itália tinha suprimido o feudalismo e achava-se em situação sem paralelo com outras potências do Ocidente: um ser colectivo que por muito tempo se quis dividido, provavelmente para não poder ser governado.
     Gera-se uma infinidade de interesses pessoais, de inesperadas influências, de poderosas vontades de acção e de poder. Formam-se os grupos políticos em torno de impetuosas individualidades e assim irá nascer o conceito moderno de partido. E uma noção de Estado devidamente organizado começa por então a crescer de substância.
         Maquiavel pensa que as formas político-sociais do seu presente histórico não devem procurar ultrapassar as heranças do passado. Reexaminem-se os modelos organizacionais do passado e será um progresso. Retomem-se as virtudes antigas e será um renascimento. A política italiana, assente na tirania, não terá comparação com a do resto da Europa.
Mas ao despontar o 15º século pulverizam-se as pequenas tiranías, realizam-se numerosas alianças e aglutinações, e dá-se a concentração de poderes em menor quantidade de mãos. É uma conjuntura na vida gregária do Homem. Os condottieri  tiram excelente partido dessa conjuntura. Vive-se em Itália uma espécie de pragmatismo político. O vigor institucional e social da Florença de então era simbolizado na ferocidade da luta entre facções: nobres contra nobres; nobres contra classes médias; classes médias contra massas anónimas. A luta de todos contra todos. Facções a triunfar e facções a soçobrar. Famílias inteiras dizimadas. Mortos, estropiados e exilados. O partido político era um homem. Era o indivíduo. Chefe de Estado ou líder de facção contrária. Nobre ou chefe militar. Que ora detinha o poder, ora se batia para o conservar, ora se propunha partir cruelmente ao assalto desse poder.
Um partido político nasce quando a consciência individual que o suporta adquire grandes poderes ou influências de alguma ordem. Os valores morais comummente aceites arriscam ser confundidos para benefício de um homem que passara a constituir-se como facção e aglomerado de interesses. Como partido. Mas seria essa a nota da boa saúde política, da modernidade e do progresso da cidade e do Estado. O Uno. O Príncipe como essência universal do Estado. Uma fonte do Mal, talvez.

Florença marcava o espírito italiano e configurava política e institucionalmente o espírito da Europa moderna.
Nos estados existem três tipos de governo a que chamaria de principescos, aristocráticos e democráticos. E quando se organiza um Estado torna-se impossível evitar um deles, escolhendo-se o que a conjuntura aconselha como mais apropriado.
         E para cada um destes tipos de governo Maquiavel entrevê as necessárias contrapartidas corruptas: a tirania, a oligarquia e a anarquia.
Com maior facilidade o governo principesco se transformará numa tirania, tanto quanto facilmente as aristocracias reinantes podem descambar numa oligarquia, ou como uma democracia redundará numa anarquia. E quando o fundador do Estado institui um destes três tipos de governo só o faz por pouco tempo, porque nada o pode prevenir do deslize para o contrário de si, dada a muita proximidade nestes casos, entre a virtude e o vício.


         Tudo estava pois em aberto na sistematização social e política do Homem. Na política é questão nuclear a vida em grupo e a sobrevivência do Homem num meio hostil e prenhe de ameaças. A crise itálica incidia nas relações do Homem com os institutos supra humanos que ele mesmo criara e pretendia revitalizar. Na terra de ninguém institucional, lógico seria que a moral, a justiça e os costumes fossem categorias muito secundarizadas da convivência. E então um príncipe não precisaria de ter muitas e desvairadas qualidades pessoais de integridade. Se fingisse que as tinha, e com competência, poderia tirar partido disso. Poderia ser-lhe conveniente fingir-se bondoso, fiel humano, honesto, religioso. E até poderia sê-lo, Maquiavel não vai fora disso. Na condição, porém, de que se lhe convier não o ser poder agir ao contrário.
       Já pouco antes na História, a Sicília vivera sob o despotismo e sob a centralização de poderes de um Frederico Hohenstauffen ou de um Ezzelino da Romano. Cujos tronos se edificaram à custa da mais sangrenta crueldade. Mas lá havia de dizer Maquiavel: conviria fazer o mal todo de uma vez, porque esse mal, desde que suportado por menos tempo, pareceria menos amargo.
         A actividade política deveria caracterizar-se pelo movimento e pelo conflito, mais do que pela cooperação. E residia inevitavelmente no factor económico, e em vista da escassez de recursos, o fulcro de muitos desses conflitos políticos.
         Os bens existentes não eram em quantidade que satisfizesse a muito natural e agressiva avidez dos homens. O conflito político não seria então, e por isso mesmo, uma anormalidade na vida comunitária. E nem nenhuma teoria política seria eficaz na abolição das lutas sociais, levando em conta a natureza humana e consequentes conspirações, sublevações, golpes de Estado, invasões e guerras. Todas as modalidades de violência social seriam de considerar, não como aberrações diabólicas mas como fenómenos naturais.
         O sentido profundo da corrupção das coisas baseava-se em múltiplos factores, e sendo um deles a falta de um espírito religioso. Na antiga Roma pagã a religião não passaria de um instrumento político de dominação social, mas com a chegada e o incremento da fé cristã, e com os respectivos apelos à à humildade mais do que ao desplante corajoso, as coisas ter-se-iam desequilibrado. E mais se teriam desequilibrado quando o aparelho político da Roma papista, moralmente corrompido por essas épocas, aspirava fortemente à intervenção secular, fragilizando-se, portanto, enquanto árbitro de conflitos entre as cidades-Estado italianas.


         O nosso Nicolò Macchiavelli desenvolve uma apreciável carreira diplomática ao serviço da chancelaria florentina. Enviado em 1500 à corte de Luis XII, conhece Georges d’Amboise, o famoso cardeal de Rouen.  No espaço de um ano encontra-se por três vezes em Urbino, Imola e Roma com o filho do papa Alexandre VI, o famigerado César Bórgia. Encontros importantíssimos, seja dito, e durante os quais recebe as mais agudas lições de pragmática política.


         Os despachos diplomáticos que envia a Florença são notáveis e constituirão material decisivo para a composição da sua fundamental obra-prima O Príncipe, onde a figura do Bórgia se agiganta como protagonista.


         O Bórgia, já um pouco debilitado, negligenciava por então algumas regras políticas capitais e confiava mais no papa Júlio II e nas suas palavras do que na sua própria força. Um erro que Maquiavel testemunhou.


         Em 1506, Maquiavel estava na corte de Júlio II, e no ano seguinte visitava o imperador Maximiliano. Na sequência dessas visitas virá a reflectir que o homem público, o homem de Estado, só se poderá fragilizar ao escolher da acção política os meios termos.
     O Homem poucas vezes sabe quando deve se integralmente bom ou decididamente mau.
        Sobre o célebre papa Júlio II, Maquiavel reconhece-lhe o temperamento extremamente impetuoso, a despeito da moderação dos seus conselheiros,  estabelecendo que o sucesso das empresas políticas de Júlio II se deviam à extraordinária consonância dos seus meios materiais e do seu carácter com o teor mental dos tempos que se viviam.
     A fama de envenenadores e criminosos devassos e prepotentes que tocava aos Bórgia, pai (papa Alexandre VI) e filhos (César e Lucrécia), já corria pela Europa política do tempo. E no entanto, do contacto com César Bórgia retira Maquiavel a asserção moral ainda hoje plena de actualidade na sua essencial e polémica ambiguidade: os fins justificam os meios. Só por isso, César Bórgia (apesar de assassino, incestuoso e desapiedado tirano) merece de Maquiavel a consideração de príncipe modelo, e sendo os tempos aquilo que eram, e sendo o Homem aquilo que também podia ser nesses tempos.
         Mas era também a forçoso que o povo se unisse sob os auspícios de um grande chefe, e o que estava então em causa na conjuntura política italiana era instaurar a ordem pública, instituir uma moral política – qualquer que ela fosse – e construir um Estado forte.
César Bórgia foi considerado cruel, porém, tal crueldade levou a reforma à Romanha, unificou-a e submeteu-a  à paz. Mais compassivo foi o seu procedimento do que o do povo florentino.


         Os tempos eram desafiantes, lá isso eram, para os novos príncipes, e só medravam aqueles que gozavam dos favores da virtù e da fortuna, usando a sua habilidade, qualidade e talentos no preciso momento em que a sorte os bafejava, tornando-se inteiramente dignos dela.
O Príncipe não se pode fiar nos factos afortunados do tempo de paz, quando os cidadãos precisam do Estado, pois nesse tempo todos eles o adulam e prometem morrer por ele, porque a morte anda longe. Mas quando o tempo é menos favorável e a sorte parece distante, é o Estado que precisa dos cidadãos, e nessa altura encontra muito poucos.
       Maquiavel estipulou que, melhor do que qualquer príncipe, é o povo que sabe discernir o seu caminho, e que a qualquer povo, mais pela persuasão do que pela violência, pode ser evitado o erro.
Os homens são tão simples e tão obedientes às precisões do momento que aqueles que iludem acham sempre no seu caminho aqueles que se deixam iludir. E todos vêem aquilo que pareces, mas poucos têm a noção daquilo que és. 
        Sem dúvida, a natureza humana rege-se pelo desejo insaciável dos bens materiais e tem como básico princípio o seu interesse pessoal, entusiasmando-se e decepcionando-se muito rapidamente pelas aparências. E todavia, Maquiavel mantinha uma paradoxal apreciação quase optimista quanto às possibilidades de evolução positiva da natureza humana ao longo da História. A História antiga era ainda repositório de modelos a seguir com proveito, sendo a acção política conflitual por natureza – nada a fazer quanto a esse ponto – e sendo o conflito político-social um motor de desenvolvimento e aperfeiçoamento da organização das comunidades.


         O que é singular, e de certo modo perturbante, é que Maquiavel não elaborou a obra dele para o público. Não escreveu para um destinatário impreciso e casual. Não. A escrita dele era reservada. A obra dele destinava-se à elite dos amigos mais próximos. Era para a orientação interna e superior dos governos e para a ilustração íntima dos príncipes.
Alcança-se a dignidade e o poder do principado ou pelo favor popular, ou pelo favor dos grandes, posto que o popular não gosta de ser mandado nem oprimido pelos poderosos; e posto que os poderosos têm sede de oprimir o povo. Pelo lado dos grandes, os mais ricos, vendo que não conseguem resistir ao povo, começam a criar fama a um deles e fazem-no seu príncipe, e à sua sombra poderão satisfazer os seus apetites. Pelo lado do povo, este apenas dá fama a um para que ele o defenda, e só quando compreende que de outra maneira não poderá enfrentar os grandes.  

          

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