quarta-feira, 9 de setembro de 2015


                            AXIOTHÉETON


Os homens crêem menos naquilo que ouvem do que naquilo que veem.
                               HERÓDOTO


                Quando em dias de hoje alguns de nós lamentam a decadência da oralidade e do pensamento em favor do espetáculo e da cultura do visível que tanto marcou e transformou, e até alienou, a vida humana pela televisão, pelos jogos de computador, e pensamos que tudo isso é obra dos tempos modernos, do dinheiro e dos deletérios progressos da tecnologia, talvez estejamos a ignorar o que nesse capítulo se passava nos memoráveis séculos gregos.
         Axiothèeton – o que é digno de ser visto, segundo a fórmula de Heródoto, campeão da visualidade do texto escrito.
 
 
         Visão e ouvido, os destinatários preferenciais dos poetas da oralidade helénica – apodeixis. Heródoto fazia a sua declaração de interesses, por assim dizer, tal como, na mesma linha, Homero a tinha feito. Descritivos ambos, a escrita deles visava a preservação memorial dos grandes acontecimentos, das notáveis personagens, dos grandes feitos dos homens através de uma técnica verbal que pudesse valer como um monumento visível.
Visibilidade. A moderna tecnologia não inventou nada de novo. A visibilidade é tudo o que importa na comunicação entre os homens.
 
                                                      
 
          A conservação memorial do passado, segundo teorizou Heródoto, deveria valer como documento visível tanto como experiência auditiva. A leitura e a declamação. A representação. Heitor, na Ilíada, interpela os chefes gregos:

Alguns dos homens futuros
Navegando o lívido mar em nave cheia de remos.
Eis o túmulo do herói que morreu outrora.
Matou-o – e era um valente – o glorioso Heitor.
Assim dirá alguém, e a minha fama não perecerá.
O monumento visível não fala. Precisa da voz de Heitor.
         Eu sou o túmulo, o monumento,
         Ou a taça daquele.

Os tempos futuros precisavam dos homens que dessem a ouvir a glória dos tempos passados, as histórias que haveria para contar, o discurso a quem os homens dessem ouvidos.
 
 
Klèos, a memória, o memorável, que depois de ouvido resiste à usura do tempo. Pior desgraça para um homem é morrer sem deixar história que o conte, que o mantenha vivo na lembrança dos vindouros, lá o dizia Homero.                                                      
Melhor seria se Odisseus (Ulisses) tivesse morrido em Tróia. Os Aqueus lhe teriam erguido um túmulo e a glória dele seria transmitida à descendência.
Grandes momentos havia marcados pelos sons mais retumbantes: o trovão de Zeus; o grito de Aquiles ao saber da morte de Patroclo, grito que até Tétis ouvira na profundeza dos mares.
 
                                                                    
 
Agamémnon conta o dia em que caiu assassinado às mãos da mulher, Klytemnestra, afirmando ter ouvido nas vascas da agonia a voz de Cassandra assassinada ao seu lado.
 
 
A memória sobrevive segundo o ouvido. Poesia épica e tragédia. O ouvir e o ver a representação das emoções mais fortes.     
 
 
Ver. Penélope reconhece Ulisses ao cabo de prolongado e subtil jogo de olhares. Ver. Príamo e Aquiles entreolham-se de surpresa na Ilíada: o corpo de Heitor deveria ser levado; Príamo não devia vê-lo.


E no angustiado coração ele deixara viver a ira.
Se à vista do filho, o ânimo se irasse
contra Aquiles e o matasse
e assim violasse a ordem de Zeus.

                                                                                               

         O rei está presente. A assembleia tem os olhos fitos nele quando administra sentenças justas (Hesíodo – Teogonia).
         E quando surge na assembleia olham-no e adoram-no como a um deus com uma reverência breve (Homero – Odisseia).
         A voz do rei é suave e convincente (para Hesíodo), e caminha entre a multidão de cidadãos e a visão desse caminhar encarna a ordem da cidade, e o ver e o ouvir caracterizam a sociedade da cultura oral, onde o olhar personifica os valores políticos e culturais.
 
 
         Na tragédia, a admiração gera-se quando o olhar identifica a relação do herói com a cidade, com a comunidade cultural, e quando, pelo olhar do espetador, perpassaram os cambiantes da dor, da perplexidade ou da compaixão.
         Porém, o mais emocionante espetáculo que pode ser dado a ver na cidade é o da guerra.
 
 
         Homero regista a afinidade entre o público anónimo da cidade e os deuses do Olimpo na contemplação dos espetáculo da guerra, quando os deuses observavam com toda a atenção o que se ia passando na planície de Tróia.
 
 
         É na guerra que a cidade se espetaculariza e encena o seu poder. Serve tanto para motivação interna como para demonstração de poderio perante os outros estados.
         O desfile dos exércitos, as armas que rebrilham ao sol helénico, os cavalos, os cães, os equipamentos, empolgam os cidadãos, reforçando-lhes a consciência do seu poder e dos recursos abundantes da cidade. É um meio de propaganda política.
Tucidides contou a excitação do pov0 quando do embarque da expedição à Sicília em 416 AC. A trágica parada de guerra era a parada da glória ateniense que convergia para um fatal destino.
 
 
Xerxes conduz os exércitos à batalha e uma vez lá chegado reserva-se um lugar de espetador dos combates. Nas Termópilas e em Salamina manda chamar à sua presença um secretário cuja função é a de anotar os nomes dos que cometem os mais sangrentos e heroicos feitos.
Mas o espetáculo não acrescenta lucidez nem às massas nem ao seu rei. O espetáculo é venda para os olhos do conhecimento, é cegueira sobre o verdadeiro sentido dos acontecimentos.
O regresso de tropas pode ser tão espetacular como a partida, e seja na vitória como na derrota. Voltam os desfiles de tropas, as armas refulgentes, os equipamentos, e mais as presas, e mais os prisioneiros que serão escravos no dia seguinte, e mais toda a sorte de despojos destinados à exibição num santuário para que todos possam ver. São levantados monumentos aos mortos. São conferidas publicamente honrarias aos valentes. São elevadas as mais belas e tocantes orações.
 
 
A oração fúnebre de Péricles no primeiro ano da guerra do Peloponeso é um espetáculo avassalador, quando os ossos dos guerreiros caídos são exposto numa tenda e depois levados em procissão até às portas da cidade e lançados numa vala comum.
Quando a cidade vive a sua derrota muda-se evidentemente o cariz do espetáculo, todavia sem que o sentido desse espetáculo deixe de prevalecer.
 
 
Tudo continuará teatralizado. O rei desfilará entre gemidos (Ésquilo – Os Persas) e rasgará as vestes esplêndidas, e todos os valentes desfilarão em silêncio, obscuros, votados ao esquecimento, esgueirando-se por ínvias vielas, fugindo dos olhares dos espetadores, mordidos pela má sorte.
 
 
Bem sabiam os gregos dos efeitos do espetáculo sobre as emoções da multidão. Um trágico chamado Frínico apresenta o seu drama A Conquista de Mileto. Os atenienses choram e enfurecem-se e propõem no areópago a aplicação ao autor de uma multa de mil dracmas. Razão: tinha avivado neles a memória de um sofrimento do seu próprio povo, os jónicos, e todo o teatro explodira em pranto. É o que conta Heródoto.
 
                                                              
 
Outro aspeto do axiothèeton, o concurso, a competição. Agòn foi palavra em primeiro uso equivalente para assembleia pública e depois para competição. Os gregos pelavam-se por jogos, despiques, concursos, e fossem eles de que tipo fossem. As próprias assembleias públicas não raro descambavam em competições oratórias.
 
 
Hesíodo competiu com um poema, a célebre Teogonia, num desses certames, e ganhou um prémio que o levou à escrita de Os Trabalhos e os Dias.
 
                                                                 
 
Platão referiu os concursos que entusiasmavam os espectadores, comédia, tragédia, música, ginástica, corridas, pugilato, recitações rapsódicas. Até as raparigas competiam entre si na poesia, e na ilha de Lesbos eram organizados desfiles de moda e concursos de beleza feminina.


        

 

 

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