quarta-feira, 6 de julho de 2016


shakespeare 400 – chaplin

 


     Pela sua parte, Charlie Chaplin recusava-se a fingir que gostava do teatro de Shakespeare. Porque a maneira própria que ele, Chaplin, tinha de sentir andava mais ligada a temáticas da sua actualidade.
 
 
          E porque para representar Shakespeare eram indispensáveis específicas qualidades ostentatórias que ele não apreciava.
       Sempre que ouvia uma declamação shakespeariana só lhe dava a sensação de estar a ouvir uma conferência erudita.
 
 
       Que era belo, bem, admitia que sim, mesmo que não apreciasse especialmente. E também, como se disse, não gostava dos temas. Não gostava dos cortejos de reis, rainhas e de todas as augustas personagens e de toda a pompa que as acompanhava.
       Era uma posição que só poderia estar relacionada com a sua personagem mesma, Charlie Chaplin, e com o estracto social de onde provinha.
 
 
       No tempo em que eu procurava ganhar o meu pão com queijo de cada dia raramente me ocorriam peripécias relacionadas com a honra. Sou incapaz de me identificar com as preocupações de um príncipe.
 
 
E não o preocupava nem um bocadinho só se a mãe de Hamlet dormia com todos os homens da corte, nem se ralava nada com o desgosto do filho por causa disso.
 
 
       Uma vez, no meio de uma viagem em Inglaterra, parou em Stratford-on-Avon. Nunca lá tinha ido.       
      Chegou ao fim de uma tarde de sábado e foi dar uma volta depois do jantar, na esperança de dar com a casa de Shakespeare.
 
 
Vira numa rua à direita por puro instinto. Pára diante de uma casa. Acende um fósforo. Lê uma tabuleta. CASA DE SHAKESPEARE.
 
 
Quem o guiara até lá? Sem dúvida: o que chamava de espírito simpatizante. Eventualmente o espírito do próprio Bardo.
Na manhã seguinte, no hotel, é visitado pelo presidente da câmara e é acompanhado por ele que visita a casa de Shakespeare.
 
 
Não foi capaz de ligar Shakespeare com aquela casa. Impossível um espírito como o de Shakespeare ter podido viver ali, ter podido crescer ali. Impossível.
 
 
Não lhe custava nada pensar que o filho de um camponês emigrasse para Londres à procura de vida e se tornasse actor e dono de um teatro. Agora que se tornasse poeta e dramaturgo e conhecesse tão miudamente as cortes estrangeiras, os cardeais, os príncipes, isso não, não era concebível.
 
 
Não é que lhe importasse grandemente saber quem afinal tinha escrito as peças assinadas por William Shakespeare. Só lhe custava acreditar que tivesse sido aquele rapazito de Stratford.
 
 
Só um aristocrata poderia ter escrito obra de tal monta e complexidade. Fosse ele quem fosse. E até por aquele desprezo pela gramática: que só podia ser atributo de um espírito dotado. E principesco.
 
 
Chaplin visitou a casa, ouviu as histórias que se contava lá na terra, infância desregrada, maus resultados escolares, desvarios, opiniões rudes de campónio, e tudo isso mais lhe fortaleceu a convicção de inverosimilhança.
 
 
Por mais autodidacta, o moço não poderia ter sofrido uma metamorfose intelectual ao ponto de ficar para a História como o maior de todos os poetas.
 
 
E se até nas obras dos génios maiores as origens plebeias se revelam aqui ou ali, de uma maneira ou de outra, em Shakespeare das origens provincianas e humildes não há vestígio.
 
 
E de Stratford, Chaplin lá seguiu de automóvel para Manchester.
 
 

1 comentário:

  1. Há muitos anos, quando visitei Stratford, também tudo me pareceu demasiado encenado, uma história para visitantes e turistas (e já nesses anos 70 eram numerosos...)

    ResponderEliminar