domingo, 28 de junho de 2020


           PEQUENO ENSAIO SOBRE OS TRAPOS

 

        Não é mau começar por uma citação. Esta. Malraux: aquilo que pesa sobre mim é a minha condição de homem, o facto de envelhecer, de ter uma coisa atroz que é o tempo e que se desenvolve em mim como um cancro, irrevogavelmente.

       E já agora, porque não…T.S.Eliot:

       Para mim tudo era igual e desejável.

       A ambição chega ao findar das forças juvenis.

       Quando sabemos não mais tudo possível.



       Lembro-me muito dos meus avós. Figuras. Personagens inquestionáveis da minha vida de criança e de adolescente. Velhos. E agora posso procurar cá dentro algum vestígio do que pensava quando os via. Nada. Velhos, claro – ou talvez não tão velhos, mas julgados tal pelos meus limitados critérios infanto-juvenis. Figuras que se engastavam nos meus cenários de vida. Velhos porque sim: era o papel deles na minha vida, serem velhos e pedagógicos, com o destino velho deles para cumprir; como eu tinha o meu destino infanto-juvenil, esperançoso; velhos como se sempre o tivessem sido, inexoravelmente, como se tivessem nascido assim naquele cenário caseiro de quatro paredes; ou contratados para desempenhar o único papel que lhes fora distribuído por algum obscuro realizador das vidas, e sem imaginar eu como poderiam eles ter sido, e parecido, em novos. Porque para mim eles nunca tinham sido novos; porque as fotografias que havia lá por casa os apresentavam já envelhecidos, posto que sorridentes, à vista desarmada contentes com a própria condição.

       E sinto-o como um estranho fenómeno, esse, chegar à velhice num implacável assalto ao passado, experiências, afectos, desafectos, tantas dessas banalidades que nos assolam e revivem em nós, e o nosso presente envelhecido vai pouco a pouco deixando de ser concreto e objectivo, porque a todo o momento persiste em instalar-se nos quadros do passado. Um passado que se recobre de presente.



       A residência no passado? Será melhor, na velhice, pretender continuar na vida em memória do que permanecer em realidade? É capaz.

       E os pobres dos criativos? Deve ser desolador quando alguém, que em tempos foi bafejado com certos pendores criativos, se vê, no tempo crepuscular, privado deles, por mais que teime em forçar o desgastado cérebro. Ou talvez não seja exactamente ausência de criatividade; talvez seja preguiça, lentidão de reflexos; talvez seja falta de paciência; ou falta daquela paciência inevitavelmente necessária para convocar esses dons, essas criatividades de outrora – esse fulgor cerebral. Ou ainda, talvez, visto de outra maneira: a falta de disponibilidade interior, ora bolas, a quem é que aos 70 anos pode interessar a minha criatividade? Falta de disponibilidade (paciência) para pensar, sim, e porque na convicção íntima de que passadas as idades todo o pensamento é inútil. Oh, o divino aborrecimento das coisas!

       E assim podem ir envelhecendo mal os que não têm suficiente imaginação para envelhecer bem – envelhecer bem, como é isso, o que é isso?



       E agora lembrei-me dos donjuans das idades mais propícias, os galãs enfatuados do antigo tempo em que os homens gostavam mais de mulheres do que de muitas outras coisas. Para muitos dos que foram donjuans aos 20 ou 30 anos não deve ter havido maturidade. Da juventude à velhice deve ter sido um pulo vertiginoso. O donjuanismo, por outro lado, pode ter-lhes prolongado a juventude, leia-se a imaturidade, até a um estado vizinho do gágá. E por aí tais donjuans recusar-se-iam admitir qualquer estatuto intermédio, qualquer linha de demarcação; ou sim, qualquer limite.

       Um pensamento também para os que juram apés juntos que a velhice tem os seus prazeres. Bem entendido, nada a ver com os prazeres da juventude, ou até mesmo com os da idade madura. Quais prazeres, então? Não sei.

       Vazio, vazio, vazio…



       E se se estipula que o Homem (género humano, já se percebe) vive num estado de escravo das paixões, nada de melhor do que ver-se, naturalmente, livre dessa submissão passional. Nada de melhor? Não sei. Se calhar, o contrário, nada de pior. Pode muito bem ser que o pior da velhice, feitas bem as contas, seja mesmo essa dorida nostalgia de uma servidão passional, da disposição ansiosa para as paixões da vida, excitar-se, embebedar-se, jogar, correr, competir, seduzir. E sendo também preciso ver que se a vida jovem e activa de uma pessoa foi vivida em condições de narcisismo intenso, de ignorância, de idiotia e futilidade, ah, essa pessoa vai ter uma velhice nesses mesmos preparos, abrilhantados, de quando em vez, por uns toques de ridículo social.

       Alguém, não me lembro agora quem, um francês, parece-me, escreveu que quem em certa idade não tenha o espírito da idade que tem viverá todas as infelicidades inerentes a essa mesma idade que tem.



       Lembro-me outra vez do drama dos donjuans. E o drama é que um velho dom juan nunca, ou raramente, se apaixona de caixão à cova por uma velha da idade dele. Não, não. Apaixona-se (e em geral assim mesmo: de caixão à cova) por uma mulher 30 ou 40 anos mais nova. E assim abre as vias que o podem levar aos cumes da infelicidade. E com consequências tantas vezes trágicas – lembro-me de Lolita. Esse velho dom juan não percebeu nada do processo. Ou não quis. Ou se recusou terminantemente a perceber. Viveu estúpido, e envelheceu não menos estúpido.

       Para a mulher (inteligente, de preferência) os destinos podem ser mais generosos. Disse-o Simone de Beauvoir: detesto a ideia de mulheres velhas, com corpos envelhecidos, a agarrarem-se ao amor.

       Se o que é preciso é envelhecer bem, pode ser que envelhecer bem seja mesmo isso de regressar docemente à infância – à memória dela, claro está.

       Lembro-me de um emérito e cultíssimo frequentador das longas e ociosas tardes da Brasileira dos meus vinte e tal anos, a dizer aos companheiros de mesa na casa dos 50 “eu estou melhor de vida do que vocês, vocês estão a envelhecer e eu não, eu já sou velho”.

       Envelhecer é (também é, ou essencialmente é) uma perda de confiança no nosso corpo. E a perda de confiança no corpo começa pela dor, significa dor – a tal idade do condor.



       Fujo horripilado dos velhos demasiado gentis que se pelam por engraxar os jovens. Os que dizem que o corpo já lhes vai com 70 anos mas que na cabeça (o famoso espirito) ainda conservam o ímpeto dos 18. Vejo por mim: aos 70, para conservar a minha cabeça com os 18 destes tempos teria que me entusiasmar com umas poucas de coisas que detesto, a obsessão do telemóvel, a música da pesada, o humor televisivo a que poucas vezes consigo achar piada, o torrencial cortejo da parolice e do analfabetismo nacional que são os big brother, ou o quem quer namorar com o agricultor; a dependência das novas tecnologias; o andar de carapuço na cabeça; deixar-me agarrar pelo “cavalo”; frequentar o facebook, o twiter, o instagram; combinar encontros com outros às tantas da madrugada para andarmos à porrada. E mais sei lá o quê. Não poderia ter na minha cabeça ímpetos de 18 anos e conformar-me a estar em casa confinado, de pantufas, a ver a vida dos outros e a sair de casa para as consultas, radiografias, análises...

       E dou comigo a pensar que a real indignidade da velhice jovem de espírito pode residir nessa atitude de gostar de fazer dos outros parvos e cegos, o velho que se pretende manter tão jovem (de espirito) como os mais jovens.

Montaigne: por mais decrépito que um homem seja ainda acredita estar a viver uns outros vinte anos. Que Deus me guarde de tal crença.

A missão existencial de um velho: fazer passar as horas; em vez de as reter.

Era Goethe quem achava justo sobreviver à morte só para poder realizar por completo todas as facetas de si que não tivera tempo de desenvolver em vida. Outro relapso e irritante narcísico. 

O velho Somerset Maugham, por seu turno, garante que um amigo próximo de T. E. Lawrence, o celebérrimo Lawrence da Arábia, lhe contou que Lawrence tinha o hábito de guiar a sua moto em excesso de velocidade. Procurava um acidente. Porquê procurar um acidente? É bom não esquecer que o destino lhe fez a vontade e que Lawrence teve o seu acidente e morreu dele com menos de 40 anos. Um estúpido acidente de moto depois de tantos perigos e provações passadas no deserto com os exércitos árabes do príncipe Faisal. E era exactamente o que ele queria, um acidente, e porque só um acidente lhe poderia tirar a vida quando ainda fosse senhor de todas as faculdades físicas e mentais, poupando-o ao que ele próprio chamava da dita indignidade da velhice.



Diz-se que quem nos impõe a chamada indignidade da velhice é a nossa crise da meia-idade. Só mais tarde reparamos (alguns reparam) que essa crise tem que ser interpretada como uma espécie de realinhamento de valores e sensações. A espécie de realinhamento que faria a ponte para uma nova opinião pessoal a respeito da morte – opinião que em boa parte concorre para a dita crise.

E quando é que teremos a mais aperfeiçoada noção do nosso próprio fim, a melhor opinião sobre a nossa morte? Há quem diga que é na adolescência. Uns zunzuns vagos. Noção a confirmar na meia-idade. Na crise, ora aí está. Causa ou efeito da crise já não sei dizer. As duas coisas. Porque a juventude como quem não quer a coisa se foi e levou com ela a desaustinada noção primeira, a da nossa imortalidade - inviolável.

Há quem porfie em resistir às indignidades físicas, pelo ioga, pelo ginásio, pelos anti-inflamatórios, pelos anti-histamínicos, pelos antibióticos, pela psicanálise, pelos antidepressivos, pela cosmética. Desafiar ousadamente as inevitabilidades e dessas inevitabilidades a do fim último e supremo.

Não seria desengraçado reflectir na duração das idades. Juventude: pode durar 15 anos, talvez dos 20 aos 35. Idade madura: uns 15 anos, dos 35 aos 50, vamos lá. E segue-se a mais longa, a mais penosa das idades, a velhice. Com os avanços da ciência pode chegar a durar 50 anos; ou 40, vá lá 30. Porém vivida com intensidades negativas, cinzentíssimas, dramáticas. Porque nos vai aproximando da sombra final.



Sacha Guitry costumava dizer umas coisas reinadias. As parecenças. Eu, aos sessenta, não me pareço comigo aos trinta. Como um fato, o meu físico não me fica muito bem.

O sentimento de fatalidade, de redução de destino, pode ser um estado muito doloroso aí por volta já dos sessentas. Ouve-se a voz espectral, tão impreterível, tão burocrática, a falar-nos sem contemplações ou compaixão: agora, meu menino, vais ser isto e não aquilo que pensavas ainda poder ser; tudo o que não conseguiste até à data não julgues que o vais conseguir a partir de agora; as esperanças que acalentaste… ai, filho, essas já há muito te ficaram para trás.     

1 comentário:

  1. Que reflexão maravilhosa sobre a tragédia do envelhecimento...É uma aprendizagem longa e dura, sobretudo quando não conseguimos (embora, por vezes, para "aliviar" até queiramos) alinhar pelo diapasão da maioria. Obrigada, querido Joel, lê-lo ainda é um prazer infinito.

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