terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

             SÍMBOLOS




Depois das "coisas" da última publicação, os símbolos delas, delas coisas. Há muito quem diga que as sabedorias ancestrais do Homem o têm acompanhado ao longo das idades sob formas crípticas, sinais a que a memória foi dando tratamentos, foi deformando, até à perda dos significados de orígem. Quem perseverou na consideração do valor dos símbolos enquanto mensagem  desbravou o futuro, por saber que uma forma de penetrar as linguagens essenciais do Homem é proceder à decifração dos símbolos.


Se as palavras são símbolos, conhecimento haverá na memória humana impossível de reduzir ao som de uma palavra que o vento leva consigo, podendo todavia consubstanciar-se de modo mais efémero até num gesto, e mais ainda numa imagem de compreensão imediata ou restrita, alcançável quer por maiorias ignaras como por minorias esclarecidas.
Segundo se diz, os Templários, entre outras coisas, foram mestres de simbologia. Eram uma minoria iluminada pela boa decifração dos símbolos – por falar mal e depressa. Há quem diga que só por esse virtuosismo simbolista se mantiveram independentes dos poderes temporais, não perdendo jamais de vista objectivos de conhecimento humano vedados ao vulgo analfabeto. Um conhecimento tido por benéfico ou  maléfico no andar dos séculos, segundo os circunstancialismos históricos e as conveniências e os interesses dos poderes políticos.
O que são as garatujas que indicam os sons que formam as palavras que constituem as línguas? Sinais. Símbolos. Letras são sinais que organizam os símbolos; ou as palavras são símbolos que remetem para coisas; ou as palavras são sinais que remetem para sentidos ora literais ora simbólicos. 

E o espírito tem a faculdade combinatória que cria as noções, as associações, sons com palavras, palavras com coisas, coisas com a realidade, a visível e a abstracta. Concepções complexas, ninguém duvide.

O que é a matemática senão uma teoria de símbolos mais do que uma teoria de coisas?

Símbolos. Sinais. Sinal de mais, de menos, de vezes, a dividir. Sinais arbitrários. Com interpretação fixa e sempre combinável com outros sinais em convenções universalmente aceites, exactamente como as notas de música, que até tempos de duração simbolizam.
Podíamos ate definir, como Boyle, os sinais literais x, y, que podem representar coisas, segundo as nossas concepções. Ou distinguir sinais operacionais como o mais e o menos, que representam operações do espírito no sentido de uma combinatória das coisas atinente a novas concepções dessas mesmas coisas, englobando os mesmos elementos. E depois o sinal de igual. O sinal de uma identidade. E devidamente combinados a gerar as formas conhecidas da linguagem.
E se fossemos por aqui fora neste sentido nunca mais daqui saíamos.


Mas para sermos verdadeiramente, e academicamente, rigorosos, teríamos de distinguir entre símbolos e sinais. Há sinais no comportamento animal. Domesticados, os animais respondem a sinais, os sinais enviados pelo dono. No entanto, daí ao entendimento do elemento simbólico, e retintamente humano, que é a fala, vai certa diferença.
Os símbolos não são redutíveis a simples sinais. Se o sinal é uma componente do mundo físico, o símbolo decorre do mundo do sentido, ou do significado.
O conhecimento. O conhecimento humano é um conhecimento simbólico, porque o intelecto bastante se alimenta de imagens. Se o símbolo não integra o mundo físico através de uma realidade de existência, assume por outro lado a força de um significado. É o dilema posto entre a realidade e a possibilidade.
A dimensão da realidade alterada pela criação de um sistema simbólico deu ao Homem uma faculdade suplementar no concerto dos outros animais, excluindo os limites da vida orgânica.
Há quem diga até que existe um simbolismo natural. Quer dizer, que os símbolos não são exclusiva invenção humana, que a natureza mesma tem os seus símbolos de uma transcendente realidade, sobrenatural realidade, porque toda a coisa que se manifesta constitui-se como símbolo de um patamar superior de realidade, e toca aos fenómenos ditos naturais representar fisicamente princípios superiores.
Os maçons, decerto descendentes dos Templários, são mestres simbolistas. A simbologia alquímica, ou maçónica, da transformação do chumbo em ouro, pode significar um programa político de transformação, ou transfiguração, do povo, até estar preparado para receber a coroa do poder que orna as cabeças régias – ou, num sentido republicano e democrático, até estar preparado para exercer a soberania que sempre lhe fora usurpada pelas cabeças coroadas.
Tempo houve em que se quis significar por esta simbologia alquímica do chumbo transformado em ouro como a profecia de uma queda do poder régio e a utópica subida ao poder e à soberania dos estados de um povo doravante liberto, emancipado de qualquer tutela política ou religiosa.
Aquilo a que os esotéricos chamam de iniciação é, pode dizer-se, e sobretudo, um estudo dos símbolos. Isto porque, dizem, o sagrado é sempre secreto e incomunicável a não ser pelo símbolo que para o profano não-iniciado não significa nada de especial.
O nosso grande Fernando, na sua Poesia Mágica, Profética e Espiritual estabeleceu relações apertadas entre o oculto e os símbolos. Eu próprio me inclino a acreditar, dizia ele, que por detrás dos símbolos, e ainda mais nos símbolos da Obra, jaz um grande mistério cristão. A consumação da maçonaria, de qualquer modo que seja compreendida, é a perfeita Ashlar, ou Pedra Cúbica, e a Pedra Cúbica, se desdobrada, ou revelada, desenrola-se na cruz do calvário. Ou mais ainda: o sentir dos símbolos, sentir que os símbolos têm vida, ou alma – que os símbolos são gente. Mais tarde virá a interpretação, mas sem esse sentimento a interpretação não vem.


Nem sei se valeria mesmo a pena falar do poder, ou de quanto ele contém de simbólico. O poder é uma condição desprovida de qualquer valor de uso. Já não se podendo dizer o mesmo quanto ao seu valor de troca.

  


O poder pode ser trocado por qualquer coisa realmente valiosa para o uso colectivo. A obediência. Por exemplo. O poder, além de tudo o mais, como factor de troca, simboliza um valor. Um grande valor, visto que  é um símbolo que vale por aquilo que permite obter.
Se o fundamento do poder, em última análise, repousa sobre a prerrogativa de uso da força física, concreta, o direito a utilizá-la não é, visto linearmente, um atributo do poder. O poder sustenta-se sobre fundamentos que são eles mesmos símbolos da força física e capazes de a substituir.
O poder enquanto símbolo aparece-nos, bem vistas as coisas, muito aparentado com a moeda, com um sistema monetário que assentava no fundamento do ouro como padrão de troca.

          

Num sistema simbólico de poder avantaja-se uma ameaça de força. Sendo um elemento dissuasor eficaz, o símbolo do poder, generalizado sob a força de sub-símbolos, alcançará mais longe e pode ser, deve ser, um instrumento de mobilização dos recursos para uma eficácia colectiva. O poder é um intermediário simbólico, e, desde que reconhecidos os seus símbolos, legítimo.

                                  



E quando sou eu a falar de símbolos, já se sabe que não me refiro apenas às alturas do místico, do intelectualizado, do espiritual, falo também das coisas terra-a-terra, como o Audi  topo de gama do meu vizinho de cima, o seu saco de tacos de golfe, os seus fatos Armani, Hugo Boss, Rosa & Teixeira, coisas, e sinais, e símbolos; coisas com as quais ele simboliza a superioridade do seu estatuto perante a vizinhança, os amigos, os colegas, o mundo inteiro por sua vez simbolizado na população do meu bairro, na freguesia do bar onde ele pára, ou do local onde ele trabalha. Qual é o estatuto dele? Isso já é mais complicado. Mas também neste caso profano, que importa a essência, ou a verdade, se tão visível e agressivo é o símbolo?

Dos símbolos psicanalíticos nem é bom falar. Nem seria bom falar dos objectos que, segundo os psicanalistas, representam nos nossos sonhos o nosso pai e a nossa mãe. Isso e mais as sobrecargas afectivas que infiltram algumas palavras e que se relacionam com certas coisas.

Segundo Henri Lefébvre, o símbolo é causa e razão, age de modo directo, produz bloqueios da consciência. O simbolismo pode tornar-se mórbido, seja pela censura que lhe corta circuitos comunicacionais, seja pelo esforço de o transmitir. 

Por mim, gosto das simbólicas do Jung. Os arquétipos, os misteriosos símbolos colectivos, imemoriais, presentes na consciência humana, nascidos na obscuridade mais profunda dessa consciência. Disse assim o Jung: como deveriamos explicar os processos religiosos, cuja natureza é essencialmente simbólica? Sob forma abstracta, os símbolos são ideias religiosas, ou ritos, ou cerimónias, sob forma de acção.

Os símbolos são o nosso inconsciente.Talvez. Representação de recalcamentos. Um tubarão que simboliza uma vagina dentada, que por sua vez simboliza uma mãe castradora. Brrr!

Dizem os esotéricos que sempre que o Homem teve alguma coisa de muito profundo a comunicar o transmitiu por meio de símbolos. E que os símbolos trazem consigo a ideia metafísica, reavivam as almas, esclarecem os corações.


Em todo o caso, o símbolo não há-de significar o mesmo para todas as pessoas. Depende dos contextos. Espaciais, temporais, memoriais. Quer dizer, históricos. Como diz o tão popular Dan Brown, um capuz branco pontiagudo do Ku Klux Klan é símbolo que transmite sentimentos de ódio, de intolerância e de violência racista – na América. Mas o mesmo capuz branco (ou rôxo) e pontiagudo usado numa procissão de Sevilha significa piedade e profissão de fé religiosa.


                                                                                 

Como também o mesmo Dan Brown, esteiado em leituras outras, sustentará que a disposição dos discípulos à mesa da Última Ceia de Leonardo é uma mensagem cifrada, simbólica.

E a propósito, o perigo dos simbolistas mais empedernidos é quererem ver símbolos disto e daquilo onde não os há. Há simbolistas fanáticos nos casais modernos. Especialmente nas mulheres. Se reparam na mais leve marca de baton na camisa do marido concluem rapidamente que ele tem uma amante. Na maior parte dos casos é verdade. Mas também pode não ser. 

Durkheim, o sociólogo, entendia que uma consciência colectiva não podia ficar sobranceira às consciências individuais. Estaria ao alcance de toda a gente, realizada em coisas, emblemas, fórmulas, totens – símbolos, em suma. Diz ele: um trapo velho pode aureolar-se de santidade, um pedaço de papel sem importância pode tornar-se precioso. Isso mesmo, o que essas coisas simbolizassem subalternizar-lhes-ia a realidade, ou o que elas eram em si mesmas – se é que, digo eu, há alguma coisa que o seja apenas em si mesma.

Os objectos simbólicos são-no porque contêm não uma realidade íntima, natural, por assim dizer, mas porque neles reside a substância espiritual, sagrada, mais valiosa do que a substância real da coisa em si mesma. Ou porque neles, em suma, digo eu, habita uma moral.

Lévi-Strauss via os objectos sagrados como sinais, integrantes de um sistema de sinais, não lhes conferindo carácter de símbolos.

                                                  


                                                                                     

E também houve quem dissesse da substância dos símbolos que ela não passava de ser obra daquele que os observava e dos respectivos preconceitos. O lado afectivo do observador transmitia afectividade ao objecto observado. Mas aí está: residirá na afectividade um dos lados mais obscuros do Homem; e esse lado obscuro é renitente às explicações de si.

         É característica das proposições lógicas que só pelo símbolo se possa reconhecer que são verdadeiras. Wittgenstein definiu as características abstractas e formais e funcionais do símbolo lógico-matemático. A linguagem simbólica nada designaria, nada mostraria, a não ser a si mesma.

Fala-se também do símbolo como um extra-sinal. Ou como uma potência superior da linguagem, com funções alargadas quando se acercasse dos temas básicos da sociedade humana, família, paternidade, heroísmo, tragédia, nascimento e morte, dívida, erro…

Nem haveria relações entre dois seres humanos sem um terceiro patamar de linguagem, um terceiro termo.


Os anagramas. Tempo houve em que a importância secreta e simbólica dos anagramas era muita, era mágica. Uma disposição diferente das letras de uma palavra obtinha significados diversos. E tanto assim que os príncipes renascentistas contratavam anagramistas que os aconselhavam nas decisões sobre os mais altos assuntos de Estado. Não era brincadeira. Hoje em dia sim, os anagramas são um passatempo.



Der Letzte MannO Último dos Homens. Numa indústria dominada hoje quase em exclusivo de distribuição por Hollywood e pela pepineira dos efeitos especiais, pouca gente se lembrará do velho cinema. Do velho cinema mudo, ainda por cima. Ou do velho cinema alemão dos anos 20 – a que nem Hitler nem Goebbels achavam por acaso muita piada. Falo da escola expressionista. 
Dentro do expressionismo – aliás todo ele em linguagem construída sobre símbolos fantásticos – avulta um nome: Murnau. Murnau era um fanático dos símbolos visuais – de resto, esse Murnau não destoava da sua cultura germânica natal. Um guarda-chuva de porteiro de hotel pode, em dadas circunstâncias, valer como símbolo de uma qualidade profissional, de uma soberania pessoal. Como um ceptro que esse porteiro preserva das mãos de outro pessoal do mesmo hotel, pessoal não iniciado, quer dizer, não espiritualmente preparado para o empunhar. E se por acaso o porteiro por qualquer razão entregar o símbolo do seu estatuto a um dos paquetes fá-lo com a solenidade de uma cerimónia iniciática de transferência de poderes.
Continuando no porteiro de Murnau em O Último dos Homens, sobressaem outros símbolos de estatuto, ou mesmo de qualidade espiritual. Os botões dourados da libré. Um dia arrancam um desses botões ao porteiro, e a câmara de Murnau, significantemente, acompanha a queda do botão. Como se fosse um acontecimento transcendente. Como se fosse uma degradação moral, uma despromoção militar. O porteiro recordará a queda daquele botão, ou a humilhação de que foi vítima, quando, por velhice, passou das pompas da portaria do grande hotel à insignificância abjecta de guarda das retretes dos cavalheiros.


Uma porta giratória rodando perpetuamente, na luz, e em frente um porteiro, de estatura elevada e rígido como um lacaio – rezava o texto do argumento de Carl Meyer para este filme. O porteiro era admirado e respeitado no seu ofício pela família e vizinhos como um general. Mas um dia o botão cai-lhe da farda. E a dignidade da consciência que tinha de si desaba.

  

O botão foi, para o porteiro, o símbolo do destino. Acompanhado pela câmara, o porteiro desce aos lavabos  numa figuração de descida aos infernos, até que os batentes da portinhola dos lavabos se fechem sobre ele sem remissão possível e ele se sinta verdadeiramente o último dos homens.


Continuando por este caminho expressionista e sem sairmos dos símbolos de Murnau: antes da descida aos lavabos, o porteiro governava os movimentos de carrossel da porta giratória. Movimentos incansáveis que simbolizavam o turbilhão da vida e pelo qual circulavam como títeres os pobres seres humanos. Era o porteiro quem dominava esse movimento, quem o dirigia, quem lhe administrava a justiça e a prioridade. Era aquele o seu poder. Demiúrgico. Regulando o passo de quem entrava e de quem partia daquele mundo, o mundo do hotel, o mundo em si. Mas as retretes dos cavalheiros também tinham portas como batentes que iam e vinham e sem que o porteiro exercesse sobre elas alguma prerrogativa. O cliente rico, irritado por não ter sido atendido com a presteza devida, sai, agita os batentes da porta para ir reclamar ao gerente dos serviços do porteiro.


O porteiro, nos lavabos, repara com atenção nos gestos dos clientes que, ao espelho, cofiam os bigodes impantes e penteiam os cabelos rebrilhantes, acertando com rigor o risco do cabelo. Exactamente o que o porteiro fazia quando era porteiro, a preparar-se para pegar ao serviço; e que deixara de fazer com esse rigor cerimonial porque, pela idade, o tinham transformado no último dos homens.

Portugal é uma cultura simbolista. Talvez outra nação não haja a sobreviver e a comprazer-se tanto pelos símbolos. Digo eu. Se calhar é disparate.

Sempre achei que Portugal era, como comunidade e sistema de vida, um campo soberbo para o cultivo das simbólicas. Uma parte importante da História portuguesa, parece-me, foi terreno especialmente fértil para o florescimento dos símbolos e das metáforas. Refiro-me àquele século XVII. Refiro-me à mitologia do sebastianismo.

D. Sebastião, no sentido simbólico, foi uma encarnação de Portugal. Uma simbólica da adversidade, da infelicidade portuguesas. Ele, estouvado, desavisado, heróico e desaparecido, foi Portugal mesmo. Portugal perdera a grandeza com o desaparecimento de D. Sebastião e tornaria a ela logo que D. Sebastião regressasse do seu mistério- disse alguém. Regresso que era já de si simbólico. Tal como a vida e a morte mesma dele foram elementos simbólicos na História da grei.
             
El-Rei Menino regressaria da Ilha ignota onde aguardara a melhor hora para voltar. Por uma manhã de nevoeiro. Montado num cavalo branco. 
A manhã de nevoeiro simbolizaria um renascimento. O facto anunciador desse renascimento seriam os símbolos de decadência que eram os elementos da noite, fragmentos da noite-decadência simbolizados pelo nascer da manhã (que comporta sempre um resto de noite) e talvez pelos flocos de névoa que, como a noite, empanam a clareza da visão das coisas.


Não se pode, no caso, contornar o nosso grande e inevitável Fernando: a alma é imortal, e se desaparece torna a aparecer onde é evocada através da sua forma. Morto D. Sebastião, o corpo, se conseguirmos evocar qualquer cousa em nós que se assemelhe à forma do esforço de D. Sebastião ipso facto o teremos evocado e a alma dele entrará para a forma que evocámos.
Quando houverdes criado uma cousa cuja forma seja idêntica à do pensamento de D . Sebastião, D. Sebastião terá regressado, mas não só regressado modo dizendo, mas na sua realidade e presença concreta, posto que não fisicamente pessoal.


O Brasão português. Uma apoteose simbólica. As  cinco quinas como cinco príncipes infelizes, ou mesmo mártires, cada um a seu modo –D. Duarte, D. Fernando, D. Pedro, D. João, sendo o quinto, obrigatoriamente ele, D. Sebastião.


Que símbolo fecundo vem na aurora ansiosa? Na Cruz morta do mundo, a vida, que é a Rosa.
Que símbolo divino traz o dia já visto? Na Cruz que é o destino, a Rosa que é o Cristo.
Que símbolo final mostra o sol já desperto? Na Cruz morta e fatal, a Rosa do Encoberto.


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