O estranho caso da
carta do carro eléctrico.
Conta Jorge Morais no
seu livro Regicídio, a Contagem
Decrescente uma peripécia algo incrível.
Que o conde de Paçô Vieira tomou
um eléctrico e que ao chegar à Rua das Pedras Negras se sentou no lugar deixado
vago por um passageiro que saiu.
O passageiro saiu mas
deixou esquecido sobre o banco um jornal.
Jornal esse em que
Paçô Vieira pegou e de dentro do qual caiu uma carta. Carta
endereçada a Mr. Buiça, Colégio Moderno, Rua das Pedras Negras. O conde abre a
carta. Vem de Vila Viçosa. É assinada por Pad’Zé – o Dr. Alberto Costa,
conhecido boémio reviralhista, de quem falei no post passado.
E diz assim a carta: Querido amigo, Simão vai a Lisboa no dia 20
com o podengo mais novo. Se foi combinado o que sabes, mata-o tu que és bom
atirador. Que Lúcifer te proteja. Se não, espera pela entrada triunfal no dia
2.
(É preciso dizer que D. Carlos era chamado nos meios conspirativos o Caçador Simão.)
Alfredo Luis Costa
parece ter sido o chefe daquele grupo de comandos regicidas, o grupo dos 18.
Alfredo Costa tinha
escritório de representações na Rua dos Douradores. E tinha só 23 anos.
Aquilino conhecia-o de muito perto, descreveu-o no livro póstumo de memórias Um Escritor Confessa-se e pareceu-me
apropriado copiá-lo.
Alto, desengonçado de corpo, fisionomia séria, quase triste, grandes
olhos castanhos, lentos a mover-se, com uma fixidez que parecia de sonâmbulo e
era de atenção, um nada de barba loura no queixo, o nariz levemente amolgado
sobre a esquerda. Homem de uma só peça, crente até ao iluminismo interior, resoluto,
imediato, pronto a reagir, mesmo ofegante no que fazia.
Alfredo Costa não
tinha estudos especiais. Na versão de Aquilino educou-se como pôde. O republicanismo de que fazia alarde, Aquilino
julgava-o um caso de consciência, soberano
e despótico. E diz que não lhe faltava nada para carrasco ou herói. Ai de quem lhe manifestasse uma perplexidade. Ai
de quem lhe faltasse à palavra. Diz Aquilino que uma ruptura no dogmatismo a que submetia tudo sofria a condenação da
sua boca e o correctivo dos seus punhos.
E Aquilino conclui que na lógica moral da pessoa de Alfredo Costa
compreendia-se a vocação para conceber o
acto terrível. O Buiça era o braço direito do Costa. Tinha 32 anos.
Aquilino escreve largamente sobre ele também.
Tão despótico era nele o instinto da sociabilidade que não sabia
enxotar da sua beira indivíduos de má nota e malandrins garantidos.
De corpo era de estatura meã, rosto fino, tez branca, a que dava
realce a barba preta com tons de fogo. A testa era espaçosa com arcadas
supraciliares marcadas, sem demais. As linhas fisionómicas duma delicadeza que,
fora das mulheres, desagrada. Só os olhos, muito móveis e azuis, mas sem
crueza, traíam nele o ânimo expedito e a índole que, além de resoluta, era
exaltada.
Era extremoso pai de
família, o Buiça. No dizer de Aquilino galante,
franco, liberal, corajoso, blasonador, incoerente muitas vezes, parlapatão mais
de uma, sem equilíbrio na vida, sem disciplina moral. Viúvo. Aquilino não se esquece de informar de
que o homem mantinha uma relação com uma menina de Lisboa. Dois filhos, Elvira
e Manuel, sendo deste último o próprio Aquilino padrinho de baptismo.
E no dizer de Rocha
Martins o Buiça era homem de fácil, e também fugaz, irascibilidade. Fácil,
fugaz, mas capaz de tudo enquanto ela lhe durasse. Lá na terra chegara uma vez
a correr de pistola na mão atrás de um primo para o matar. Quando era sargento
de Cavalaria arriava forte e feio nos recrutas madraços que se baldavam aos
exercícios.
Havia nos seus movimentos, quando calmo, uma coquetterie sem pedantismo,
natural, confiando só em si, embebido do tipo do Suvarine do romance Germinal (de Zola), revolucionário descrente dos outros, sentindo-se o único homem de
acção. Tinha o seu quê de desordeiro, era admirador dos russos nihilistas,
temperado no soalheiro do café lisboeta.
Segundo alguns, o
atentado ao rei teria sido organizado nos seus últimos trâmites pouco antes de
3 da madrugada do próprio dia 1 de Fevereiro numa quinta ali aos Olivais,
segundo uns Quinta do Ché, segundo outros Quinta do Chéché; e sequentemente a
uma reunião conspirativa havida a 30 de Janeiro numa casa de Xabregas.
Do derradeiro
encontro conspirativo na dita Quinta do Ché, dá nota um dos participantes,
Fabrício de Lemos. Foi numa adega subterrânea.
Transcrevo
directamente, conforme o li no livro de Jorge Morais, que por seu turno cita o
texto de Fabrício de Lemos…
Uma mesa de pinho tosca e suja e alguns barris e mochos cosntituiam
todo o mobiliário. Espalhadas, algumas velas enterradas em gargalos de garrafas
vazias projectavam uma luz vacilante sobre as escuras paredes tristes e
lacrimosas da humidade.
Impressiona-me este
romantismo tardio e heróico nas prosas revolucionárias. Parece um atentado
concebido e consumado por encenadores de ópera. Ainda por cima, para reforçar
os dramatismos, diz Fabrício de Lemos textualmente que chovia a potes, e que os camaradas entraram pela porta estreita que
dava para a azinhaga.
Eramos 15 portugueses e 3 estrangeiros: um italiano, um francês e um
catalão. 18 homens ao todo. Decididos a levar a cabo o mais justo dos intentos,
embora perigoso e difícil. O Buiça é o primeiro a pedir a palavra.
Buiça concordava que
tirar a vida nem que fosse ao mais
celerado dos homens, seria, pelos mandamentos do seu próprio ideal,
desumano e injusto.
Embora a nossa causa seja toda bondade, justiça e perdão, não hesito
neste momento único na História do nosso desgraçado país, em vos pedir a morte
de todos os descendentes de uma dinastia de hipócritas e de cobardes que sobre
nós acarretaram todos os males e todas as vergonhas. Aqueles que não sejam da
minha opinião que se levantem.
Refere quem ouviu o
Buiça neste lance que a voz dele era profunda e convicta, que a fisionomia dele
era a de um apóstolo, e (sic) frouxamente
iluminado pela chama indecisa das velas.
E ninguém se levantou
contra a proposta do Buiça. Os braganças estavam a partir daquele momento,
condenados. A seguir falou o Costa.
Amanhã morrerão todos, embora à custa das nossas vidas. Sentimo-nos
felizes por poder dá-las pela nossa causa. E ouviu-se um apoiado retumbante. A morte dos
braganças estava votada à unanimidade.
Plano de acção: um
primeiro grupo de seis homens a esperar pelo rei no Terreiro do Paço. O Buiça
faz uma exigência: que esse grupo seja formado só por conjurados portugueses.
Porquê? Por ser o de maior perigo e o de maior glória. Os outros ficariam
emboscados junto à rampa de Santos e em Alcântara.
Escapados os reis do
primeiro fogo no Terreiro do Paço, cairiam seguramente em qualquer das outras
duas emboscadas. O que me parece uma conclusão demasiado apressada, fácil,
quase infantil. A partir do momento em que no Terreiro do
Paço soassem tiros contra a carruagem real as circunstâncias mudariam
imediatamente. E os itinerários seriam alterados, a guarda reforçada, todas as
precauções certamente tomadas
Na adega da Quinta do
Ché, de dentro de um barril, ultimadas as combinações, começaram a surdir
pistolas e carabinas dos últimos modelos a ser distribuídas por todos os
presentes.
Talvez seja
interessante e dramático prosseguir, indo atrás dos conspiradores (mais uma vez
com a devida vénia ao livro O Regicídio,
A Contagem Decrescente, de Jorge Morais).
Era madrugada quando
sairam da Quinta do Ché. Parara de chover. A azinhaga estava deserta. O Buiça, o
Costa e o Frabrício, sem trocarem palavra, põem-se a caminho de Sta. Apolónia.
Em Sta. Apolónia
tomam uma tipóia e chegam ao Terreiro do Paço. O Costa e o Fabrício convidam o
Buiça para cear qualquer coisa. O Buiça recusa. Despedem-se. O Buiça mete-se
pelas ruas da baixa.
Sabendo que ia morrer
no dia seguinte – o que deve ser sensação arrepiante -, o Buiça escolhe as
últimas acções da sua vida. Entra numa casa onde o aguarda uma pequena. Uma
pequena que o narrador desta cena caracteriza como uma burguesinha ansiosa e tímida.
Esse dia 1 de Fevereiro de 1908 calhou a um sábado.
E esse dia 1 de
Fevereiro de 1908 foi efectivamente o último dia da vida de pelo menos cinco
pessoas.
O professor Manuel
dos Reis Buiça sai de casa da amiga da baixa (a que chama Maria). São oito da
manhã. Vai ao Colégio das Pedras Negras e começa a dar as suas aulas.
A meio da manhã diz
ter que acompanhar um filho ao hospital. E vai mesmo a um hospital, o Hospital
Inglês, então situado na Rua do Alecrim, e onde alguém lhe fornece um varino –
um grande e largo capote.
Volta à casa de
Maria, pega na carabina que lhe tinham fornecido e mete-a debaixo do capote.
Nessa mesma manhã de
1 de Fevereiro de 1908, o caixeiro Alfredo Luis Costa vai ter com um fulano.
- Temos umas contas a
fazer - diz a esse fulano, segundo
conta Raúl Brandão. - Ó homem deixe lá as contas, não é pressa, vimos isso
depois.
Alfredo Costa ri-se.
- Depois… hoje vamos
matar o João Franco. Esperamos por ele na Alexandre Herculano. O Buiça leva a
espingarda e dá um tiro na orelha do cavalo, e eu atiro-me para dentro da
carruagem e mato-o como um bicho. E talvez até fosse melhor no Terreiro do
Paço, porque assim liquidavamos toda a cambada.
Na certeza de que não
passará do dia seguinte, Alfredo Costa procurará ainda outro amigo e
encarrega-lo-á de proteger uma sua irmã, seguro de que morrerá no dia seguinte.
- Ò homem, deixe-se
disso, você vai mas é almoçar comigo…
- Não, amigo, tenho a
certeza de que não escaparei.
Chega a ser tocante o
amadorismo romântico-exibicionista destes tenebrosos conspiradores que contam
aos amigos os atentados régios que tencionam praticar como se fosse a coisa
mais natural desta vida.
Mas, pelo que sabemos hoje, talvez não se tratasse
bem de amadorismo este exibir de intenções criminosas ao desbarato. Talvez
fosse exactamente para chamar as atenções sobre indivíduos da arraia miúda,
desconhecidos dos meios políticos, uns malucos, uns estabanados a quem um belo
dia deu na cabeça matar um rei e um primeiro ministro. E isto por forma a
manter encobertos os notáveis, os mandantes.
Ao fim da manhã do
dia 1 de Fevereiro, os cinco operacionais destacados na reunião da Quinta do
Ché vão Avenida acima fazer uma espera a João Franco logo à saída de casa.
Chegam à casa de João
Franco e não vêem a carruagem e percebem que o ditador já saíu e que mais uma
vez trocara as voltas aos conspiradores. Tocante ingenuidade a destes
conspiradores. Aliás, a acreditar em Raúl Brandão, um desses operacionais
ter-se-á queixado do desleixo do Manuel Buiça na operação. O Buiça ter-se-ia
descuidado com as horas e chegado tarde ao atentado. Bem português, vamos
lá...
O cóio principal dos
mais assanhados conspiradores de 1908 era o Café
Gelo – que ainda hoje existe, completamente desfigurado, já se vê, em
relação ao tempo de que falo, e até ao tempo em que foi ponto de encontro de
surrealistas, e até ao tempo em que eu próprio, de vez em quando, lá parava.
Tanto Buiça como
Costa vão almoçar juntos – outra imprudência gritante, e suspeita, só lhes
faltava andar com um cartaz a anunciar o que iriam fazer.
Almoçam juntos numa
sala das traseiras do Café Gelo.
Comem umas omeletas e bebem cerveja. E o Buiça escreve uma carta. Maria, escrevo-lhe horas antes de uma morte
inevitável…
A minha querida Maria tinha, sem saber, uma poderosa rival – a
pàtria – pela qual me sacrifico consciente de cumprir um dever. Vou morrer
matando – ironia curiosa para muitos, talvez incompreensível e portanto
condenável. O tempo porém tudo explica e cura, razão porque algum dia serei
compreendido. Morte dolorosa me espera, certamente, mas o amor que voto à minha
causa e a sua querida recordação me darão sobejas forças. Um último adeus e
perdão. Manuel.
Estranha e trágica
moral de certas pessoas: serem os paus-mandados para actos extremos a mando de
outros, convencidos de estarem a sacrificar-se, como diz o Buiça, por uma
causa, pela sua moral pessoal, quando na verdade, a coberto da luta pela sua
causa, mais não fazem do que servir interesses que lhes são estranhos, que
talvez sejam mesmo baixos, ou imorais. E tudo isso ao ponto de sacrificarem a
vida.
Os tempos eram
outros, sem dúvida. E muito mais trágicos.
No Café Gelo, nas
últimas disposições, o Costa teimará com o Buiça. Não quer que ele se meta
activamente na refrega.
- Não, você é melhor não, porque tem filhos.
Mas o Buiça não se demoveu,
e lá mandaram vir mais uma rodada de cerveja.
Falhado o primeiro
objectivo, vão atacar o segundo. Vai para as quatro da tarde. Manuel Buiça e
Alfredo Luis Costa descem a Rua do Ouro.
A muitos quilómetros
da Rua do Ouro, numa taberna das proximidades da cidade da Guarda, dois criados
de José Alpoim param o carro onde viajam para tomar um copo. Tinham ido levar o
patrão a Espanha, fugido, e regressavam. Vêem as horas. Quatro da tarde.
Talvez já tocados
pelos copos dizem alto e bom som:
- A estas horas,
amigos, já não há rei em Portugal. A estas horas já o rei deve estar morto.
Porque, de facto, a
essas horas, já a família real deveria ter chegado ao Terreiro do Paço.
Às quatro da tarde,
Manuel Buiça e Alfredo Costa já estão no Terreiro do Paço.
O Costa desaparece
entre as arcadas ocidentais e o Buiça fica ao pé do quiosque a conversar com o
amigo conspirador Fabrício de Lemos. Um bufo da polícia, chega-se a ele, que é
alto, tem umas barbas pretas compridas, enverga um capote enorme, é uma figura
ameaçadora, que dá nas vistas.
- Que é que você está
aqui a fazer?
O Buiça sorri ao
polícia à paisana. E responde-lhe suavemente:
- O mesmo que o amigo
faz… desejo ver passar o nosso rei e saudá-lo como merece…
Em reunião secreta
num hotel parisiense, entre políticos portugueses e revolucionários franceses,
se deliberara o assassínio de João
Franco, sem dúvida, e também o do rei, dependendo das circunstâncias mais ou
menos favoráveis. Esse encontro deve ter contado com os auspícios do movimento
anarquista internacional, activíssimo nessa época por toda a Europa. É neste
contexto anarquista que o ministro português em Paris informa Lisboa
de um provável atentado.
Manuel dos Reis da
Silva Buíça, viúvo, residente em Vinhais, distrito de Bragança…
O testamento do Buíça fora redigido, admissivelmente na sequência
dos acontecimentos revolucionários do dia, logo a 28 de Janeiro de 1908, e
reconhecido por tabelião.
Ficaram-me de minha
mulher dois filhos, a saber, Elvira, que nasceu a 19 de Dezembro de 1900, na Rua
de Santa Marta, e que ainda não está baptizada nem registada civilmente, e
Manuel, que nasceu a 12 de Dezembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria. Ambos
vivem comigo e com a avó materna nas Escadinhas da Mouraria, 4, 4º andar
esquerdo…
Minha família vive em
Vinhais, para onde se deve participar a minha morte ou o meu desaparecimento,
caso se dêem…
Meus filhos ficam pobríssimos; não tenho nada
que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que sofrem…
Peço eduquem os meus
filhos nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade que eu comungo e
por causa dos quais ficarão, porventura, em breve, órfãos…
Um dia destes estaremos no Terreiro do Paço por volta das cinco e
meia da tarde.
Amadorismo e uma certa ingenuidade, bem ao nosso estilo. Texto bem interessante...Obrigada, caro amigo.
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