segunda-feira, 13 de outubro de 2014

PORNOMÁFIA



Uma família importante de mafiosos vai lançar-se numa nova iniciativa cinematográfica rendosa: a pornografia. E será a família Colombo. Houve quem chamasse à actividade cinematográfica no ramo da pornografia a “outra Hollywood”.
A Mafia sempre soube onde havia bom dinheiro para extorquir e boas oportunidades para investir – e vigarizar. Deviam ser os melhores consultores financeiros que uma firma normal e séria pudesse ter, mesmo para operar honestamente no mercado – o que depende, claro está, da ideia que se tenha sobre o que seja operar honestamente, ou moralmente, nos mercados.
Mas em 1970, a Mafia de Nova York percebeu que a indústria sem sombra de dúvida florescente no universo das oportunidades mediáticas era a pornografia. E começou a Mafia a produzir o seu material pornográfico: somente 5 minutos filmados nos peep shows existentes nas lojas de sexo de Times Square. E havia um realizador pornográfico a notabilizar-se, a quem chamavam já o Scorsese do porno, Gerald Damiano, ex-cabeleireiro de Queen’s, Nova York.
Damiano levava mais longe em significações a sua estética porno, ou seja, complexificava-a, fazendo-a transcender da carnalidade para os campos sagrados, povoando os filmes de iconografia católica. E um dia Damiano teve uma nova ideia para um dos filmes da sua lavra.
Damiano fora apresentado a uma actriz porno chamada Linda Lovelace, a qual, no seu trabalho, cultivava certa peculiaridade no estilo de pornografia, dada a amplitude da sua cavidade bucal. E Damiano pôs-se a escrever um guião que quadrava bem às características da Lovelace.
Era a história de uma mulher-aberração da natureza incapaz de atingir satisfação sexual por meios normais. Ou seja, os pontos mais fulgurantes do prazer dessa ordem por ela experimentado situavam-se à entrada do esófago.
Damiano expõe a ideia a um financiador.
Damiano tinha a sua própria casa produtora, a Gerald Damiano Film Productors, 2/3 do capital pertecentes a um certo Louis Butcher Peraino, cujo pai era membro da família Colombo.
De Louis Peraino não se podia dizer com propriedade que fosse um mafioso. Era um associado da organização, isso sim, mas prezava a respeitabilidade e tinha o sonho de se tornar um produtor cinematográfico reconhecido e respeitado no meio, o que era bizarro até para a opinião mafiosa, que estranhava muito um filho dilecto de mafioso importante querer ser cineasta. O gangster Anthony Peraino, várias vezes acusado e nunca condenado, tinha um filho que não matara ninguém, não roubara, não extorquira, nunca fizera mal nenhum. Um filho de mafioso com a paixão do cinema. Um filho de mafioso que queria levar a vida a fazer filmes. Isto, estando o avô e o pai implicados até às orelhas com alguns dos golpes mais duros do crime organizado.
De qualquer das maneiras, era opinião de alguns que desse ele as voltas que desse, por mais que andasse e fugisse, Louis, o filho de Anthony, não poderia escapar à marca de família e a esse destino.
Louis pede emprestados ao pai 20.000 dólares para fazer um filme. É o pai, Anthony, escoltado pelos seus homens de má catadura, quem acompanha a estrela do filme, Linda Lovelace, a Miami, onde o filme seria rodado em seis semanas. Pôe-se a questão do título.
Porque é que não lhe chamamos A Engolidora de Sabres? Não. Damiano, o realizador tem uma ideia melhor: Deep Throat – Garganta Funda.
Peraino pai não atinava com a Loveace para o papel, mas o manager da actriz (chamemos-lhes assim, manager e actriz) a ver o cachet de 1.200 dólares a voar, obriga Linda Lovelace a certas práticas sexuais quotidianas com o mafioso para não perder o papel. Lovelace acede, ainda que considere o gangster um tipo asqueroso, com uma grande cara e constantemente a gritar com alguém.
Linda Lovelace viria mais tarde a declarar que actuou naquele filme sob pressão, incluso sob ameaça de uma arma durante as sessões de rodagem. Quem viu o filme pôde apreciar numa ou noutra cena nódoas negras no corpo da actriz. Eu, não é por me querer armar em rapaz sériozinho, mas confesso que nunca vi o filme.
Mas comissões do Senado para investigar isto e aquilo na democracia dos EUA nunca faltaram. Não sei é se são como as comissões que investigam irregularidades na democracia de cá…
À comissão do Senado encarregada em 1986 de investigar os negócios da pornografia, Linda Lovelace virá a declarar:
- Quando vocês vêem o filme Garganta Funda não assistem a mais nada senão a um acto de violação. Acho criminoso que esse filme ainda ande por aí nos circuitos de exibição.
Desmentindo-a, o manager negará sempre que o filme Garganta Funda tenha sido financiado pela Mafia.
- Toda a gente fala da Mafia, mas o que dizem não passa de parvoíces. Eu fui director de produção de Garganta Funda e posso assegurar que não é um filme do Syndicate – disse o tal manager da Lovelace, que se chamava Traynor.
A estreia de Garganta Funda teve lugar em Nova York em Junho de 1972, no New World Theater da 49ª avenida. Acabava por ser um filme que respondia às solicitações do mercado, um mercado que reclamava mais e mais liberdade de expressão para os produtos mediáticos.
Em simultâneo com Garganta Funda eram estreados dois filmes de grande sucesso. De um deles não tenho ideia, mas o outro era Cabaret. E por sucesso que tenham tido estes dois filmes, digamos, convencionais, os dois juntos nâo chegaram aos calcanhares de Garganta Funda em termos de bilheteira.
E todo o Who’s Who do mundo do cinema correu a ver Garganta Funda. Sammy Davis chegou a alugar uma casa de espectáculos em Santa Monica, onde organizou projecções privadas para os amigos da comunidade de Hollywood. Dias depois, Louis Peraino apresenta Linda Lovelace a Sammy Davis e os dois começam um romance. Sendo porém que, bissexual como era, Davis também servia ao manager da actriz, o tal Traynor.
Sinatra –tinha que entrar – organizou também uma sessão privada de Garganta Funda na sua casa de Palm Springs e especialmente dedicada a alguém que não há muito fora vice-presidente dos EUA, Spiro Agnew.
Toda a melhor sociedade norte-americana, o beautiful people, pode dizer-se que se precipitou a ver o filme. Era um fenómeno daquilo a que o New Tork Times passaria a chamar de porno-chic. O Variety arriscou a especulação sociológica, escrevendo  que numa sessão de 5ª feira à tarde o público maioritário eram mulheres elegantes não acompanhadas, eram casais já maduros, e eram duas ou três matronas de cabelo grisalho.
Louis B. Mayer, outrora grande magnate da Metro, estabelecera uma medida infalível para o sucesso artístico de um filme.
O sucesso artístico de um filme só podia ser medido pela quantidade de dinheiro que ele fazia afluir ao box office. Segundo esse princípio, Hollywood teria de curvar-se perante o êxito de Garganta Funda. Resulta claro que os estúdios de Hollywood sempre haviam considerado o cinema essencialmente como um meio de ganhar dinheiro. Tudo o mais era acessório, inclusivé o potencial artístico que o filme pudesse conter.
Alguns acreditaram que depois de Garganta Funda, Hollywood não hesitaria em incluír cenas claramente pornográficas nos seus filmes mais convencionais. Constou mesmo que a Metro pensara contratar esse Damiano, o realizador de Garganta Funda. E foi-se ao ponto de dizer que o contratado Damiano estabeleceria com todo o rigor o número de cenas pornográficas que um filme seu deveria incluir e a ordem por que elas apareceriam. E também constou que foi Damiano que recusou esse contrato por não gostar de trabalhar por encomenda. Outros dirão que ele não aceitou por medo de abandonar aquele mundo marginal do porno em que se sentia tão bem.
E assim é que, dois anos após a estreia, Garganta Funda  ainda figurava no 11º lugar do box office.
Mas toda aquela gentinha envolvida no negócio de Garganta Funda tinha os telefones sob escuta, à ordem do FBI. E é assim que o FBI vem a saber pelo contabilista da família Peraino que na caixa mafiosa entravam todos os dias 150.000 dólares, e que os Peraino não sabiam o que fazer a tanto dinheiro. 
Quem teve ocasião de entrar nos escritórios da empresa dos mafiosos testemunhou a balbúrdia dos maços e maços de notas espalhados por todo o lado – eles só trabalhavam in cash  - e as largas somas a saírem, queres um Cadillac? Toma lá para um Cadillac… queres comprar um vison para a tua mulher? Toma lá para o vison… queres montar um negócio por tua conta? Quanto é que queres? Etc., etc.. Era só deitar a mão a um dos maços de notas que estavam por ali e que ninguém se dava sequer ao trabalho de contar. 
O dinheiro que entrava era avaliado ao peso. Entravam os maços de notas e eram pesados e pelo peso se lhes calculava o valor. Bastava.
As estimativas especializadas apontam para um lucro total de Garganta Funda na ordem dos 600 milhões. 600 milhões para um  investimento de 22.000 dólares. E desses 600 milhões, 127 milhões rendeu a exploração do filme na América do Norte e 86 milhões no resto do mundo. Faltam 385 milhões, que foram gerados pelo aluguer e venda do filme em cassetes vídeo (3 milhões de cópias vendidas).
E se no filme a garganta de Linda Lovelace era funda, mais funda ainda, no âmbito da Mafia, era a garganta da família Colombo, que absorvia metade dos lucros.
Mas também houve gente para afirmar que a realidade lucrativa de Garganta Funda ultrapassava de largo todos estes números…
A comercialização do filme não teve um distribuidor, um intermediário daqueles que se pudesse dizer regulares, oficiais, e o controlo das bilheteiras era feito por pessoal a mando da família Peraino, pessoal que em todas as sessões anotava uma por uma as cabeças dos espectadores e logo calculava a percentagem que lhe cabia, e logo corria à bilheteira com os seus sacos de couro a recolher o lucro de cada sessão. Foi uma esperteza saloia dos mafiosos, visto que esses controladores também vigarizavam sobre o número de espectadores nas contas que apresentavam ao produtor e também roubavam muito dinheiro.
O tal realizador Damiano tinha 1/3 do capital da sociedade que produziu Garganta Funda. Então, tocar-lhe-ia evidentemente 1/3 dos lucros. Mas quando Damiano vai ter com os Peraino para sacar a sua parte, é-lhe dito que receberá unicamente o cachet a que tem direito como realizador, 15.000 dólares.
- Melhor ainda, amigo, do que as duas pernas partidas se levantares cabelo.
E Damiano vendeu à família Peraino a sua parte nos lucros do filme pela ridicularia de 25.000 dólares. Os jornais sabem do caso e um repórter vai ter com Damiano.
- Então porque é que você aceitou um negócio desses?
- Não me diga que gostava de me ir visitar ao hospital estando eu com as duas pernas partidas.
Mas, bem vistas as coisas, a atitude dos mafiosos para com o seu realizador também não andava assim tão afastada, ao que leio, dos procedimentos correntes dos magnates de Hollywood. Pagavam ao realizador o seu cachet e estava feito. A menos que esse realizador tivesse talento e estatuto para negociar com eles à cabeça uma participação no box office.
A partir do fenómeno Garganta Funda as famílias mafiosas ficaram de antenas no ar. Perceberam muito depressa que melhor do que investir dinheiro no escuro da produção de um filme, que pode render ou pode não render, era piratear os filmes pornográficos com mais potencialidades comerciais. E a indústria do filme pornográfico abria-se à gula das famílias da Mafia. Iriam ganhar milhões sem investir um chavo.
   E rapidamente o dono de um cinema de Hartford (Connecticut) vai apresentar uma queixa de um cinema concorrente que estava projectar uma cópia pirata de certo filme pornográfico. E logo no dia seguinte é avisado de que ou se calava ou uma bomba poderia dar-lhe cabo do estabelecimento.
A santísisma e absolutíssima liberdade de mercado pode compreender situações tão democráticas e justas como estas. Ou como a daqueles dois irmãos de S. Francisco que produziram um filme pornográfico. Estando ele acabado, receberam a visita dos representantes da família Gambino, que queriam ver o filme distribuído pela sua sociedade sediada na Florida. As receitas seriam fifthy-fifthy. Foi-lhes explicado que o filme já andava em circulação nas salas. E os Gambino retorquiram: ou os irmãos franciscanos (de S. Francisco, Califórnia, claro) lhes passavam para a mão o original do filme, ou dentro de uma semana o mercado ficaria saturado de cópias piratas até ao ponto de já ninguém saber o que era original e genuíno e o que era cópia pirata. Os franciscanos, pronto, não cederam e como a Mafia não brinca em serviço, pronto, foi isso mesmo o que aconteceu. Cópias ilegais desse filme – que se chamava Atrás da Porta Verde – foram projectadas numa imensa quantidade de salas em toda a América e dessas projecções os irmãos de S. Francisco não viram um tusto.
Em 1974, um projeccionista suspeito de ter copiado um filme porno de grande sucesso, O Diabo em Miss Jones, foi encontrado morto no Ohio, dentro do próprio carro.
Dizem que Garganta Funda  foi o filme mais falsificado e pirateado da História do Cinema. Inclusivé a Mafia pirateava a sua própria pirataria. E até as campanhas de marketing  dos filmes pirateados eram copiadas das campanhas publicitárias pagas pelos produtores e distribuidores legais dos filmes.
O sucesso de Garganta Funda, no dizer da polícia de Los Angeles, levou muitas figuras de proa da Mafia de Nova York a instalarem-se na California. A família Colombo já em 1975 tinha quartel-general em Beverly Hills. Os Peraino, com base no muito dinheiro ganho em Garganta Funda, montaram em Hollywood uma sociedade de produção de filmes, digamos, normais, que ultrapassaria as próprias majors, a Bryanston Film Distributors – produção e distribuição de filmes. Dez longas metragens num primeiro ano de actividade era o alvo dos Peraino.  Toda a gente sabia que a Bryanston era governada por pessoal do crime organizado, mas Louis Peraino era tipo considerado na comunidade do cinema, nem que um qualquer particular soubesse que quando negociava com ele podia estar a negociar a própria vida em vez de um filme.
Da proveniência dos dinheiros da Bryanston quem é que queria saber? Ninguém. Nem os empregados. Mas se o histórico da Bryanston, ligado como estava à pornografia, não era coisa que encorajasse os produtores a associar aquele nome aos seus filmes, a saída seria descobrir um novo filão de especialização: os filmes de violência, ou de horror, ou, vá lá, de alguma ficção científica. Carne Para Frankenstein, por exemplo; ou os filmes de Bruce Lee, por exemplo, direitos comprados por um milhão de dolares, lucros de 30 milhões.
As autoridades sabiam de sobra que Hollywood  nunca perdera o sono a tentar saber de onde vinha o dinheiro que a financiava. E tal não era exclusivo da pornografia. Era assim naquela altura como sempre tinha sido: prática de todos os estúdios para todos os géneros de filmes.
Os do FBI bem tentaram investigar sobre a ligação de certos produtores ao crime organizado, mas nunca um único sector da indústria colaborou com as autoridades neste ponto. Uma verdadeira sociedade secreta. Qualquer investigação sobre o cinema era encarada pela indústria como uma ameaça ao regime há muito – desde sempre – instalado de ganhar muito dinheiro com um mínimo de investimento – como em qualquer negócio, vamos lá.
É num filme de horror da Bryanston, cujo título aportuguesado andaria perto de A Chuva do Diabo, que John Travolta faz a sua primeira aparição nos écrans. Uma outra película, Coonskin, financiada pela Paramount e produzida por Al Ruddy, ficou com a fama de ter sido oferecida pela Paramount como prova de reconhecimento à Mafia pela sua colaboração em O Padrinho.
No princípio do ano de 1976, a Bryanston estava no topo da lista das empresas suspeitas de serem controladas pela Mafia. Na primavera desse mesmo ano, Louis Peraino, o  pai, Anthony, e o irmão, Joseph, são presos por transporte de material pornográfico. Anthony saiu sob caução e fugiu para a Europa. Louis e Joseph Peraino foram julgados e condenados. Um ano de prisão e multa.
Mas a sociedade Bryanston tão vertiginosamente como apareceu, desapareceu de Beverly Hills. Devia milhões a fornecedores e 750.000 dólares ao fisco. Não falando já dos actores e realizadores que nunca chegaram a ver a cor do dinheiro que julgaram ter ganho a trabalhar para a Bryanston.
Os Peraino saem  da enxovia, tencionam voltar ao cinema, mas são de novo presos em 1980 por distribuição ilegal de filmes e posse de material pirateado, coisas como A Guerra das Estrelas, Kramer Contra Kramer, O Padrinho  1 e 2. E então, o mafioso que nunca fizera mal a ninguém apanha uma talhada de seis anos e vem a morrer de cancro em 1999.
Mas a voga da pornografia vê entrar os anos 80 já muito falha do impacto inicial. Parecia ter deixado de interessar às faixas etárias e sociológicas que a havia consumido. As feministas tinham feito uma campanha feroz contra a pornografia acusando-a de ultraje à condição feminina – e eu até ousaria perguntar, porque não também a condição masculina?
As declarações de Linda Lovelace quanto às condições em que participara em Garganta Funda, como atrás referi, também contaram para o descrédito do porno. E outra circunstância de peso: a vulgarização da vídeo-cassette pornográfica, a roubar margem de lucro: da centena de dolares que custava a cassette pornográfica, passou aos 4 dólares, pouco menos. E a Mafia abandonou o negócio.
Por fim, enquanto machadada indirecta no ramo do porno, foi o aparecimento e a vulgarização da SIDA que aterrorizou seriamente a indústria.
O filme que viria seguidamente a competir com Garganta Funda no galarim das vendas e dos lucros tinha quase tudo a ver com a entidade que mais lucrara com a pornografia, a Mafia. E esse filme foi chamado  O Padrinho.  Já falámos dele que chegasse.





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