terça-feira, 5 de março de 2013






              A MORAL DE BAYREUTH 

                       – A REALIDADE

         Wagner foi o que foi preciso ser. Wagner foi o deus dos deuses, Wotan. Wagner foi o safado Alberich. Wagner foi o luminoso Loge e foi a terrena Erda. Wagner foi Siegfried, o herói. Foi gigante, foi anão, foi profeta, foi mágico, foi incendiário. Wagner foi o que foi preciso ser a cada momento. Assim as circunstâncias se lhe apresentassem, assim ele intimamente se metamorfoseava num demiurgo realizador dos prodígios ou num anão sórdido, desprezível e interesseiro.


         Quando assombrado pelo gigantismo do seu ideal, Wagner tomava a lança do deus, e depois admitia que lhe faltava um templo, porque um deus precisa de um tempo para ser incensado. Um templo que comemora um ideal, mas que é, em si, uma realidade material, prática, dispendiosa. E quando posto perante tal realidade, Wagner não hesita, arroja de si a lança e todos os artefactos da divindade, diminui a sua estatura moral natural e aparece como Alberich. E parte em demanda do ouro redentor. Mas uma coisa era certa: para que um deus tenha um templo e funde uma religião cabe mais aos seus fiéis juntar o necessário para erigir esse templo do que ao fundador da sua própria religião.
         Wagner não conhecia Bayreuth. Mas sabia-a uma pequena e provinciana cidade que tinha todo o interesse em ajudá-lo, quer dizer, ajudar-se a si mesma ajudando-o a desenvolver nas suas colinas verdes e saturadas de energia mística uma indústria cultural, por forma a atrair forasteiros e a fazer crescer a pacata economia do burgo. Uma indústria cultural cuja sede deveria ser entendida e frequentada como um santuário.
         Ficava longe de Munique o bastante para se considerar independente, mas não tão longe que impedisse a Wagner uma visita ao seu régio protector, Ludwig, quando, e se, fosse caso disso.
          Quando, em tempos idos, Wagner dissera que para cumprir em cheio a obra da sua vida precisava da protecção de um soberano, tomara os poderes de Erda, a deusa da terra, e fora profeta: dois anos volvidos sobre essa declaração e eis que sobe ao trono da Baviera quem pode, e quer, acorrer ao financiamento das visões wagnerianas, o príncipe Ludwig, feito rei por morte de seu tio Maximiliano II.


         Mas era de capital importância seduzir a pequena Bayreuth e as suas forças vivas e os seus comerciantes, e revelar áqueles provincianos uma faceta simples e bonacheirona do grande génio da música alemã. Havia que fazer visitas extenuantes, interesseiras e protocolares. Havia que suportar com estoicismo a conversa emoliente dos pequenos burgueses.
O  banqueiro Feustel já apoiara o projecto. Bom seria agora varrer da memória dos bayreuthianos a suspeição de imoralidade, oportunismo, revolucionarismo e trapaça que maculava a aura do génio da música alemã.
Fixar residência a cidade e viver sossegadamente, e fazer-lhes ver que o que corria pelas bocas do mundo a se respeito nada mais eram do que boatos postos a circular pelos seus inimigos.
E que tal endereçar uma carta ao pobre chefe da banda local tratando-o de “ilustre colega”?

Em Berlim, Wagner foi recebido principescamente, criando-se logo na capital do império um círculo wagneriano disposto a providenciar uma orquestra de cem músicos. Aliás, círculos wagnerianos que alastrariam por esse mundo, em França, na Rússia, na Holanda, na Bélgica, na Suécia, em Inglaterra, no Egipto e nos Estados Unidos. E arranjou-se logo um arquitecto para riscar o projecto do teatro. A mulher do ministro real da Prússia encarrega-se pessoalmente da tarefa de recolher fundos. Havia muito dinheiro para arrancar aos wagnerianos de toda a Europa. Mas também era verdade que o dinheirinho sonante tardava a chegar.
Viagens. Würzburg, Frankfurt, Darmstadt, Strasburg, Colónia, Dusseldorf, Hannover, Bremen, Magdeburg, Leipzig. E banquetes, reuniões, recepções, galas, concertos, homenagens. Discursos.
Musico algum na velha Alemanha fora até então alvo de tão públicas e luzidas celebrações, tirante o caso, talvez, de Meyerbeer, ou de Mendelssohn. Para arranjar dinheiro, o mestre até compõe uma marcha festiva para a Exposição Universal de Filadélfia. E além de dinheiro precisa de novos artistas. E continua a caminhar sobre a realidade de olhos postos no ideal. Qual deus Wotan, Wagner vê-se na necessidade de sujar as mãos no vil metal e traficar com os nibelungos e os anões se quer levantar para a sua arte uma residência condigna – ou uma fortaleza inexpugnável; ou uma casa de culto; ou o seu pessoal Walhalla…



                                                                                       

             A realidade investe contra os ideais de Wagner: o proprietário do terreno escolhido para a construção do teatro põe os pés à parede e recusa-se a vender o terreno à câmara. Wagner atira-se ao ar:
- O quê? Edificar o meu teatro onde alguém teve o arrojo de se opor à minha vontade? Nunca!
Princípios.
Mas a mulher, Cosima, encarrega-se da parte diplomática.  E obtém resultados.
Os contratempos da realidade económica, política, pessoal, levantam-se aqui e ali. E aplanam-se acolá. De forma que em 1872 já é possível pensar na cerimónia de lançamento da primeira pedra. Uma inauguração muito simbólica. Seria a primeira pedra de um edifício destinado a ser marco indispensável ao renascimento espiritual da Alemanha. Sim, não era um edifício qualquer. E também marcava uma vitória sobre a tentativa de silenciar economicamente um génio a pretexto daquilo a que se usa chamar de progresso social. Já ia a caminho uma carta para o príncipe de Bismarck em petição de apoios de toda a ordem.

          


Em nome do município, o próprio burgomestre acabara de comprar um terreno. As más línguas espalhavam que não o fizera para beneficio  da cidade, que o fizera para favorecer um negócio privado. E no dia do lançamento da primeira pedra a agitação nas ruas da pequena Bayreutth era inusitada.
Chegaram orquestras de de Viena e de Budapeste, coristas de Leipzig e de Magdeburg; e subscritores; e bastantes jornalistas. As pensões e casas particulares esgotavam. A comida escasseava. Era o dia 22 de Maio, o mestre completava nesse exacto dia cinquenta e nove anos. Caía uma chuva diluviana.    
Mas a celebração musical acontecera no dia anterior. Com a tutelar, titânica e redentora Nona Sinfonia de Beethoven. Quatrocentos artistas sob a batuta do próprio Wagner.


A 22, sob a chuva desmobilizadora Wagner pega num martelo, aplica uma pancada, e ritualmente proclama, emocionado:
- Sê bendita, ó pedra! Sê durável e sê firme! 
Há nomeado um conselho de administração, que reúne no dia seguinte com os delegados dos círculos wagnerianos. Feustel, o riquíssimo banqueiro, preside. Os outros são Adolph Gross, Theodor Mencker, Emil Heckel, Friedrich Schoen. E o próprio Wagner. A realidade crua do projecto é discutida. É bom que se proceda rapidamente, e por isso é decidido o início da construção. Até se marca a estreia do grande festival. 1874. E estipula-se a quem futuramente pertencerão os lugares. Aos protectores e aos subscritores, primeiramente. Mas ainda sobravam quinhentos. Wagner considerava-se presente a uma reunião de amigos e protectores, e em volta de uma ideia imaterial (vamos dizer assim), nunca para discutir um qualquer negócio profano. Diz ele que o patrocínio nunca por nunca se poderá fundamentar no espírito leonino de maximização especulativa. O espírito original do projecto nunca por nunca poderá ser desvirtuado.
- Portanto, meus senhores, é de minha vontade que esses quinhentos lugares fiquem reservados para os artistas pobres.
Na imprensa vienense alguém levanta uma questão de moral particularmente interessante. Wagner é mesmo um homem de sorte. Indispõe-se com a realeza e surge um rei a oferecer-lhe o seu amor. Escreve virulências contra os judeus e muitas das musicais intelectualidades hebraicas se contam entre os subscritores do projecto. Esfalfa-se a dizer mal dos pátrios chefes de orquestra e estes fundam círculos wagnerianos e angariam contingentes instrumentais para tocar em Bayreuth. Cantores que sempre disse abominar, lambem-lhe as botas. Acusava os conservatórios germânicos de serem uma vergonha para o mundo e os alunos desses conservatórios quotizavam-se e ofereciam-lhe dinheiro.


                                                          

Quer dizer, Wagner e o seu ideal iam triunfando em toda a linha sobre a crua realidade.


 Mas essa realidade não deixava de se encorpar sobre a cabeça de Wagner e sobre a integridade do projecto. Os círculos wagnerianos davam magníficos jantares, mas, quanto a dinheiro vivo, estavam todos conversados. O conselho de administração andava de péssimo humor. Os artistas que o mestre via e ouvia por toda a Alemanha, e que pretendia afeiçoar aos seus ideais interpretativos, não lhe serviam. As obras estavam quase a parar por falta de fundos. Ninguém quer avançar no escuro. A menos que Wagner se comprometa a dirigir alguns concertos em cidades mais ou menos importantes. Ele não achava muita piada à ideia, mas não teria outro remédio. A realidade gritava-lhe que, no fim das contas, deveria ser ele a prover o mais do financiamento do seu ideal.
Ele rege concertos, ele discursa às plateias burguesas e às carteiras mais recheadas, ele vai a Berlim ver o marechal Moltke, ele vai ao encontro de professores universitários, ele avista-se com financeiros, ele beija a mão a príncipes de sangue.  Assim angaria mais mais dias ou três dezenas de subscritores de peso.

                    


Mas os concertos que dirige não dão resultados financeiros satisfatórios. Em todo o caso, Nietzsche anda por aí a dizer que Wagner está na moda e que finalmente lhe é reconhecida importância. E na verdade Wagner não hesita um segundo em explorar o snobismo dos notáveis, contanto que lhe dêem dinheiro, porque se não houver dinheiro em abundância é escusado pensar mais em arte e em ideal. E o dinheiro sempre fora a mais calamitosa obsessão dele.
Mais dez subscritores em Colónia. Vem um certo interesse de Viena. E de Londres. Tudo isso é muito bonito, mas a necessidade aperta. Pode ser que lá mais para o verão de 1873 a cobertura do teatro esteja pronta.
Pau de fileira em Agosto de 1873. Discursos. Música. Operários a recitar versos escritos pelo próprio Wagner. Banda militar que toca uma marcha de acção de graças. Mas se não há dinheiro, rapazes, não há palhaços, e as obras podem parar em Outubro.
No dia 31 de Outubro de 1873 Wagner convoca os círculos wagnerianos. Eram duzentos. Só quinze compareceram à chamada do mestre.
Um apelo ao povo alemão. Todo o bom alemão tinha o estricto dever de contribuir. Mesmo os mais pobres deveriam comprometer-se com alguma coisita para a ajuda. Era um apelo-proclamação. Foi distribuído. Todos os livreiros alemães o receberam. Nem um respondeu. A subscrição nacional em prol do grande templo da arte alemã rendeu seis taleres.
O círculo wagneriano de Manheim apela: todos os teatros alemães dariam uma récita, uma, de beneficência, a favor da obra de Bayreuth. Oitenta circulares enviadas. Respostas? Três. Negativas.
A realidade continuava a estender o seu manto cinzento sobre o ideal de Bayreuth.
E dívidas. Claro, dívidas. Wagner era um mestre nessa matéria.
Não havia alternativa às dívidas se quisesse realizar capital. O endividamento teria de ser a base operacional para a impossível questão de moral que Bayreuth constituía para Wagner. Bayreuth teria de financiar Bayreuth se nenhum poder régio interviesse, e depressa.
E pagar as dívidas? É a parte chata até para os estados soberanos metidos a iniciativas de duvidosa utilidade no retorno dos investimentos (como a saúde, a educação, a cultura, a segurança social), quanto mais para particulares, ainda por cima artistas…
Vendiam-se quotas de mecenato. Pois era, e garantias a dar a um conselho de administração formado por banqueiros, e burocratas de moral mais restritiva, muito mais, do que a do mestre? Garantia podia ser o rei Ludwig…


Oh, Wagner, o criador, confundia-se com as suas criaturas. 


Tanto era Wotan na nobreza dos perfumes de um ideal elevado, como não se ralava nada de ser o seboso anão Alberich e ir buscar o dinheiro onde quer que ele estivesse, ou entre os seios das filhas do Reno, ou nos cofres da coroa da Baviera.
Mas às finanças bávaras também não lhes soprava vento de feição.

- Não, não e não – diz o rei.        
E Wagner resmunga:
- Dava a ideia disso, não dava? Mas não, na verdade ele nunca compreendeu a minha arte.       
E ordena que se tapem com tabiques todas as aberturas de estrutura já construida do teatro. Não era por nada, era só para que as corujas não fossem lá fazer os ninhos.
O recurso seria Berlim. Oferecer o empreendimento a Berlim. E Berlim responde politicamente: as coisas de Wagner são assunto bávaro. Nem pensar em cometer a mais pequena ingerência nos negócios do Estado da Baviera.
E como num passe de  mágica. Ludwig adiante o dinheiro em falta, com as contrapartidas já sabidas.
Inauguração marcada para o ano de 1876.


Bayreuth, em termos práticos é um edifício de planta rectangular, em tijolo vermelho e sem muitas pretensões arquitectónicas. Entre 1344 e 1500 lugares, em anfiteatro. Excelente visibilidade. Acústica que num primeiro momento terá defraudado as melhores expectativas. Nove camarotes de fundo de sala, atrás da plateia, chamados dos príncipes e reservados às cabeças coroadas e ouras individualidades convidadas por Wagner. Orquestra invisível e praticamente coberta, organizada em degraus que descem dos violinos (os mais elevados) às tubas, tímpanos e trombones, seis degraus abaixo, e no sentido contrário ao habitual das salas de concerto – o “golfo místico”, como foi chamado, ou “abismo místico”. Nada de foyers para o grosso do público. Foyers só para os notáveis. Mas então… onde se passam os intervalos? Passam-se ao ar livre e campestre. Omessa! E se chove? Se chove passam-se nos restaurantes e cafés que se estabeleceram nas redondezas logo em 1876.
Wagner estava quase a caminhar sobre o arco-íris a caminho da moradia divina, do seu Walhalla. Wagner como o deus Wotan que criara, estava quase a poder declarar urbi et orbi:


- Resplandece, morada gloriosa, resplandece ao crepúsculo, tanto quanto exposta aos dardos do sol e à claridade da manhã. Daqui te saúdo, salva de todos os horrores.
Wagner, de ponto em branco vestido, está na estação e espera o rei Ludwig. É o rei o convidado especial para o ensaio geral do ciclo do Anel do Nibelungo. Já deu a uma da madrugada e o comboio real não há meio de chegar.
Mas o rei sempre aparece. Agitado, doente. Não parece excessivamente entusiasmado com um evento que outrora também seria para ele um ideal.


Ao evento acorrem nomes ilustres da Europa cultural. Num só dia quinhentas pessoas deixaram cartões na salva colocada no vestíbulo de Wahnfried. Elogia-se a tenacidade de um homem. Reis e príncipes e sábios reunidos para homenagear um só homem? Caso nunca visto. E, mais difícil ainda, para homenagear um artista. Onde e que já se tinha visto? Nunca.
No último momento todos pareciam ter compreendido que não estava ali um simples artista. No último momento, finalmente, compreendia-se que a homenagem era prestada mesmo ao templo sagrado da arte alemã.

(Entre a principesca chusma encontra-se um wagneriano de longa data, D. Pedro, imperador do Brasil.)

                                                                  


O pior vai ser o déficit de exploração do grandioso templo da arte alemã, que monta a mais de 120 mil marcos, e com o qual Wagner não está em condições de se haver. O Estado bávaro? Mais uma vez Wagner é avisado de que a régia tesouraria, por via de diversas obras públicas (entre elas alguns castelos inúteis), não está em boa condição. Anunciar o festival do ano seguinte? É uma ideia. Mas alguém terá de o pagar. Quem?
Feustel, o presidente do conselho de administração, comunica-lhe:
- Mestre, compete-lhe  solver todos os défices da empresa. De toda a maneira, o empreendimento é seu, o teatro é seu, a honra é toda sua…
- Ai é a mim que compete?
- Certamente, mestre. Os príncipes, os subscritores e os protectores de Bayreuth não estão dispostos a deixar pingar dos reais bolsos nem mais um cêntimo…
- Ah ele é isso? Pois meus amigos, se esse débito não for regularizado sem mim, acabo por passar o teatro a um desses empresários que praí andam e ele que se avenha, que eu, doente como ando, não estou para me incomodar com mais nada.
- E os lucros que a propaganda do ciclo do Anel estão a ajudar a conseguir por esse mundo?
- Calma aí. Antes de tudo, a cobertura do défice é obrigação de Munique. Ou de Berlim. Tanto se me dá uma como outra. O que posso fazer é repetir o ciclo do Anel à minha custa. Ou então… olhe, Feustel, ou então entrego o teatro inteiro à corte de Munique. É isso. E na corte ele ficará até que a divida para com o rei seja liquidada. Se assim não puder ser, é como lhe digo, pisarei a pés todos os meus ideais, sim, e entrego-o a um empresário.


                                                                           
 

É a realidade que pode levar um idealista, nem que ele se chame Richard Wagner, a essa coisa tão feia que se chama prostituição.
Que a Tetralogia, na mão de um vulgar empresário de teatros, se prostituísse por esse mundo fora já ele dava de barato. Era a evidência da sua renúncia. Bayreuth era um paradigma moral e assim teria de ser defendido, nem que fosse à custa de imorais concessões.


Wagner já estava noutra.
Qual outra? O Parsifal. E esse ninguém teria coragem de o roubar ao teatro de Bayreuth fosse a que preço fosse. Dizia ele.









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