CONTOS DA MEDIOCRIDADE ACEITÁVEL
Em 1999: 4500
manuscritos de autores desconhecidos foram enviados à famosa editora francesa
Gallimard; 2500 à Minuit; 3500 à Flammarion. Grasset recebe 60 textos por
semana. Albin Michel 50 por dia. Mas se uns afirmaram que de há cerca de 10
anos antes as editoras francesas recebiam duas vezes menos manuscritos do que
já haviam recebido, outros diriam que as remessas de originais pelo correio haviam
triplicado.


E tudo isto mesmo que
se saiba que 99,9% dos textos de autores desconhecidos do público enviados às
editoras são amavelmente recusados.
Em qualquer
casa editora, pelo menos teoricamente, o primeiro crivo de leitura de um
original de autor desconhecido elimina logo 90% dos manuscritos.


A moral da
edição. Os maduros que nunca escreveram uma linha de jeito mas que gostam do
que os outros escrevem e arriscam o seu rico dinheirinho para dar a conhecer ao
mundo aquilo que outros escrevem. Aquilo de que eles próprios gostam, já se vê,
ou aquilo que o comércio livreiro lhes impõe como negócio.
Arriscar
dinheiro a editar livros que o mais certo é não venderem o suficiente pode ser
uma questão de moral. É com certeza.
Mas fala-se
mais de quê? Daquilo que os editores não gostam, daquilo que eles recusam por
não gostarem, ou daquilo que recusam por lhes poder ser prejudicial ao
negócio.
Se calhar,
a condição moral primeira de um editor que se preza é ter a coragem de recusar.
Já Grasset, o famoso editor francês, no seu livro La Chose Littéraire, dizia que quase não chegava, em média, a
publicar um em cada 50 manuscritos que lhe eram presentes.
Vamos lá a ver, moral que seja o negócio, e cultural, tudo bem,
mas os editores não são exactamente filantropos, nem as editoras são
organizações de caridade. A finalidade delas é vender. E ganhar dinheiro. Ponto
final
E já uma vez li numa
entrevista do Gabriel Garcia Marquez, quando ele começou a levantar cabeça e a
tornar-se uma celebridade, que enquanto ele, escritor que vendia muito bem pelo
mundo inteiro, podia comprar, por hipótese, um automóvel, o editor dele poderia
comprar cinco. Por mais moral e mais cultura que ande envolvida no ramo, os
editores são, primeiro que nada, comerciantes, e lá governam a sua vidinha, e
lá têm os seus negócios, as suas razões para publicar ou não publicar isto ou
aquilo.
E quando gosta de um
manuscrito, um editor pode perguntar-se: “a quantas pessoas poderei comunicar o
prazer que experimentei ao ler este manuscrito? Qual é o meu interesse em
vender este texto?”
Uma obra de estreia
poderá não interessar pessoalmente o editor. Poderá entretanto interessar à
casa editora, poderá interessar comercialmente. Grasset assevera com respeito à
obra literária: é questão de admiração ou de desprezo. Não existem sentimentos
intermédios. Mas também sabe que não é possível a um editor publicar apenas as
obras que lhe interessam pessoalmente. Sabe que um compromisso é fatalmente
necessário na selecção, porque uma coisa é a natureza absoluta do seu
julgamento e outra muito diversa são os interesses comerciais da sua casa
editora – e os gostos do público comprador, já se vê.
Mas pode
perguntar-se: porquê tanto e tão intenso desejo de publicar uma prosa,
sabendo-se da enorme dificuldade, da enorme concorrência?
E será que
qualquer um pode ser escritor?
Pelo que se
vê hoje em dia… pode.
A
literatura ensina a quem a pratica e ver-se a si próprio e a ver o mundo de uma
maneira mais precisa e completa: frase do intelectual francês Jean
Paulhan. E nem importará muito a qualidade de literatura que cada um possa
fazer. Seja essa qualidade o que for, representa um esforço para observar o
mundo como se o próprio lá não estivesse. Ou talvez seja mesmo esse o fim
último de toda a literatura.
As pessoas escrevem,
antes de mais, porque se sentem sós, isoladas no mundo, a bem dizer inexistentes
– opinião de um leitor de uma grande casa editora francesa - , confissões,
confidências, traumatismos, sonhos…

Mas será que somos
todos assim à partida escritores potenciais? Quero crer que não. Porém, ao
contrário da música ou da pintura, todos nós, mais ou menos, dominamos o
utensílio básico da literatura, sabemos escrever, sabemos os rudimentos, pelo
menos, da nossa língua. Todos escrevemos cartas. E todos, por exemplo, na
escrita de cartas, somos assaltados por um primeiro pensamento técnico-literário:
“qual será a melhor maneira de interessar, de tocar o coração do destinatário
da minha carta?” Muitos de nós mantêm, ou mantiveram, um diário pessoal e
íntimo, que serviu muitas vezes de memorial e de guia de vida, e de vidas,
acontecidas e por acontecer, e quase inconscientemente também para esse diário
procurámos uma forma, uma eficácia, ainda que ele tivesse vocação de ser lido
só por nós. Diz um editor francês contemporâneo que a prática da escrita,
parecendo que não, é uma prática de massa, quase como o desporto de massa. A
escrita é, portanto, património de todos. Todos aspiramos à narração, todos
gostamos de contar, todos queremos contar, contar…
Ou será que publicar é
um direito tão incontestável como o direito de escrever e de contar o que nos
apetece? Claro que não é.
Publicar uma prosa ou
umas versalhadas é, para muita gente, o ápice da realização pessoal, é o ser-se
considerado e reconhecido pelo mundo, é ter um estatuto e uma respeitabilidade
de ordem incomum. Ser um escritor.
Mas publicar pode não
ser a parte mais difícil desta gigajoga de ser escritor. Pode não ser. Pode ser
incomparavelmente mais difícil, depois de ser publicado, ser lido. Quero eu
dizer, ser vendido. Ser muito lido significa vender bem aquilo que se escreveu.
E ser escritor é merecer ver publicada uma segunda obra.
Haverá que escolher
nesta coisa da escrita, parece-me a mim, uma de duas frustrações: ou ser sistematicamente
recusado pelas editoras; ou ser aceite por uma e não ser lido, não vender, não
merecer uma segunda chance, ir para o rol dos embrechados, ter estatuto de mono
editorial.
Porque também há que
contar com a promoção do objecto, sim, do objecto indefeso que é um livro. Um
livro que o vendedor pode pôr a venda na montra da loja, no principal
escaparate da casa, ou numa prateleira tão baixa que logo à partida nos convida
a não curvarmos a espinha, ou numa prateleira tão alta que o livro fica ali só
por ficar, sabendo-se que ninguém lhe conseguirá ler distintamente o título.
E porque é que o
livreiro pôs o livro acabado de receber da editora na montra, com grafismos e
chamadas de atenção para ele, e não o pôs na prateleira do fundo ou na
prateleira do alto? Porque alguém lhe pagou percentagem para ele o pôr na montra
e não o esconder numa prateleira. E quem pagou? E pagou quanto? E quem lhe pagou a publicidade nos jornais e
nas televisões? Bom, será melhor não avançarmos muito por este caminho…
Claro que
hoje já se pode ser escritor de Internet. A Internet é uma nova modalidade de
glória literária, outro meio de auto-edição, ou de edição de autor – aquela
edição a que, salvo raríssimas excepções (Miguel Torga), e fora dos círculo dos
amigos, ninguém passa cartão, porque não é publicitada, porque não está nas
montras nem nos melhores escaparates, porque não é promovida. Porque, se
calhar, não foi bem distribuída. Mas mesmo na Internet o problema de encontrar
leitores e de os interessar persiste. É preciso criar um site, um blog (como
este) torná-lo apetecível. Também há meios e círculos a que pertencer no
ambiente cibernético.
O autor desconhecido
que se dirige a uma editora, se não o envia pelo correio, traz consigo o seu
manuscrito e insiste em avistar-se pessoalmente com o dono da casa, o nome
famoso da edição. Quer ter a certeza de que será ele a ler o seu romance, pondo
muitas vezes esse detalhe como condição
de entregar o manuscrito àquele editor.
Mas muitos dos
originais – os que mais nos interessam agora para o caso - chegam às editoras
pelo correio. Alguns chegam a aparecer acompanhados de caixas de whisky. Outros levam cartas extensas do
próprio autor a explicar o que quis dizer
verdadeiramente na sua obra. Outros ainda proclamam a originalidade da
sua história, porque são pessoas pouco lidas e podem afiançar que nunca ninguém
tratou aquele assunto e que nunca ninguém contou aquela história, porque a
candura dos jovens autores desconhecidos, dizem, é muita.
Mas, claro está, cerca
de metade – estou a reportar-me ao universo francês – dos manuscritos avaliados
nas editoras, são recomendados. Não há maneira melhor de publicar nem que seja
a maior das mediocridades e das xaropadas do que ser-se recomendado. Por quem?
Ora por quem… por escritores, por jornalistas, por livreiros. Ou por amigos
influentes. Amigos de uns e de outros. Mas também acontece um pouco em França
os grandes prémios literários adorarem consagrar desconhecidos.
Suponho que
uma das grandes preocupações de um estreante que manda um manuscrito a uma
editora é a convicção de que vai ser realmente lido de princípio a fim e de que
o seu manuscrito, por falta de recomendação ou de cunha, não é passado em
branco, posto de lado como coisa que, se não foi recomendada é porque não
interessa. E é evidentemente isso mesmo que acontece. Ninguém lhe vai ler o
original porque ninguém o recomendou. Por isso muita gente perguntava a Bernard
Grasset se lia de facto, pessoalmente, todos os manuscritos que lhe enviavam e
se era ele a tomar todas as decisões de recusa ou de publicação. E o mesmo
Grasset assegura que em muitos casos, quase a maior parte, o processo
desencadeava-se pelo conhecimento pessoal. E diz mais, diz que guardou,
agrafados aos relatórios de leitura de manuscritos insignificantes, ou mesmo
intragáveis, as cartas e os
entusiásticos bilhetes de recomendação de muitos grandes nomes da
literatura a insistir para que publicasse as maiores mediocridades escritas
pelos amigos.
Sim, pois,
o amiguismo. Já em 1929 o amiguismo literário estava por todo o lado e conduzia
a tudo. Nem que fosse na literatíssima França.
Bernard Grasset
assegura que é ele em pessoa a cortar os cordéis da encomenda de um manuscrito
de autor desconhecido acabada de chegar ao seu escritório. Bernard Grasset abre
o pacote. Detém-se na primeira página. A importância que pode ter uma primeira
página…
E a primeira página é decisiva para Grasset. Grasset lê a
primeira página. E como é um romântico impenitente fica invariavelmente na
expectativa de se deparar com uma obra-prima, espera sempre de uma primeira
página uma espécie de revelação. Enfim, espera a obra prima mas, cuidado, está
sempre com a alma pronta para a decepção, porque as obras medíocres são
indiscutivelmente mais numerosas do que as obras de talento.
Mas pergunto se será
de exigir que todas as potencialidades de um livro se revelem logo na primeira página.
Parece que não.
Grasset, não espera ficar maravilhado numa primeira página. Isso seria uma
excepção, um milagre. Mas uma primeira página pode dizer muita coisa sobre tudo
o resto, pode prender ou desinteressar – eu por mim nem diria uma primeira
página, diria uma página, uma qualquer página; numa livraria, ao ler uma página
(quantas vezes um parágrafo) de um livro de ficção, percebo logo até que ponto
vai a minha consonância com o autor, até que ponto a obra me interessa e
porquê. Uma questão de instinto, de treino, e de se saber o que se pretende de
um livro, um livro que se queira dar a conhecer ao mundo, ou um livro que se
queira simplesmente comprar.
Bom, Bernard Grasset
vai lendo, passa a primeira página, a segunda, leva o manuscrito para casa,
recolhe-se com ele, vai lendo. Vai lendo até que se choque com a falta de
qualidade, com a mediocridade do manuscrito. Nesse caso devolve-o imediatamente
ao autor. Mas quando o original logrou interessá-lo, Grasset faz dele a sua
tarefa pessoal.
Paul
Otchakovsky-Laurens, da editora Albin Michel, também faz muita questão de ser
ele a abrir os embrulhos de manuscritos que chegam, e diz que é um trabalho
excitante, abrir, folhear, ler linha aqui parágrafo ali, sensibilidade desperta
à espera de alguma coisa que o provoque no manuscrito de um desconhecido.
Reparem em três opiniões
de editores quanto a critérios de publicação:
Um
escritor reconhece-se logo quando se lê, quando temos vontade de virar a
página, quando se está perante um universo pessoal, perante a força de uma
personalidade.
Quero reconhecer os textos que farão
avançar o mundo e cintilar uma época.
O que procuramos é o nunca lido, uma
determinada espécie de de escrita, de encenação literária.
O tema do manuscrito
do escritor desconhecido: será apaixonante? Instrutivo? Actual? De acordo com a
moda? Ultrapassado? Trágico? Heróico? Regional? Humorístico? A que público se
dirige, homens, mulheres, infantil, especializado?
Sinceridade de
escrita, no critério de Bernard Grasset. Nada de efeitos fabricados. Uma obra
que responda forte e sinceramente a um profundo desejo de a escrever e de a
publicar, a uma necessidade forte de se “dizer” aos outros. O contrário da
mentira literária do principiante que apenas pretende fazer figura de escritor
e que gosta de ser olhado pelo mundo e pelos amigos como um escritor.
Mas por alma de quem,
perguntar-se-à, e em nome de quê, se recusa a esmagadora maioria dos
manuscritos primeiros apresentados a uma editora?
Grasset responde: em
nome do gosto, do bom gosto, vamos lá. “Mas será você o juiz perfeito do gosto?
Será você a última e decisiva palavra quanto a gosto literário? Não será
pretensão a mais?”
É que se um editor não
acreditar que possui um sentido do gosto e da coisa literária suficientemente
seguro para estar certo de que uma obra de valor nunca por nunca poderá escapar
à sua clarividência, deve imediatamente mudar de profissão. Mas a questão
também se joga muito no chamado conselho de leitura de uma casa editora, uns senhores
assalariados, escritores, críticos, professores, que podem recomendar ou
desaconselhar o original de um desconhecido. Os conselhos de leitura das
editoras podem fazer de um manuscrito inteiro de autor desconhecido uma primeira
leitura rápida - entre três e dez minutos por cada original, calculem. A maior
parte deles são imediatamente eliminados, postos à disposição do autor – ou
recuperá-los, ou deixá-los ir para o lixo: as editoras têm uma carta
previamente escrita, impessoal, a recusar o manuscrito e a deixá-lo à
disposição do autor desconhecido. Uma carta que é enviada ao autor passado
cerca de um mês. Um mês, ou dois, por uma questão de boas maneiras, para dar a
ideia de que o seu manuscrito levou um mês ou dois a analisar pelo conselho de
leitura, quando pode ter levado uns breves dez minutos.
Bernard
Grasset manda ao seu conselho de leitura os livros que numa primeira vista de
olhos não o desiludiram por completo. Pede um relatório. A decisão deixa de
depender unicamente do seu critério. Passa a depender de uma espécie de média
tirada entre as opiniões dos membros do seu conselho de leitura.
Em geral, ainda
segundo Bernard Grasset, cabe aos conselhos de leitura o papel de advogados da
mediocridade, por serem eles os indispensáveis curadores dos valores médios de
quanto se publica.
Eu não sabia, mas pelo
que li num número já antigo da revista francesa Lire, a primeira coisa que os membros dos conselhos de leitura se
perguntam quando pegam num original desconhecido é “que idade tem o autor?” – e
se for uma autora, mais perguntam. E também lhes interessa eventualmente a
qualidade da carteira de contactos do autor ou autora desconhecidos. É melhor
que essa carteira seja apreciável. E, diz quem sabe, vale mais ser jovem e
bonita do que velha e frasco, se se quer ter hipóteses com um manuscrito de
estreia. E fiquem sabendo que se dá atenção máxima aos assuntos que estão em
voga no momento. As confidências de um serial
killer ou de um pedófilo têm edição garantida, hoje em dia, acho eu, e podem
ser mesmo disputadas por vários editores.
(Ou será por isso
mesmo, a voga, os temas e as personalidades do momento, que a prosa portuguesa
do presente é em muito dominada pelos apresentadores de televisão, pelas
modelos mais faladas nas revistas, pelas actrizes de telenovela ou pelos
simples locutores de telejornais, finamente designados por pivots… )
Umberto Eco pôs-se uma
vez na pele de um membro de conselho de leitura de uma editora e depois
publicou os seus relatórios de leitura fictícios. A Bíblia tinha sido presente
ao seu critério de edição e Eco, no seu relatório, desaconselhava vivamente a
publicação, a publicação da Bíblia, sublinhe-se: não passava de uma salsada monstruosa que de certeza não
iria agradar ao público.
Sobre o D. Quixote,
ficava a sensação de que o autor tinha acabado de sair da penitenciária e que
andava mal de vida. E quanto a Proust, sim, talvez, mas era urgente rever toda
a pontuação.
(E já que se fala de
Proust, é bom não esquecer, que André Gide era um jovem leitor ajuramentado de
uma casa editora – Galimard, creio - quando desaconselhou a publicação da Recherche do mesmo Proust.)
Mas vá lá que quando
um editor quer mesmo publicar um autor desconhecido, está-se marimbando para o
conselho de leitura. E a pergunta premiada é: quando é que um editor que mesmo
publicar um autor desconhecido contra o parecer do seu conselho de leitura? Ora
bem, quando ele vem bem recomendado. Quando com as recomendações ele lhe traz
garantias financeiras de não perder o seu rico dinheirinho; ou seja, quando o
autor conta com o apoio de um patrocinador; ou quando ele, autor, tem de seu o
suficiente para comprar uma primeira (ou uma segunda, sabe-se lá) edição do seu
próprio livro.
Se um editor não
publicar senão as obras que se impõem, que possam trazer algo de novo e de bom
às letras, aquilo a que Grasset chama as obras necessárias, terá contra si
todos os escritores medíocres da vida ( que é o que mais há), exactamente
aqueles que fazem a opinião.
Porque a opinião em
geral, e a literária em especial, não é feita por alguns poucos homens de génio
que atravessam uma época, mas sim pelos profissionais da literatura, incapazes
de se elevar acima da concepção que na época deles vigora sobre a escrita. Essa
concepção meramente temporal, limitada, digo, pela moda do tempo, é a que,
segundo a crítica, terá de servir de bitola aos talentos.
Pois é, uma nova obra
literária, para ser publicada, deve equilibrar-se pacificamente entre os
valores médios do seu tempo. Restando saber qual o grau de mediocridade
intelectual e literária que é aceitável em cada tempo, em cada moda, e qual o grau
a partir do qual, em cada época e segundo cada moda, a mediocridade é
impossível de tolerar.
É. A mediocridade pode
ser, tem que ser, a bitola de tudo, a referência, o padrão, a partir dos quais
tudo é ou não é. A mediocridade e não o génio. A vida é assim. A vida e as
vidas não podem ser governadas pelo génio. Seria o caos, o apocalipse. E o bom
viver só existe se pautado por uma mediocridade aceitável – diria facilmente
aceitável, em cada tempo, em cada moda.
Numa casa editora é ao
conselho de leitura que cabe esse papel de juiz da mediocridade aceitável, ao
dizer: “pode-se publicar esta obra, porque ela não é pior do que esta, aquela e
aqueloutra que esta casa já editou.”
O mundo das letras (e
o da política?) pertence aos medíocres. São eles a maioria. E são eles que
fazem a opinião – não sou eu, má língua, que o digo, é precisamente o famoso
editor francês Bernard Grasset que o afirma.

Bom, e se no conjunto
das publicações de uma editora não encontrarmos muitas obras que tragam
qualquer coisa de novo e de bom ao mundo das letras, não é necessariamente
defeito do editor, é questão de indulgência, da indulgência que é própria do
nosso tempo.
Bernard Grasset
escreveu estas coisas em 1929. E, segundo leio e segundo tenho conhecimento,
tudo isto é assustadoramente actual – então no que se refere à indulgência do
tempo nem vos digo nada…
Grasset fala, em 1929, da perda do respeito pela coisa escrita.
(Coitado.) O que permite dizer a muita gente, em face daquilo que se publica
hoje em dia (e em 1929 parece que também),”então se aquele ou aquela
publicaram, porque diabo não poderei eu publicar também as minhas
redacçõezinhas, as minhas memórias, a minha vida que dava um romance tão lindo.
Não terei eu o mesmo direito?”
Pois é. Não tem. E ao mesmo tempo tem, claro que tem.
O sucesso, é bom que
se note, o sucesso em literatura e em edição, constitui uma excepção à grande
regra da mediania, da banalidade. Da mediocridade. E demais, seria perigoso
pretender que foi unicamente o valor literário de uma obra aquilo que a impôs
ao gosto do público. “Aquilo que o público gosta”, costumava, e costuma,
dizer-se. Fórmula e critério que, segundo alguns mais experimentados do que eu,
não passa de uma ideia pueril e que contém em si não pouco desprezo pelo
público.
E de tudo isto me
lembrei anteontem a propósito do número considerável de pessoas que por carta, por
telefone ou pessoalmente, ao longo dos meus anos de Antena 2, solicitaram os meus textos e me perguntaram
quando me resolveria a publicá-los em livro. E eu nunca me resolvi. E nem nunca
nenhum editor pareceu interessado nisso. Provavelmente por todas ou algumas das
razões que eu desfiei atrás.
E daqui me vem a
convicção: literatura universal?, oh, senhores, literatura universal foi, é e
será apenas aquilo que os editores queiram que seja – recomendada, bem
capitalizada, etc.. Porque aquilo que um editor escolhe passa a ser literatura.
É literatura. E aquilo que um editor recusa, não é literatura. Nunca será
literatura. É assim e acabou-se.
Aliás, o nosso Bernard
Grasset entende mesmo que a lógica e o verdadeiro interesse da grande
literatura mandam que uma obra cuja publicação não se imponha por si jamais
deverá ser publicada. E… bom, não sei o que seja isso de uma obra se impor por
si se não levar um empurrão dos outros, de alguém, de algum lado, se não
trouxer bom dinheiro atrás dela.
Mas enfim, está bem.
Eles é que sabem. E agora é que com propriedade se pode dizer que eles é que
têm os livros.
Ou então, esta coisa
de escrever e ser editado são tudo histórias, tretas, acasos. Ou, como o
próprio Bernard Grasset disse em 1929, contos da mediocridade mais ou menos
aceitável.
Que tristeza que tão pouca gente (ou neste caso ninguém) comente este texto. Estão concerteza todos muito ocupados a traçar perfis no Facebook e a manter aqueles diálogos tão cativantes e profundos com os milhares de amigos...Pois olhem a mim o Joel faz-me falta, tal como o ar que respiro.
ResponderEliminarQuanto ao blog, que saudades dos tempos em que se publicava pouco, mas bom e em que as livrarias eram verdadeiras "catedrais" do conhecimento...Hoje é tudo para usar e deitar fora...Bem haja.
Só não comemtei, porque ainda não tive tempo de o ler...
ResponderEliminar