sábado, 24 de outubro de 2015


         ALGO AMEAÇADORAMENTE ESTRANHO

                               O DUPLO

      O duplo. O espelho.
 
 
         Posso contar um episódio. Ia num comboio, estava sentado num compartimento com couchette, quando, na sequência de um violento solavanco do comboio, se abriu a porta da casa de banho contígua e um senhor de idade, em roupão e com um boné de viagem, entrou no meu compartimento. Supus que ao deixar a casa de banho, situada entre os dois compartimentos, se tinha enganado e entrado no meu compartimento; ergui-me, mas reconheci, perplexo, que o intruso era a minha própria imagem reflectida no espelho da porta de comunicação. Assim, em vez de nos assustarmos face ao nosso duplo, pura e simplesmente não o reconhecemos – escreveu Freud.
 
 
         Todos nós já vivemos experiências parecidas.
         Noutro episódio, um fulano assusta-se muito quando reconhece na cara de alguém que subia para um autocarro a sua própria cara, comentando “mas que mestre-escola com um ar tão miserável”. Uma reacção que Freud designa de arcaica: a visão do nosso duplo é sentida como algo de ameaçadoramente estranho.
 
 
         Se houve contista especialmente hábil na comunicação desse algo de ameaçadoramente estranho foi E.T.A. Hoffmann. E um dos elementos mais em evidência na criação deste efeito literário é a introdução na narrativa do duplo, personagens que pela aparência semelhante passam por idênticas e em que uma compartilha com a outra sentimentos, pensamentos e experiências, o que perturba o sentimento que se tem do próprio ego quando para o interior desse ego se desloca um ego alheio, com repetição de traços fisionómicos, de carácter, iguais desígnios de vida e inclusive actos criminosos. E assim no decorrer de gerações sucessivas.
 
 
         Um clássico das histórias fantásticas alemãs (não de Hoffmann, de Ewers) é a do Estudante de Praga, que vai para um duelo e promete à namorada não matar o antagonista. Porém, a caminho do local do duelo encontra o seu duplo, que acaba de matar o seu rival.
 
 
         Uma alma imortal pode ser o duplo de um corpo.
 
 
Toda a vida da criança é marcada por um narcisismo primário. Superada essa fase, aquilo que a noção de duplo anunciava modifica-se, o duplo torna-se ameaçador, promete a morte.
O sentido de algo de ameaçadoramente estranho relacionado com o duplo decorre da circunstância de este duplo ser uma construção própria da fase primitiva do psiquismo, uma fase ultrapassada. Mas o ego regressa à época em que ainda não se separar do mundo exterior, dos outros.
 
 
A sensação da existência de algo de ameaçadoramente estranho é o factor mais vulgar a concorrer para uma superstição, e uma das forças mais ameaçadoramente estranhas da superstição é o medo do “mau-olhado”. Quem é possuidor de uma coisa valiosa, e todavia perecível, receia a inveja alheia. Uma inveja que o sujeito projecta sobre outrem, na certeza de que sentiria essa inveja no caso de se inverterem os papéis. E essas são emoções que se podem revelar pelo olhar, independentemente de alguma expressão verbal. Tem-se medo da intenção oculta do outro em nos prejudicar, e para esse medo somente nos baseamos em breves indícios.
O espelho. O duplo.
 
 
O nosso duplo começa a viver pela nossa imagem reflectida no espelho, pela sombra que projectamos. Mais adiante aparecem os espíritos protectores, depois vêm as teorias da alma, e por último o terror da morte.
É de crer que emprestamos o carácter de algo ameaçadoramente estranho a essas impressões que pretendem confirmar a omnipotência do pensamento e a forma de pensar animista, ao mesmo tempo que já atingimos um estádio de pensamento que delas nos afasta. (Totem und Tabu).
Mas a mitologia do duplo servia originariamente de protecção contra a destruição do ego, um ”desmentido ao poder da morte”. Representações que decorrem de um ilimitado amor por si próprio, do tal narcisismo primitivo que ocupa inteiramente a psique da criança, como também dos povos mais primitivos. E se o duplo é um protector na fase primitiva, pode em seguida ultrapassar essa fase e tornar-se uma ameaça, um pregão de morte próxima.
 
 
O senso moral.
Se o narcisismo primário se esvai no correr da nossa vida psíquica, ocorrerá um instinto de autoanálise, ou de autocrítica, uma censura psíquica a que se pode chamar de senso moral.
 
 
Dado o caso de o sujeito ser capaz de uma auto-observação, a questão do duplo pode adquirir novos sentidos, sendo um deles a superação dessa fase primitiva do narcisismo.
O duplo pode ainda representar aas possibilidades não concretizadas de um destino, o que instiga no sujeito o forte desejo de realização das ambições do ego, das acções da vontade que vinham sendo reprimidas. Uma ilusão de livre-arbítrio.
 
 
Também os antigos deuses (Heine) no decair do prestígio das religiões se transmutaram em demónios.
 
 
Em certa tarde de verão, numa pequena cidade italiana, Freud resolve dar uma volta pelas ruas desconhecidas e desertas. Chega a uma praça e vê às janelas das pequenas casas um certo número de mulheres muito pintadas. Fica incomodado e imediatamente acelera o passo e vira a esquina mais próxima. Caminha mais um tempo sem destino e desemboca de súbito na mesma praça das mulheres muito pintadas – que então começam a atentar na figura dele. Afasta-se, caminha e caminha por mais algum tempo, dá voltas e voltas, e de novo se acha, pela terceira vez, na mesma praça. A sensação que experimenta, claro, é a de algo ameaçadoramente estranho.
O regresso não intencional ao mesmo ponto é outro dos assustadores indícios de que algo de ameaçadoramente estranho se está a passar.
 
 
É o factor da repetição involuntária que torna ameaçadoramente estranho o que ate então fora irrelevante, inofensivo, e nos segreda a ideia de que alguma coisa má, inevitável, está, ou estará, para acontecer.
 
 
        Outro aspecto da questão é o caso do homem que põe o sobretudo no vestiário do teatro, recebe uma chapa com um número – arbitrariamente, suponho eu, Freud optou pelo 62 – e vem a descobrir que o camarote que lhe foi indicado também tem o número 62. Mas o pior é quando ainda nesse dia, ou nos dias que imediatamente se seguem, o mesmo homem repara que tudo o que lhe é facultado e implica classificação numérica, porta de rua, carruagem de comboio, quarto de hotel, tem o número 62.
          Algo de ameaçadoramente estranho.
E depois há os que conferem um sentido oculto à repetição do número 62 – ou outro, evidentemente. Será um sinal que talvez se reporte ao tempo de vida que reste ao sujeito.
Também esse algo de ameaçadoramente estranho que é o regresso do que é semelhante tem ligação à vida psíquica infantil – é o que diz o Freud.
 
 
Compulsão à repetição. Pode ser manifestação intensa. Tão intensa que pode muito bem sobrepor-se ao soberano princípio do prazer. É o que pode acrescentar o carácter demoníaco a alguns lances da nossa vida psíquica. Manifesta-se nas aspirações da criança. Segundo Freud, domina a evolução da análise dos neuróticos.
 
 
Noutra história clínica, Freud fala do neurótico obsessivo que foi para umas termas e que nessas termas experimentou melhoras consideráveis. Para o neurótico, no entanto, não terá sido a força curativa da água das termas a responsável pelas melhoras. Terá sido, isso sim, a localização do quarto onde ficou, por acaso paredes meias com as instalações de uma apetecível enfermeira. Tanto que, quando voltou às mesmas termas, exigiu ficar no mesmo quarto. Impossível. O quarto estava ocupado por um cavalheiro de idade. Danado, o neurótico diz para o funcionário da recepção: “ah sim, pois Deus queira que esse cavalheiro de idade tenha uma apoplexia.”
Passadas duas semanas, o cavalheiro de idade tem uma apoplexia.
O neurótico tem conhecimento do caso e fica com a sensação de que algo ameaçadoramente estranho pairava no ar.
 
 
         Todos os neuróticos obsessivos analisados por Freud podiam com a maior das facilidades contar casos parecidos - algo de ameaçadoramente estranho, diria eu, para o próprio Freud.
         Também nenhum esses neuróticos obsessivos se surpreenderia ao encontrar na rua uma pessoa que há anos não viam e na qual tinham, por acaso, pensado nesse mesmo dia – já me aconteceu, e mais do que uma vez, de maneira que o meu diagnóstico deve estar feito: sou um neurótico obsessivo, não tenho saída.
         E á noite os neuróticos obsessivos comentam com a família os tantos anos passados sem terem notícias de certa pessoa, mas sempre esperando receber carta dessa pessoa na manhã seguinte. Algo de ameaçadoramente estranho.
 
 
         No geral, o que nos parece ameaçadoramente estranho é alguma coisa que se possa associar à morte. À morte, aos cadáveres, ao regresso dos mortos, aos espíritos, aos fantasmas. E porque o que reputamos de ameaçadoramente estranho o relacionamos com o que é assustador, um assustador que precisamente se oculta no que é ameaçadoramente estranho. Pensamentos e sentimentos nossos que se modificam muito pouco e do que preservámos do antigo ficou a nossa relação com a morte a sobrepujar tudo o resto.
         Á Biologia do tempo freudiano custava decidir se a morte era uma fatalidade necessária reservada a todos os seres vivos, ou se não passava muito de um acaso regular que fazia parte da vida – aliás, um acaso talvez evitável.
 
 
         Restam as religiões para contestar a inevitabilidade da morte individual, e por isso mesmo defendem o prolongamento de uma existência para lá do fim da vida.
         Para os ameaçadoramente estranhos poderes políticos a coisa fia mais fino, e muito sabiamente pensam que seria tragicamente impossível manter a ordem moral entre os vivos se deixassem de tentar melhorar a vida terrena com as promessas e expectativas de uma vida melhor no Além.

 
         O homem que sonha passa, enquanto sonha, por certo lugar e, sempre em sonhos, diz: “conheço este sítio; tenho a certeza de que já aqui estive”. Na interpretação de Freud é o conteúdo do sonho, a visão do lugar, a identificação, a reminiscência que substitui o lugar familiar e agradável onde se pensa que já se esteve pelo corpo da mãe, pelos órgãos genitais da mãe (onde efectivamente já se esteve). Porque o sentimento de algo de ameaçadoramente estranho também pode ser adquirido pela memória daquilo que em tempos foi familiar, foi acolhedor.
 


 

 

 

 

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