sexta-feira, 4 de abril de 2014

                  O ESTADO COMO MODELO
                     DE VIOLÊNCIA SOCIAL

      Ou sou eu que estou redondamente confundido, ou houve uma das chamadas agências de gestão de risco que que incluiu para este ano Portugal (e pela primeira vez) no mapa de risco político e de latente violência pública, e assim em consequência da conjuntura crítica em que o país vive.
        Até hoje não dei por nada.
      
      
      Mas ao colocar Portugal num grupo de risco de violência pública, de violência social, dir-se-ia que essa agência internacional tem em vista, e fundamenta-se, num princípio de ritualização da violência pública em si mesma, prevendo a sujeição dos actos a um conjunto de normas operativas aceites e ritualizadas.
Num primeiro passo do ritual, o Estado implementaria medidas desequilibradas ou injustas sobre a população, e num segundo tempo cerimonial a população revoltar-se-ia contra essas medidas e praticaria uma quantidade de distúrbios públicos. E seria ritual porque seria, além de simbólico, lógico, e normativo, acção e reacção, causa e consequência óbvia. E tudo isso no quadro de uma civilização de violência, tendente a devassar os limites burgueses do bem-estar e a passar de uma revolta metafísica aos alvores de uma revolução social.


    Pois a mim impressionaram-me sempre aqueles que cassandramente vêm profetizando a próxima eclosão das violências sociais no brando e resignado Portugal. Desde a chegada da primeira delegação troikista que se lê e ouve a mesma profecia. E dita não pelas agências internacionais, nem por uns quaisquer zés-ninguém, mas prevista por gente de inquestionável estatura intelectual e política.
       É facto que se têm visto pela televisão os tremendos movimentos insurrectos que correm esse mundo, Atenas, Madrid, Barcelona, Istambul, Brasil (upa, upa), Ucrânia...


E, sempre no respeito da ordenança ritual, esperou-se qualquer coisa do género por cá. Seria simbólico, lógico, normativo. Mas por cá, por enquanto, algumas manifs empolgantes e cordatas, sim, e devidamente enquadradas pelos poderes sindicais. No máximo, soube-se de pequenas escaramuças nos arrabaldes de S. Bento a correrem por fora dos eixos de uma Intersindical de horas marcadas, sempre atenta ao severo mandamento de que uma violência sem tensão revolucionária descambará facilmente em violência reaccionária.


        Mas talvez não seja erro notável dizer que as revoltas populares de Atenas, Madrid, Istambul e Brasil pouco, que se perceba, terão alterado a implacável ordem das coisas instituída nesses países.Os governos, e respectivos sistemas de actuação, como é evidente, estão, neste momento histórico, em perfeitíssimas condições de absorver sem pestanejar os protestos, ou mesmo de integrar esses protestos no seu próprio modo de funcionamento e na mesma implacável ordem das coisas.


    O sistema global da economia sempre percebeu muito da psicologia e dos dados motivacionais das massas. No nosso caso, percebeu muito do jogo dinâmico disputado entre a probabilidade de mobilização e o formidável impulso da desmobilização que palpita no mais íntimo do ser português. Daqui a própria dinâmica de revolta popular passar a fazer parte do arsenal auto-defensivo do governo financeiro global, no momento em que a violência popular poderia ser o elemento contrapontístico da correspondente violência de uma autoridade – neste caso económico-financeira. E isto assim a fingir que acreditamos que existe mesmo uma violência popular espontânea e desenquadrada e nunca por nunca arrebanhada e paga por gente muito estranha às massas populares de cada Estado.
    A eclosão de uma violência política e social na sociedade portuguesa, se determinada pela causalidade concreta que é a insuportável devastação das condições de vida de tanta gente, seria uma violência de claros objectivos e de límpidas motivações. Simplesmente, aquilo a que de actos violentos doravante se assiste na terra dos brandos costumes remete para uma violência meramente individual, passional, familiar. Ou uma violência pela violência, sem finalidades nem objectivos precisos ou relevantes – e muito menos políticos. Possivelmente a tal violência incompreensível segregada por uma sociedade metida à obsessão do bem-estar e da segurança.


     É corrente supormos que ao vivermos em sociedade de abundância os riscos de erupção das violências políticas e sociais estão afastados de nós, e visto que eles são inerentes à vida numa sociedade de penúria. Errado. Numa como noutra das sociedades as violências espreitam. Será talvez a sociedade da abundância a que tende a produzir mais episódios públicos violentos sem finalidade aparente, uma qualidade de violência, por assim dizer, diversa de uma violência política e economicamente objectivada, justamente a que se espera seja segregada pela sociedade de penúria.
     Sim, claro, a abundância acarreta a suas fundamentais contradições produtoras de violência. Ainda mais quando se vive numa sociedade dita da abundância e se descobrem nela as pegadas fundas e frescas da penúria, e quando se conclui que se viveu foi na sociedade da ilusão…
        Posso é perguntar-me cinicamente quem é que em Portugal pode ser a vanguarda de uma violência social a explodir um destes dias nas ruas.


        A Intersindical nunca. E bem. E nunca porque fidelíssima cumpridora dos rituais; e porque a tais violências de rua seguramente faltariam as tensões revolucionárias e logo as arruaças se transformariam em acções de violência reaccionária que em nada poderiam favorecer a justa luta dos trabalhadores. A Intersindical faz parte de uma ordem das coisas e assegura com escrúpulo o regular funcionamento dessa ordem, em funções protestativas toleráveis, a começar às seis e a acabar às dez, adstritas ao razoável e sem deslizes para a margem dessa ordem das coisas onde se integra a sua função institucional.


        Então, quem? Serão os estudantes a dar vigor à justa revolta popular – todos nos lembramos, como é óbvio, do Maio de 68. Mas por mim duvido. A menos que essa violência esteja já contida no outro ritual violento e gratuito que pode ser o das praxes académicas. E porque, ora adeus, estudantes com visão social e política eram aqueles grávidos de ideologia dos anos 60 e 70. Chão que deu uvas. 


     Talvez até porque os universitários de hoje em dia, com a democratização dos ensinos, já não sejam filhos de tão boas e abastadas famílias e não tenham quem lhes financie as rapaziadas ou as cavalarias altas da subversão, e por isso pensem primeiro que tudo em tirar o cursozinho de Economia e Gestão (ou de uma das muitas engenharias que agora há), e depois… ou Samsonite aviada para a Suíça ou para a Inglaterra (se ainda forem a tempo), ou chegarem-se ao sopé do conselho de  administração de uma empresa de topo, serem absorvidos pela ordem geral das coisas e curtirem a vidinha na sociedade da abundância.


        Será a classe operária a liderar a insurreição pública? Noutro tempo não lhe competiria menos do que isso. E hoje talvez continuasse a ter excelentes razões para o fazer. O que pode acontecer é a classe operária não ter já tanta consciência de si enquanto classe, em comparação com os outros tempos, e depois de operária a classe ter sonhado ser pequeno-burguesa e tratado de se integrar na ordem das coisas da sociedade da abundância, do bem-estar e da segurança.


      Então só podem ser os desempregados a agitar a bandeira da revolta popular.


        A questão é que grande parte dos não sei quantos milhares deles estão desesperados e nem por nada lhes passa pela cabeça agravar a situação em que já estão pegando em cocktails Molotov, dando por paus e por pedras, estilhaçando montras, invadindo S. Bento, insultando a reformada presidente lá daquilo, pilhando bancos, e o diabo a sete.
       Além dos desesperados, temos os de longa duração. E por de tão longa duração ser o calvário desse desemprego já eles esqueceram a condição de desempregados, quer dizer, já só são revoltados, potencialmente violentos, sim, mas canalizando as violências para outros territórios mais chegados, mais privados – bater na mulher; ou, se for caso disso, matá-la mesmo, alegadamente por ciúmes.


      Deixando os desempregados, e passando por alto os empregados, os profissionalmente activos que não têm tempo para revoltas e se limitam a cumprir os horários cada dia mais leoninos e a trabalhar nos dias santos que estavam habituados a guardar, restam os mais afectados pela tal conjuntura de crise e pelas medidas do governo: os velhos, os reformados.


      Quem havia de ser? Quem havia de dizer?


    Os mais velhos e os menos bem reformados, digo, porque ele reformados há muitos. Os menos bem reformados, no vigor dos seus 60, 70 ou 80 anos, teriam as mais fortes motivações para partir para o desacato público, para marchar contra a polícia de choque, para invadir o Parlamento armados de catanas, a darem também eles por paus e por pedras, a partirem tudo, a insultarem a colega reformada presidente lá daquilo.


Pois sim, a acontecer a profetizada violência civil derivada da conjuntura de crise só consigo ver na vanguarda dela os reformados, os pensionistas, os mais velhos, os mais mal reformados.


        Enfim, simplificando, a mais forte motivação para a violência pública será a fome. Quem, na conjuntura de crise, se arrisca a passar mais fome?


        Até apetece meter aqui a citação de um desusado Wladimir Ilitch Ulianov – mais conhecido pela alcunha de Lenine: a liberdade na sociedade capitalista é sensivelmente sempre como o foi na Grécia antiga, uma liberdade para os proprietários de escravos. E em consequência da exploração capitalista, os escravos assalariados de hoje vivem tão oprimidos pela necessidade que se desinteressaram da democracia e da política (…) e no decurso normal dos acontecimentos a maioria da população acha-se apartada da vida política.
Será a fome a levar os portugueses, por mais reconciliados com a ordem das coisas na sociedade da abundância, para a revolta social. Mas só se me esquecer dos records de levantamentos no multibanco batidos todos os anos pelos portugueses por alturas do Natal; só se me esquecer dos tantos que continuam a ir de férias (Natal, Carnaval, Páscoa, verão) para o Brasil e para as Caraíbas -  os destinos de férias da Páscoa já esgotados este ano (dos jornais); só se me esquecer dos portugueses da sociedade da abundância que continuam a ir todos os dias de carro para o trabalho e a engarrafar monstruosamente o trânsito das manhãs e do fim das tardes.


      Serão uma minoria estes que acabo de mencionar? Não sei. Estou em crer que sim. Mas a maioria, que é dela? Continua silenciosa, como sempre. Está em casa, recolhida, a pedir a todos os santinhos da corte do céu que o Estado, através do seu braço armado que é o governo, não exerça mais violência sobre eles.


      Quem tem exercido (e continuará a exercer) mais violência social no país da conjuntura de crise do que o Estado mesmo?

           

A violência social, bem se pode dizer, tem sido monopólio do Estado. E nem estou a ver no espectro sócio-institucional quem possa ter mais competência do que o Estado para cumprir as profecias da violência cívica – a pública e a privada.
        Ao cobrar impostos – e isto é dos mais velhos livros -, e sem ter de recorrer à força policial, a chanfalhos, cargas de água ou gases que fazem do mais teso dos revoltados um chato choramingas, o Estado exerce a sua fundamental violência sobre a sociedade. E mais violência, e mais brutal ainda, quando a infâmia fiscal se abate privilegiadamente sobre os mais velhos, os menos bem reformados e mais vulneráveis dos seus governados.
As contribuições de compulsiva solidariedade lançadas sobre os que evidentemente vivem da solidariedade social mais não são do que os chanfalhos, as cargas de água, os gases e as balas (por enquanto) de borracha.


Contribuição de solidariedade. Solidariedade em benefício de quem? Sem dúvida que em benefício dos detentores de cargos públicos e das respectivas e imutáveis mordomias. Sem dúvida que em benefício dos jovens introduzidos à pendura no aparelho de Estado para assegurarem as mais caninas lealdades ao seu partido. Sem dúvida que em benefício dos banqueiros. Sem dúvida que em benefício dos parasitários deputados, esses sim, os  grandes falsificadores da democracia que compõem as leis mais conformes aos seus interesses privados, que estão todos serenamente de acordo numa feliz unidade esquerda-direita quando aumentam os próprios salários e as próprias benesses, que acumulam a deputação com posições em escritórios de advocacia milionariamente pagos para fornecem pareceres ao governo…


Sim, senhores, é aos mais desprotegidos, nomeadamente aos reformados, que cabe o duro encargo moral de salvar o país da bancarrota para onde o atiraram aqueles em que temos alegremente votado de há 40 anos para cá. Cabe aos mais desprotegidos e carecidos de solidariedade solidarizarem-se com quem os tem enganado e contribuírem que nem uns heróis para o funcionamento da gigantesca máquina agressora que é o Estado.


E só não se poderiam considerar como violência (e porque não terrorismo?) de Estado as imposições de solidariedade aos mais pobres em benefício dos mais favorecidos se se reduzisse o conceito de violência pública a comoventes gases, a refrescantes cargas de água, a suaves cassetetadas e macios impactos de balas de borracha. Se toda a violência do Estado se resumisse a repressão física. Ou seja, a tudo aquilo que nos cardápios da violência da sociedade do bem-estar e da segurança passa a estar definitivamente ultrapassado, em comparação com a imposição da fome a uns para a fartura de outros.

 

Sim, sim, demagogia, pois, mas também coisas que irritariam um santo…
E nem é preciso ir buscar o Kropotkin para dizer que o Estado, de uma maneira ou de outra, é a forma política do privilégio, e que a existência dele assenta sobre a força – que já foi militarmente violenta, e que hoje lhe basta ser económico-financeira, embora nem por isso menos violenta; ou até pelo contrário, hoje muito mais eficaz.


Nem é preciso dizer anarquisticamente o que já se sabe e já se sente no corpo e no estômago: que o Estado é opressão organizada e moralmente legitimada para proveito de uma minoria de privilégio – minoria bem grandinha, vamos lá com Deus...


Poder-se-ia então concluir apressadamente nos tempos que por aqui correm pela efectiva realidade de um excesso de Estado em contra-mão das convicções liberais que nos dizem que o Estado intervém e protege por demais. Excesso de Estado, digo eu, não por aquilo em que ele intervém como regulação das vidas e dos mercados, mas por aquilo em que ele não intervém nessa mesma regulação, e numa dita conjuntura de crise.
Nada existe mais do que aquilo que não existe, como dizia o outro, e há entidades e instituições (tal como pessoas singulares ou mitologias) que se afirmam muito mais eficazmente pela ausência do que pela presença.


A faceta tendencialmente liberal e não-interventiva do Estado apático na economia favorece as injustiças, já se sabe, e criará uma constante virtualidade de desordem pública pelo escavar do que de crise social decorre da ausência do Estado em solidariedade e regulação.


Será questão de uma ponderação moral entre o lícito e o ilícito, considerando a matriz injusta e ilícita da violência pública indiscriminada. Mas pense-se na natureza injusta, moralmente ilícita e muito mais socialmente gravosa que o Estado impõe de penalização sobre os estratos menos favorecidos da população, premiando uma pequena parte dos seus cidadãos com a manutenção intocada de alevantados rendimentos, e condenando mais larga parte desses cidadãos à miséria e à fome pela sua posição de recuo enquanto moderador de ganâncias económicas.


A acontecer por estes reinos essa objectiva violência popular, os agentes dela estariam a tomar uma atitude moral. Mas o mais certo é não vir a acontecer, claro, porque na civilização da abundância, da segurança e da violência haverá sempre quem recuse a moral do confronto aberto e sadio e adira de corpo e alma à outra moral, a do compromisso. A bem da decrepitude democrática, é certo. A bem da resignação social e da perpetuação do estado das coisas, também é certo.




2 comentários:


  1. Tudo muito bem visto, sem dúvida...


    Mas uma coisa é certa: quanto mais de próximo se estuda a "árvore", menos de consegue aperceber a totalidade da "floresta"!

    ResponderEliminar
  2. Corrijo: "(...) menos se consegue", como é óbvio...

    ResponderEliminar