AMARGURA
Madrugada de 26 de Abril de 1974. Faz amanhã 39 anos.
Marcelo Caetano é metido numa viatura
militar e segue da Pontinha para uma base aérea.
Vai sozinho no banco de trás do
automóvel. À frente, ao lado do condutor, vai um 1º sargento paraquedista (cara patibular, segundo Marcelo) que
passa toda a viagem a olhar para ele com a arma apontada.
Tive
a noção clara de que a um gesto equívoco da minha parte, seria abatido.
Marcelo pensou que o paraquedista não
teria recebido ordens superiores para assim proceder. Mas se ele disparasse,
pergunta Marcelo, quem isentaria o
movimento revolucionário das responsabilidades de um frio assassínio a que a
ausência de um oficial acompanhante daria toda a verosimilhança?
No avião que os levou à Madeira,
Marcelo, Américo Tomás, Silva Cunha e Moreira Baptista sentaram-se cercados por
duas filas de paraquedistas armados que nem por um momento largaram as armas.
Também desta vez não havia um oficial a comandar uma escolta que levava um
almirante e três homens que até horas antes haviam desempenhado altos cargos
públicos. Continuava a ser um 1º sargento a comandar.
Marcelo Caetano chega ao Funchal e tem
muito tempo para pensar na vida. Fica 20 dias sob prisão. Aproveita esse tempo.
Começa a escrever um depoimento sobre a sua acção política de quase seis anos
de chefia do governo. Parte para o Brasil.
Chega ao Brasil e é imediatamente
rodeado por repórteres e fotógrafos. Hospeda-se no Hilton de S. Paulo, é alvo
de muitas homenagens quer da colónia portuguesa quer de amigos brasileiros e
fica desvanecido. De S. Paulo passou ao Rio de Janeiro e foi recolher-se por
algum tempo num convento de beneditinos.
Como seria de esperar,
depressa fica a par dos desenvolvimentos da política nacional e do descambar do
previsto golpe militar moderadíssimo num estado pré-revolucionário
incontrolável. Não sei se alguém lhe prometera alguma coisa para depois do
assentar das poeiras, alguma hipótese de regresso com imagem reforçada, sabe-se
lá. Se alguém lhe prometeu tal, Marcelo Caetano começou a ver essas promessas a
desvanecerem-se e a ver a sua vida a andar para trás.
No seu refúgio brasileiro, Marcelo
Caetano recebia muita gente fugida à revolução. Assistiu à chegada de
sucessivas vagas de portugueses notáveis que se auto-expatriavam ao ritmo do
agravamento das condições revolucionárias em Lisboa: os primeiros, logo a
seguir ao 25 de Abril, os de mais nomeada política; depois os náufragos do 28
de Setembro; mais tarde os proscritos do 11 de Março.
Tanta precipitação, tanta lágrima, tanto
equívoco numa revolução tão benigna, e para estarem cá todos hoje, bem
amesendados, alguns luxuosamente acomodados, melhor até do que estariam no
tempo da outra senhora... ou seja no meu tempo – terá pensado Marcelo.
O próprio Marcelo Caetano poderia ter
regressado, apesar de tudo, se quisesse, para acabar tranquilamente os seus
dias na sua casa de Alvalade. Não quis. Era um ressentido. Só a ideia o
horrorizava. Dava-lhe vómitos o reencontrar-se com tantos dos que lhe haviam
jurado eterna amizade e fidelidade e se bandearam para o campo da esquerda. A
histórica e leonina amargura de Marcelo Caetano nunca pôde reconciliar-se com a
realidade histórica do momento da sua pátria.
Ao digno comportamento dele durante o
cerco ao quartel do Carmo (notará mais tarde) só os adversários fariam justiça
- casos de Salgueiro Maia e Otelo.
Um jornalista português apresentaria
Tomás como modelo de dignidade naquela hora fatídica. E porquê? Porque não
tinha saído de casa. O que nem sequer era verdade. Da carga psíquica desse dia,
diz Marcelo, que se não o matou o moeu muito.
Ouviu falar na “pesada herança do
fascismo”. Achou graça à expressão. Era o modo grosseiro como os jovens
gastadores se referiam aos dinheiros paternos que não lhes tinham custado a
ganhar.
O
meu governo deixou nos cofres do Estado 872 toneladas de ouro em barra, mais
100 milhões em divisas. Nisso consistia a pesada herança do fascismo.
No Brasil era um ex-ditador de água
doce, acolhido por uma ditadura militar musculada. Das condições do asilo fazia
parte o compromisso de não se envolver em política.
Asilo? Ele não o interpretou assim. Logo
que chegou, tratou de regularizar a situação de estrangeiro, preferindo a
qualidade não de asilado mas de refugiado. Certamente por uma questão de moral.
Por falar em moral. A palavra moral é
recorrente no léxico de Marcelo Caetano, e a diversos propósitos. Vilipêndio
moral. Afundamento moral. Energia moral. Valores morais. Sofrimento moral.
Ponto de vista moral. Categoria moral. Uma moral da memória muito viva em
Marcelo Caetano. Uma memória de si.
Marcelo Caetano pensava nas esquerdas
portuguesas sedentas de poder. E pode ser que pensasse mais nas direitas
pusilânimes. Doía-lhe a trajectória de muitos dos seus ex-colaboradores que se preparavam
para reviravoltas ideológicas espampanantes, para acrobáticos volte-faces nas
suas convicções políticas e se passavam a proclamar democratas da primeira hora.
Também lhe doía, e muito, o parecer dos
correlegionários que o acusavam de – na mais ligeira das hipóteses - não ter
sabido evitar o golpe do 25 de Abril, ou de – na mais sinistra das hipóteses –
ter estado de conluio com os golpistas.
Pela minha insignificante parte, e
quanto à última das hipóteses, não o classificando de conluio, pressinto que
Marcelo Caetano viu na preparação do golpe por Spínola e Costa Gomes (não falo
dos capitães) uma nesga de oportunidade para si mesmo, para o que pudesse ser um
seu segundo fôlego político num clima doravante desanuviado de
ultra-salazaristas. Ou então terá sido um ingénuo ao acreditar na palavra
desses generais desavindos com o regime que lhe diziam para se manter no poder
que estava lá muito bem.
Pensava Marcelo que se o país quisera
uma mudança política, ou até se, não a querendo, a permitira, pois que sofresse
daí em diante os efeitos de tão ansiada mudança. Por ele, atirado para os
brasis, sentia a amargura do abandono. A amargura de só aos 68 anos se ter
apercebido do que o Prof. Veríssimo Serrão chama de vilipêndio moral, ou de degradação
dos homens quando se assume em formas colectivas.
Fiz
tudo para servir a minha pátria e vejo-me agora espoliado dela.
Do povoléu mais comum ninguém evidentemente sabia, mas
estava-se a dias do golpe que iria mudar o viver português. E Marcelo sabia. E
tanto que sabia que confidenciava a amigos, e talvez com excesso de dramatismo,
estar-se a viver sobre um barril de pólvora.
E também os seus ministros militares
sabiam do que aí vinha e diziam-se preparados para enfrentar o que viesse.
Esperavam os acontecimentos para Maio, por volta do dia 10. Homens totais e
totalitários para quem a pátria era o próprio regime ditatorial, afirmavam que
o reviralho a vir por aí não se limitaria a ser contra o regime. Seria contra o
próprio país.
Mais tarde, Marcelo afirmava saber a
razão por que o golpe previsto para Maio fora antecipado. Foi quando os
conjurados tomaram conhecimento da ausência do país das principais figuras da
PIDE, Barbieri Cardoso e Rosa Casaco, e contando com cumplicidades internas na
pessoa do inspector Coelho Dias, amigo de Spínola, que facilitou as coisas.
Argumento pouco consistente na minha pobre e desinformada opinião, e sabendo-se
o pouco que ainda se sabe hoje. Não sendo embora de esquecer a espantosa
passividade da PIDE, que continuava à caça de comunistas, fingindo ignorar os
capitães e fingindo-se adormecida ou inepta para correlacionar ambos.
No caso da suposta inépcia da PIDE, como
no caso do seu reiterado arreganho contra os subversivos, Marcelo Caetano
acabou por, figuradamente, ser preso por ter cão e preso por não ter. Foi
atacado pelos correlegionários por ter tirado poderes e margens de manobra à
PIDE. E foi atacado pelos adversários por não ter tocado nas estruturas e nos
métodos da mesma PIDE, limitando-se a mudar-lhe nome.
A situação moral de Marcelo Caetano era
já deplorável nas vésperas do golpe. Em conversa com o Prof. Veríssimo Serrão
perguntara amargurado acerca do que seria possível fazer com um pais que (sic) ainda dispõe de energias próprias mas
prefere seguir as vozes das sereias encantadas.
Na leitura política de Marcelo prévia
aos acontecimentos de Abril de 74, em todas as classes sociais campearia a
fraqueza, a demissão, o aviltamento – sem mencionar a quota-parte de
responsabilidade dele mesmo nesse estado das coisas.
Eram os militares – juraram defender a
pátria e andavam em reuniões com fim mercenário só para poderem dispor das
províncias ultramarinas. Era a Igreja – possessa de um progressismo militante
que identificava Cristo com Marx. Eram os universitários – que incitavam os
alunos à contestação permanente. Eram os novos burgueses – saturados de
bem-estar a querer a mudança política para se manterem na crista da onda.
Restava o povo fiel, manobrado pelo que
acoimou de palradores de ocasião, os que chamavam aos homens do regime tiranos
e aos outros libertadores.
Em Fevereiro de 74, Marcelo clamava ser
preciso vencer o que classificava de “hora sombria”. Ingénua ou cinicamente,
acreditava ter a nação do seu lado. Acreditava na consciência colectiva quanto
ao papel das províncias ultramarinas no futuro nacional. Fosse por deformação
profissional do legalista e do administrativista, acreditava na solução teórica
e administrativa da “autonomia progressiva e participada”, acreditava nos
“novos brasís” a resultar a prazo largo como solução para as questões que se
colocavam no imediato e exigiam respostas radicais no imediato.
(A mim, cidadão comum, impressiona-me a
falta de rigor e de frieza analítica num homem da mais alta craveira
intelectual que não resistiu às circunstâncias históricas adversas que tinha
para viver e se deixou dominar pelas emoções e por um ego demasiado exigente.)
Aqueles ciclones da História que sopravam
sobre a questão ultramarina, é óbvio que, concomitantemente ao ultramar, ou até
prévios a ele, sopravam fortes sobre a situação do Portugal metropolitano. Os
anos 70 eram o limite, o muro de encontro ao qual os ventos haviam empurrado o
país desde o fim da II Guerra. Mas ainda nos anos 70 havia no regime quem
pensasse possível resistir à tal dinâmica desses mesmos anos 70.
Para resistir eficazmente à tal dinâmica
dos Seventies teria sido absolutamente precisa a presença de Salazar, ou, em
desespero de causa, de um herdeiro à fatal altura do velho ditador.
Marcelo, o ungido, também fora por
alguns olhado como aquele que se preparava para desbaratar a herança do velho
mestre, enquanto os liberais depressa desconfiaram dele como o homem indicado
para a renovação e nele não viram mais do que um seguidor do velho.
O dilema de Marcelo Caetano foi mesmo
shakespeareano. E julgo eu que fosse
qual fosse o herdeiro de Salazar o seu destino não seria diferente do que foi o
de Marcelo. No seu fechamento político, no seu ultramontanismo cultural, não
preparando elites esclarecidas, fossilizando implacavelmente os esquemas
mentais colectivos e privando o povo de uma cultura política, Salazar tinha
armadilhado tragicamente o caminho de qualquer um que lhe sucedesse.
Marcelo Caetano queria refazer a vida,
dizem os testemunhos. Não se deu por um homem vencido. Não sei se com a
compleição psicológica dele a intenção não seria evidenciar ou ampliar pela
amargura própria as dimensões do que entendia ser o desastre da sua pátria.
Fixa residência definitiva no Rio, no
bairro do Flamengo. Frequenta as editoras e livrarias cariocas. Busca materiais
para continuar um labor nas áreas da História e do Direito. Projecta escrever
uma História do Direito Português. Não pode estar parado. Os filhos
comprometem-se a ir fazer-lhe companhia segundo uma escala combinada entre
eles. Até que fica professor na universidade Gama Filho, a maior universidade
privada do Brasil - Direito Comparado. Frequenta a Academia de História e o
Instituto Histórico. Tem inúmeras solicitações para o social.
E de todos os pontos do Brasil lhe chovem
convites para orações de sapiência, aulas, congressos, conferências, e não
versando apenas matéria jurídica, também altos temas de História – aliás,
Marcelo era realmente um erudito que se considerava modestamente um historiador
amador.
Dá-se com intelectuais e académicos.
Quase todos. Uma excepção interessante – e que lhe dá muita pena: a do
brilhante filólogo Aurélio Buarque de Holanda, julgo que tio do grande Chico
Buarque. Marcelo classifica-o de sujeito
tão de esquerda que é o único académico que recusou relações comigo devido a eu
ser… fascista.
O
principal papel dos estudos históricos é a explicação do presente pelo passado.
A História talvez devesse ser lição e exemplo: mas na verdade não é. As
gerações nunca aprendem pela experiência alheia. Só à custa do próprio
sofrimento.
Sim. Mas então porquê a fé dele na
História para repor um dia a justiça quanto à sua acção governativa?
Os
portugueses julgam ter conquistado a liberdade quando estão sob a pata de uma
feroz ditadura –
escreve quando tem notícias da queda do governo de Palma Carlos. As qualidades
e o prestígio do amigo Palma Carlos não eram bastantes, pensa, para o impor num
ambiente revolucionário.
É
vê-los agora no Templo, os vendilhões, prontos a renegar Cristo. São eles os
puros democratas, enquanto nós, que sempre
pregámos o convívio e a tolerância, representamos a opressão que cumpre
exterminar. A História porá isto, um dia, a claro.
Convívio e tolerância com prisões
políticas pelo meio? É preciso lata.
A
História porá isto, um dia, a claro. Cá está. A História pode
ser então uma tábua de salvação moral, uma esperança redentora. A confiança que
naqueles tempos as pessoas de qualidade punham na História é algo que deveras
me admira. Ingenuidade? Ou hipocrisia mesmo na derrota?
A História! Mas quem escreve afinal a
História?, pergunto eu.
Impressionavam-no os fenómenos de
aceleração histórica que fazem, como ele diz, perpassar aos nossos olhos a série de sucessos extraordinários e
instituições fugazes de que se entretece a História contemporânea.
O mundo mudava agora de ano para ano.
Uma angústia para o Homem dos tempos pausados. O universo unificava-se pelos
meios de comunicação, registava ele – e ainda ele não tinha visto nada.
Quando
antes do nosso século o mundo se transformava imperceptivelmente e só de
séculos a séculos era abalado por revoluções que se produziam em espaços
restritos…
Mas recalcitrava no culto da História
como via indispensável à justiça que o mundo haveria de prestar a Portugal.
Tenho
fé em que a poeira das derrocadas se dissipará para, por entre as ruínas,
deixar divisar o que constitui ainda material válido para uma reconstrução
urgente no meio do afundamento em que soçobrou a nação portuguesa com a
dissolução do carácter da quase totalidade do seu povo.
Bom, entre os exageros e o despropósito
de considerar que de um dia para o outro (de 24 para 25 de Abril de 74) a
totalidade do povo sofrera uma dissolução de carácter, enfim, Marcelo e o seu
regime teriam mitificado no povo português características que ele (povo) não tinha
e se calhar nunca teve, mas que fazia jeito enaltecer, quanto mais não fosse
para enaltecer, moralizar e totalizar o próprio regime. Tem isso a ver com as
ditaduras? Não sei. Para as ditaduras, o povo, sendo bom porque as suporta, só
não tem razão e se lhe degrada o carácter quando se revolta contra elas –
Hitler pensou o mesmo do povo alemão na hora da derrota.
Em democracia arranjam-se outros mitos.
O povo, ao votar, tem sempre razão, escolhe sempre bem na sua sabedoria
telúrica. O que falta provar que seja verdade. Toda a gente o sabe. Induzido o
povo eleitor como é, sempre, e pela sua deficiência colectiva de carácter, por
factores estranhos a esse mesmo carácter, a comunicação social, a propaganda
partidária, as sondagens pré-eleitorais, o diabo a sete…
Ou… quem tem sempre razão (e poder) são
os meios e os métodos que induzem o povo a votar assim ou assado?
Na derrocada do país e das suas gentes
antes respeitáveis e fiéis, segundo Marcelo Caetano, poucos se salvaram na hora
da debandada, ou na hora da procura desesperada da sobrevivência política e dos
tachos respectivos.
E ele sente-se grato a quem acreditou
ainda nas possibilidades dos seus 68 anos, e trabalha duramente para não
desmerecer essa confiança.
Em Julho de 74 tinha planeado a edição da
sua versão dos acontecimentos de Abril; ou mais: da sua acção governativa entre
Setembro de 68 e Abril de 74.
Depoimento, veio a chamar-se o livro. Silva Cunha,
Moreira Baptista, Elmano Alves, o general Andrade e Silva – presos, ou
deportados, ou em fuga. Isso angustiava-o. Pretendia defender-lhes o nome e a
honra. E na redacção de As Minhas
Memórias de Salazar ocupava ele todas as manhãs e os fins de semana
Muito se especulou acerca das relações
entre Caetano e Tomás antes e depois da queda de ambos. Veríssimo Serrão
assegura que Marcelo nunca deixou de prodigalizar atenções ao velho almirante.
O pior parece que era a delambida da filha, dona Natália, que se mostrava
inconveniente com ele, não se cansando de lhe atribuir as culpas pelo que
acontecera e assim contribuindo para alguma frieza entre os dois homens. Mas
Marcelo não esquecia os favores e as honras devidas ao homem que o ungira para
suceder a Salazar.
A feição melómana é-lhe avivada com a
ida a um concerto da Sinfónica do Rio de Janeiro, em que escuta a 9ª de
Beethoven e onde acha lenitivo para os males da sua alma.
Era um melómano sincero, Marcelo, sem
dúvida, como homem superiormente culto que era. Várias vezes o vi em concertos
aqui em Lisboa e a assistir a óperas em S. Carlos. Deve mesmo ter sido o último
1º ministro português com cultura musical.
Ah, não. Não foi. Não. Estava a
esquecer-me de outro grandíssimo melómano que foi 1º ministro, Vasco Gonçalves.
Sim, esse. E, pelo menos como melómano, bastante esclarecido e refinado. É
verdade. E mais nenhum.
Marcelo passa então a ir todas as
semanas à sala Cecília Meireles ouvir os concertos da Sinfónica do Rio.
Com
a experiência que a vida me deu, como acreditar nos homens, na fraternidade, na
regeneração e não sei que mais?
Esse
regime de gatunos privou-me da pátria, privou-me dos meus direitos, privou-me
da aposentação para a qual contribuíra durante 47 anos, privou-me dos bens que
legitimamente adquirira, privou-me dos livros que eram o meu instrumento de trabalho.
Regime de gatunos,
não é? Sabia lá Marcelo para que medidas e governos e políticos e financeiros o
país e o seu povo (cheio de carácter) estavam guardados. E essa do privarem-no
da aposentação, não sei se foi verdade, mas se foi, foi medida pioneira dos
tempos que estariam para vir e que nem em sonhos naquele tempo passava pela cabeça
de ninguém – nem pela de Marcelo Caetano - que pudessem vir.
De qualquer das maneiras, custa-me a entender
este rancor burguês de quem fez toda a vida na política, de quem sabia, ou
devia saber, o que o esperava na hora da derrota, e de quem seguramente conhecia
o destino quantas vezes trágico de tantos ditadores.
O Poder aprisiona sempre os seus detentores numa hermética narrativa auto-justificativa.
ResponderEliminarA História é mestra na destruição destas narrativas, mas não consegue impedir a criação das sucedâneas.
O drama de Marcello e do "marcelismo" não é muito diferente dos dramas posteriores, e consequentes narrativas desfeitas, do spinolismo (baseada no mito da "maioria silenciosa"), do gonçalvismo (baseada no da "Revolução"), do cavaquismo governamental (baseada no mito do "oásis"), ou agora na do cavaco-gaspar-passismo (baseada no mito da "consolidação orçamental"), que mais dia menos dia também desabará fragorosamente e será substituída pela próxima narrativa hermética e auto-justificativa do Poder, ainda impossível de prever nos seus contornos essenciais...
E contra estas narrativas sequenciais do Poder há apenas um antídoto eficaz, composto pelo Saber, pela Cultura e, sobretudo, pelo Carácter, que são perenes e imunes à falácia perecível dos transitórios discursos do Poder.
«Sic transit gloria Mundi»...