PEQUENO ENSAIO SOBRE
OS TRAPOS
Não é mau começar por
uma citação. Esta. Malraux: aquilo que
pesa sobre mim é a minha condição de homem, o facto de envelhecer, de ter uma
coisa atroz que é o tempo e que se desenvolve em mim como um cancro, irrevogavelmente.
E já agora, porque não…T.S.Eliot:
Para mim tudo era igual e desejável.
A ambição chega ao findar das forças
juvenis.
Quando sabemos não mais tudo possível.
Lembro-me muito dos meus avós. Figuras.
Personagens inquestionáveis da minha vida de criança e de adolescente. Velhos.
E agora posso procurar cá dentro algum vestígio do que pensava quando os via.
Nada. Velhos, claro – ou talvez não tão velhos, mas julgados tal pelos meus
limitados critérios infanto-juvenis. Figuras que se engastavam nos meus
cenários de vida. Velhos porque sim: era o papel deles na minha vida, serem
velhos e pedagógicos, com o destino velho deles para cumprir; como eu tinha o
meu destino infanto-juvenil, esperançoso; velhos como se sempre o tivessem
sido, inexoravelmente, como se tivessem nascido assim naquele cenário caseiro
de quatro paredes; ou contratados para desempenhar o único papel que lhes fora
distribuído por algum obscuro realizador das vidas, e sem imaginar eu como
poderiam eles ter sido, e parecido, em novos. Porque para mim eles nunca tinham
sido novos; porque as fotografias que havia lá por casa os apresentavam já
envelhecidos, posto que sorridentes, à vista desarmada contentes com a própria
condição.
E
sinto-o como um estranho fenómeno, esse, chegar à velhice num implacável
assalto ao passado, experiências, afectos, desafectos, tantas dessas
banalidades que nos assolam e revivem em nós, e o nosso presente envelhecido
vai pouco a pouco deixando de ser concreto e objectivo, porque a todo o momento
persiste em instalar-se nos quadros do passado. Um passado que se recobre de
presente.
A
residência no passado? Será melhor, na velhice, pretender continuar na vida em
memória do que permanecer em realidade? É capaz.
E
os pobres dos criativos? Deve ser desolador quando alguém, que em tempos foi
bafejado com certos pendores criativos, se vê, no tempo crepuscular, privado
deles, por mais que teime em forçar o desgastado cérebro. Ou talvez não seja
exactamente ausência de criatividade; talvez seja preguiça, lentidão de
reflexos; talvez seja falta de paciência; ou falta daquela paciência
inevitavelmente necessária para convocar esses dons, essas criatividades de
outrora – esse fulgor cerebral. Ou ainda, talvez, visto de outra maneira: a
falta de disponibilidade interior, ora bolas, a quem é que aos 70 anos pode
interessar a minha criatividade? Falta de disponibilidade (paciência) para
pensar, sim, e porque na convicção íntima de que passadas as idades todo o
pensamento é inútil. Oh, o divino aborrecimento das coisas!
E
assim podem ir envelhecendo mal os que não têm suficiente imaginação para
envelhecer bem – envelhecer bem, como é isso, o que é isso?
E
agora lembrei-me dos donjuans das idades mais propícias, os galãs enfatuados do
antigo tempo em que os homens gostavam mais de mulheres do que de muitas outras
coisas. Para muitos dos que foram donjuans aos 20 ou 30 anos não deve ter
havido maturidade. Da juventude à velhice deve ter sido um pulo vertiginoso. O
donjuanismo, por outro lado, pode ter-lhes prolongado a juventude, leia-se a
imaturidade, até a um estado vizinho do gágá. E por aí tais donjuans
recusar-se-iam admitir qualquer estatuto intermédio, qualquer linha de
demarcação; ou sim, qualquer limite.
Um
pensamento também para os que juram apés juntos que a velhice tem os seus
prazeres. Bem entendido, nada a ver com os prazeres da juventude, ou até mesmo
com os da idade madura. Quais prazeres, então? Não sei.
Vazio,
vazio, vazio…
E
se se estipula que o Homem (género humano, já se percebe) vive num estado de
escravo das paixões, nada de melhor do que ver-se, naturalmente, livre dessa
submissão passional. Nada de melhor? Não sei. Se calhar, o contrário, nada de
pior. Pode muito bem ser que o pior da velhice, feitas bem as contas, seja
mesmo essa dorida nostalgia de uma servidão passional, da disposição ansiosa
para as paixões da vida, excitar-se, embebedar-se, jogar, correr, competir,
seduzir. E sendo também preciso ver que se a vida jovem e activa de uma pessoa
foi vivida em condições de narcisismo intenso, de ignorância, de idiotia e
futilidade, ah, essa pessoa vai ter uma velhice nesses mesmos preparos,
abrilhantados, de quando em vez, por uns toques de ridículo social.
Alguém,
não me lembro agora quem, um francês, parece-me, escreveu que quem em certa idade
não tenha o espírito da idade que tem viverá todas as infelicidades inerentes a
essa mesma idade que tem.
Lembro-me
outra vez do drama dos donjuans. E o drama é que um velho dom juan nunca, ou
raramente, se apaixona de caixão à cova por uma velha da idade dele. Não, não.
Apaixona-se (e em geral assim mesmo: de caixão à cova) por uma mulher 30 ou 40
anos mais nova. E assim abre as vias que o podem levar aos cumes da
infelicidade. E com consequências tantas vezes trágicas – lembro-me de Lolita. Esse velho dom juan não
percebeu nada do processo. Ou não quis. Ou se recusou terminantemente a
perceber. Viveu estúpido, e envelheceu não menos estúpido.
Para
a mulher (inteligente, de preferência) os destinos podem ser mais generosos.
Disse-o Simone de Beauvoir: detesto a
ideia de mulheres velhas, com corpos envelhecidos, a agarrarem-se ao amor.
Se o que é preciso é envelhecer bem, pode ser
que envelhecer bem seja mesmo isso de regressar docemente à infância – à
memória dela, claro está.
Lembro-me
de um emérito e cultíssimo frequentador das longas e ociosas tardes da Brasileira dos meus vinte e tal anos, a
dizer aos companheiros de mesa na casa dos 50 “eu estou melhor de vida do que
vocês, vocês estão a envelhecer e eu não, eu já sou velho”.
Envelhecer
é (também é, ou essencialmente é) uma perda de confiança no nosso corpo. E a perda
de confiança no corpo começa pela dor, significa dor – a tal idade do condor.
Fujo
horripilado dos velhos demasiado gentis que se pelam por engraxar os jovens. Os
que dizem que o corpo já lhes vai com 70 anos mas que na cabeça (o famoso
espirito) ainda conservam o ímpeto dos 18. Vejo por mim: aos 70, para conservar
a minha cabeça com os 18 destes tempos teria que me entusiasmar com umas poucas
de coisas que detesto, a obsessão do telemóvel, a música da pesada, o humor
televisivo a que poucas vezes consigo achar piada, o torrencial cortejo da
parolice e do analfabetismo nacional que são os big brother, ou o quem quer
namorar com o agricultor; a dependência das novas tecnologias; o andar de carapuço
na cabeça; deixar-me agarrar pelo “cavalo”; frequentar o facebook, o twiter, o
instagram; combinar encontros com outros às tantas da madrugada para andarmos à
porrada. E mais sei lá o quê. Não poderia ter na minha cabeça ímpetos de 18
anos e conformar-me a estar em casa confinado, de pantufas, a ver a vida dos
outros e a sair de casa para as consultas, radiografias, análises...
E
dou comigo a pensar que a real indignidade da velhice jovem de espírito pode
residir nessa atitude de gostar de fazer dos outros parvos e cegos, o velho que
se pretende manter tão jovem (de espirito) como os mais jovens.
Montaigne: por mais decrépito que um homem seja ainda
acredita estar a viver uns outros vinte anos. Que Deus me guarde de tal crença.
A missão existencial
de um velho: fazer passar as horas; em vez de as reter.
Era Goethe quem achava
justo sobreviver à morte só para poder realizar por completo todas as facetas
de si que não tivera tempo de desenvolver em vida. Outro relapso e irritante
narcísico.
O velho Somerset
Maugham, por seu turno, garante que um amigo próximo de T. E. Lawrence, o
celebérrimo Lawrence da Arábia, lhe contou que Lawrence tinha o hábito de guiar
a sua moto em excesso de velocidade. Procurava um acidente. Porquê procurar um
acidente? É bom não esquecer que o destino lhe fez a vontade e que Lawrence
teve o seu acidente e morreu dele com menos de 40 anos. Um estúpido acidente de
moto depois de tantos perigos e provações passadas no deserto com os exércitos
árabes do príncipe Faisal. E era exactamente o que ele queria, um acidente, e
porque só um acidente lhe poderia tirar a vida quando ainda fosse senhor de
todas as faculdades físicas e mentais, poupando-o ao que ele próprio chamava da
dita indignidade da velhice.
Diz-se que quem nos
impõe a chamada indignidade da velhice é a nossa crise da meia-idade. Só mais
tarde reparamos (alguns reparam) que essa crise tem que ser interpretada como
uma espécie de realinhamento de valores e sensações. A espécie de realinhamento
que faria a ponte para uma nova opinião pessoal a respeito da morte – opinião
que em boa parte concorre para a dita crise.
E quando é que teremos
a mais aperfeiçoada noção do nosso próprio fim, a melhor opinião sobre a nossa
morte? Há quem diga que é na adolescência. Uns zunzuns vagos. Noção a confirmar
na meia-idade. Na crise, ora aí está. Causa ou efeito da crise já não sei
dizer. As duas coisas. Porque a juventude como quem não quer a coisa se foi e
levou com ela a desaustinada noção primeira, a da nossa imortalidade -
inviolável.
Há quem porfie em
resistir às indignidades físicas, pelo ioga, pelo ginásio, pelos
anti-inflamatórios, pelos anti-histamínicos, pelos antibióticos, pela
psicanálise, pelos antidepressivos, pela cosmética. Desafiar ousadamente as
inevitabilidades e dessas inevitabilidades a do fim último e supremo.
Não seria desengraçado
reflectir na duração das idades. Juventude: pode durar 15 anos, talvez dos 20
aos 35. Idade madura: uns 15 anos, dos 35 aos 50, vamos lá. E segue-se a mais
longa, a mais penosa das idades, a velhice. Com os avanços da ciência pode
chegar a durar 50 anos; ou 40, vá lá 30. Porém vivida com intensidades
negativas, cinzentíssimas, dramáticas. Porque nos vai aproximando da sombra
final.
Sacha Guitry costumava
dizer umas coisas reinadias. As parecenças. Eu,
aos sessenta, não me pareço comigo aos trinta. Como um fato, o meu físico não
me fica muito bem.
O sentimento de
fatalidade, de redução de destino, pode ser um estado muito doloroso aí por
volta já dos sessentas. Ouve-se a voz espectral, tão impreterível, tão
burocrática, a falar-nos sem contemplações ou compaixão: agora, meu menino,
vais ser isto e não aquilo que pensavas ainda poder ser; tudo o que não
conseguiste até à data não julgues que o vais conseguir a partir de agora; as
esperanças que acalentaste… ai, filho, essas já há muito te ficaram para trás.
Que reflexão maravilhosa sobre a tragédia do envelhecimento...É uma aprendizagem longa e dura, sobretudo quando não conseguimos (embora, por vezes, para "aliviar" até queiramos) alinhar pelo diapasão da maioria. Obrigada, querido Joel, lê-lo ainda é um prazer infinito.
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