sexta-feira, 26 de abril de 2013


              A MORAL DE BAYREUTH – A ESTÉTICA

        


         Terminara a II Guerra Mundial. Para um tão singular empreendimento artístico como o Festival de Bayreuth outra guerra estaria para começar, uma guerra democrática, vamos lá, de sobrevivência moral, de redenção dos horrores, de recuperação de prestígios. Impunha-se uma profunda revisão estética – para não falar da inevitável actualização dos compromissos políticos. Impunha-se a tarefa de revalorizar aos olhos do mundo da cultura a intemporalidade de Wagner, e por consequência da missão do festival.
         A Europa não seria mais a mesma. E Bayreuth ainda significava uma legitimação dos pesadelos à mais excelsa escala espiritual e cultural.
Bayreuth fora parte de uma poética do nazismo. Reabilitar Bayreuth poderia ser também reabilitar a cultura alemã tão negregada naqueles tempos, tão conformada aos valores do racismo militante, do militarismo e do genocídio. E uma reabilitação da cultura alemã passaria sem a mais pequena sombra de dúvida por uma reabilitação de Wagner – da obra, que não do homem.
Empresa de ciclópicos contornos, quando tantos atribuíam a Wagner, à sua música e ao poderoso pensamento que lhe dava forma, boa quota parte da paternidade moral e cultural do nazismo agressivo e devastadoramente anti-semita.

Bayreuth, já se vê, era um teatro especial. Mais do que um teatro, era uma instituição e um templo do espírito germânico, e com uma estética específica e bem evocadora dos fastos hitlerianos. E tudo isso num mundo comunicacional, cultural e artístico em que os judeus nunca tinham deixado de pontificar moralmente, e agora com posição reforçada. Bayreuth era uma catedral onde, se não era permitido mudar de religião, haveria ao menos que tentar o (como agora se diz) branqueamento dessa religião reformando-lhe as liturgias.

Recuperar Wagner para a memória do mundo era recuperar a validade da sua música para os valores do pós-guerra, do parlamentarismo, da democracia representativa, do Plano Marshall, do mercado livre. Era, enfim, e por meio de uma formidável renovação estética, recuperar na sua música um universalismo que alguns punham vigorosamente em causa, de tão associados que estariam à tragédia do nazismo e do holocausto.
        
                                            

E dá-se a fundação do que se passaria a chamar o Novo Bayreuth. E, mais difícil ainda, será na família do próprio Wagner que germinarão as coordenadas reabilitadoras.


A partir de 1951, por acção dos irmãos Wieland e Wolfgang Wagner, netos do mestre, irrompem no imaginário dos melómanos menos renitentes as novas possibilidades de ouvir e ver o drama wagneriano sem demasiados agravos de consciência. No sagrado espaço de Bayreuth inaugura-se a alternativa redentora, o experimentalismo, a vanguarda estética (doravante a abarrotar de Freud), despojada tanto das cangalhadas naturalistas de Oitocentos como das comemorativas pompas nazis. Afinal, Wagner ainda poderia ser uma hipótese numa Europa devastada, mas, enfim, democratizada.

Toca a Wieland Wagner mostrar ao mundo novo do Ocidente a valência inesgotável da obra de seu avô, arrojando para longe da sagrada colina as concepções passadistas em favor da estilização. Wieland deixa Bayreuth e a cultura wagneriana no divã da psicanálise, instaurando a luz como elemento central de uma dramaturgia sobrecarregada. Dessacralizando o drama wagneriano dos panejamentos dogmáticos, Wieland vai acabar por sacralizá-lo de um modo, este sim, verdadeiramente cerimonial, litúrgico, acentuando-lhe as religiosidades virtuais pela esculturalização e pelo hieratismo dos oficiantes, os cantores-actores.

                                              

Para um teatro vivo e actuante não podemos conceber um estilo que não seja um estilo contemporâneo, disse ele, antes de pôr o seu genial avô no íntimo das consciências artísticas europeias mais insuspeitas e menos susceptíveis de serem confundidas com a ideologia maldita. 
Por outro lado, perde pontos para a velha guarda tradicional, encabeçada pela própria mãe, Winifred, racista e nazi até mais não. Winifred começa a duvidar da qualidade do sangue daquele seu estranho filho, de tal arte é a desfaçatez com que ele consuma a traição aos mais caros princípios do genial avô.
O celebrado maestro wagneriano Hans Knappertsbusch, em carta a Wieland Wagner, diria: a minha fidelidade a Wagner é absoluta, e maior, infinitamente maior do que a sua, Wieland. De modo que não sei se no quadro do novo Bayreuth ainda poderei ser útil. Em qualquer dos casos, sinto muita pena ao verificar que Wieland Wagner abandona o caminho único que conduz a Richard Wagner.

Wieland Wagner foi a mais importante referência inovadora na estética teatral de Bayreuth. A ele seguir-se-ia (em minha opinião) como mais marcante das renovações estéticas a do francês Patrice Chéreau, que em Bayreuth mostrará, já nos anos 70 (e com Pierre Boulez na direcção  musical), uma Tetralogia que em muitos momentos semelhará um drama burguês, de personagens ataviadas a época da Revolução Industrial, e inspirado em escritos do próprio Wagner datados do tempo em que concebia os seus libretos, e assim repondo, da mitologia wagneriana, uma outra forma de contemporaneidade ao sublinhar-lhe a óbvia categorização histórica.

                              

                                                    
Mas a verdade é que Wagner estava nesse tempo a compor uma nova música. Wagner tentava colocar sobre o tablado uma nova visão teatral, inconfundível e futurista. Wagner ansiava ter como público um novo Homem criado por  uma revolução. Wagner fazia construir novos instrumentos musicais. E no entanto – ou por isso mesmo – do ponto de vista técnico-teatral, há quem diga que essa tão aguardada estreia absoluta da Tetralogia num espaço cénico para ela expressamente construído, foi um desastre – no mínimo uma irrelevância – quando cenários e maquinaria não funcionaram convenientemente; quando houve sempre um pano de boca que subiu ou desceu tarde ou cedo de mais; quando foi visto um ajudante de maquinista a safar-se de cena no último momento com o seu martelo e balde de pregos em punho; com luzes, guarda-roupa e adereços aflitivamente medíocres; com cantores afinal a exibirem os convencionais vícios histriónicos – com o primeiro Wotan, o barítono Betz, a perder ridiculamente o anel, símbolo do seu poder e da sua fortuna.


De sublime? A música. 
Wagner inventara, a vários títulos, é certo, um novo drama lírico; ou, como ele gostava de lhe chamar, a música do futuro. Mas a estética teatral que presidiu ao primeiro wagnerismo não foi muito mais do que um repositório de naturalismos desvairados e de concepções cenográficas estafadas e tributárias em excesso de um romantismo a essa hora já bastante dessorado.
E a inovação – não sei se pseudo-inovação – que se seguiu à morte do mestre foi tímida, tolhida pelo conservadorismo da primeira geração dos herdeiros – os carnais e os espirituais. É, como já disse, no festival de 1924 que o filho único, Siegfried, se permite, e com todas as cautelas, arriscar alguma coisa parecida com inovação. Cenários tridimensionais. Acaba-se com a luz de gás e instala-se iluminação artificial. Porém sem outras rupturas  com a mais reaccionária tradição.
Mas a contestação dos lados da velha guarda não  impediria Siegfried Wagner de contratar, em 1927, um cenógrafo pouco convencional, de seu nome Kurt Söhnlein. Como também não impediria a conservadoríssima Winifred de contratar, em 1934, por entre a ganga estética do nacional-socialismo, um homem chamado Alfred Roller, já então famoso, e que viria mais tarde a influenciar a revolução de Wieland.


 
                                                              

Mesmo assim, Wieland, o reformador da estética de Bayreuth, não despreza as contribuições que ainda em anos nazis tinham sido acrescentadas ao wagnerismo. Em especial no domínio da luz. Wieland reiluminava a obra do avô e sujeitava-a sem complexos de culpa ao penetrante foco que a vai repropôr à discussão nos areópagos internacionais, que lhe vai emprestar validade para os novos tempos, permitindo-lhe nova respiração, nova visibilidade, e impressionando até os espíritos mais progressistas.


Wieland prestava atenção aos conceitos de Adolphe Appia quando este postulava (já em 1895) que todo o objecto se torna plástico apenas em função da luz que sobre ele incide, por ser a iluminação a paleta de cores de um encenador.  

Fundar em Bayreuth uma nova moral. Apagar em Bayreuth as evidências sinistras dos anos alemães mais recentes. Era esse o escopo principal de Wieland. E em 1951, com uma nova Tetralogia e com Parsifal, dava ele o primeiro passo para um movimento que ultrapassava a simples inovação cenográfica. Estava na hora da desnazificação de Bayreuth. Estava na hora do exorcismo dos demónios.
               

E como Bayreuth era, e ainda é, um negócio familiar, resgatando Bayreuth à História do nazismo, Wieland não se poupava a esforços para se resgatar a si mesmo e à sua família da culpa imperdoável de um muito estreito e amigável conluio com Hitler e o seu regime. É ver as memórias de um dos últimos descendentes de Wagner, Gottfried, que afirma sem rebuço que todos os da família, sem excepção (o próprio Wieland incluído), sempre foram, e continuaram a ser pelos tempos democráticos, renitentes e convictos nazis. Nem que fosse às escondidas e com uma linguagem familiar própria, e críptica, mas sempre evocativa da saudosa memória do seu tio Wolf – o próprio Hitler.


De todo o modo, Wieland, enquanto director artístico do Festival de Bayreuth, sempre diligenciou andar esteticamente a la page, sempre na crista da onda de tudo quanto era vanguarda artistica apadrinhada pelas esquerdas. 
Basta considerar o Tannhäuser de 1961, quando contrata Maurice Béjart e respectiva companhia - que deixaram em Bayreuth inolvidável memória; ou quando contrata para o papel de Venus – suprema audácia no alto bastião ariano – uma jovem cantora americana negra ainda pouco conhecida, Grace Bumbry.

Reabilitar Bayreuth pela esquerda, ou pela integração racial, era o mesmo que dizer à opinião pública mundial que Wagner não poderia de modo algum ser apropriável por uma ideologia, por mais total, salvífica, sanguinária, anti-semita que ela fosse; que a sua mensagem era tão universal e aglutinadora como universal era a mitologia de Eros, e que, por isso mesmo, tão bem ficava na figuração de uma cantora negra como na de uma branca. 

E um dos mais fortes apelos que a nova moral de Bayreuth faria à consciência asseada e progressista da nova Europa culminaria com a contratação de Pierre Boulez, exemplo acabado, e talvez raro na época, de músico alinhado pela esquerda pura e dura – e com quem Wieland não pôde colaborar tanto quanto desejava, por razão da doença que em breve o mataria, aos 49 anos.


A experiência mais óbvia de desnazificação teatral perpetrada por Wieland Wagner foi a produção de Mestres Cantores de 1956: uma encenação despojada dos signos que haviam incendiado as imaginações nacionalistas dos anos hitlerianos, esquematizando a sugestão das ruas de Nuremberg e diluindo a carga mítica do famoso sabugueiro. Valeu-lhe remoques da crítica: preço demasiado irrisório para o quanto, em termos familiares, estava em causa.

Wieland não esquecia que para bem comunicar a essência e complexidades do drama wagneriano havia que levar em atenção uma primeira coisa: o primado da música. À cenografia competia deixar no imaginário do espectador o âmbito de expansão da absoluta forma musical; e à encenação conviria não ser uma duplicação do que essa música, e o texto literário que lhe subjaz, possam exprimir, e sim um complemento do entendimento essencial.


Para Wieland, a luz, e a cor que dessa luz pode jorrar, funcionariam como uma alegoria do inconsciente. Wieland pretendia espectacularizar o inconsciente, tomando como fundo a perturbação  musical criada pelo augusto avô.
Um exemplo: o Tristão – os corpos a fundirem-se nos elementos míticos e intemporais da cena, sob uma iluminação difusa que os faz flutuar, suspensos na noite, fora de toda a contingência terrena. Ou política.
  
                     

Penso que reside na luz a grande magia de tudo.
E a luz desencadeia a cor. E a cor descerra a cortina dos mais escusos territórios da alma. Wieland centra a visão wagneriana nos imponderáveis do inconsciente dos heróis. Há bons e maus objectos interiorizados na psique das personagens. O vermelho violento que decorre da paixão de Isolda, em conflito com a crueza do verde que se projecta no ciclorama, testemunho do ódio inconsciente da mesma Isolda pelo ser amado.



Há bons e maus objectos interiorizados pela alma alemã que é preciso exorcizar. E desvenda-se o azul projectado no proscénio, o gélido azul da noite de todas as noites de teatro, a noite desse 2º acto de Tristão que virá a explodir no Nada.
Estatismo do gesto; imobilidade escultórica dos corpos. Pode exaltar-se uma premonição. Podem conter-se, sufocando-os, os transportes da paixão e da inevitável insensatez, contexto, somente, do movimento feroz de um inconsciente perturbado e relutante em comunicar-se, traço brutal do gesto suspenso e largo que completa a imobilidade e acrescenta memória ao sopro divino das estátuas.
Tudo se pode interpretar á luz da psicanálise, e nos nossos dias a psicanálise ocupa o lugar que outrora foi dos contos de fadas, das religiões.
Ou: por detrás de todo o drama estão os arquétipos. E parece-me profunda a interpretação segundo a qual Tristão era de facto filho do rei Marke.
Ou ainda: a eterna luta entre pai e filho, o mais célebre conflito da Humanidade depois da interpretação de Freud, julgo-a infinitamente mais trágica e mítica do que o adultério de Tristão com a mulher do seu tio.
  Wieland propunha montagens sugestivas de tudo quanto não estivesse na música nem no libreto. Em Tristão e Isolda, Wieland avança para uma moral complementar, se se pode dizer. Tristão leva a noiva ao rei Marke, sendo simultaneamente do rei Marke um vassalo. E se, no 1º acto, Wieland entende reforçar os ombros do fato do herói, fazendo-o permanecer junto do fálico mastro do navio, sugerindo-lhe o masculino poder, a vontade de penetração violadora, no 3º acto, esse reforço simbólico do poder é-lhe retirado do guarda-roupa. A união física é para Tristão e Isolda uma situação inssatisfatória, visto que os move uma aspiração essencial de unidade absoluta entre dois seres.
Nem Tristão nem Isolda aspiram na verdade à consumação do seu amor numa esfera terrena. A situação humana fundamental que me fascina é esse destino que obriga à existência entre o amor e a morte de uma relação tão directa quanto misteriosa. Eros e Thanatos.


“Onde estamos?”, perguntará Tristão. “Perto do fim”, responde Isolda.
Tem que se dizer que Wieland Wagner venceu todas as suas batalhas. O mundo livre do pós-guerra despertou e deu-se a discutir sem complexos e sem culpas um Wagner desnazificado e um Festival de Bayreuth mais culturalizado do que politicamente salpicado de sangue.

O universo wagneriano e a moral de Bayreuth, com Wieland Wagner, fosse por sua convicção artística, fosse por mera estratégia de preservação familiar – ou pelas duas coisas – veio a ser reequacionado à luz de uma contemporaneidade democrática. E com a subida ao poder em Bayreuth da última geração dos Wagner tem sido objecto de infindáveis experiências vanguardistas – e até brechtianas (Heiner Müller).
Nas experiências, por exemplo de Otto Klemperer de 1927, amaldiçoadas pela hierarquia familiar, viu Wieland Wagner a hipótese de sobrevivência e vitalidade cultural futuras para a obra de seu avô. Viu uma saída para a modernidade. Viu a oportunidade de uma redenção política.
   No final, a Isolda de Wieland Wagner estende os braços ao infinito. A luz destaca-lhe a materialidade do corpo, salva-a da ameaça das sombras do esquecimento que a circundam. Depois, a luz inunda-lhe somente o busto. Até aos compassos finais, quando se lhe concentra no rosto, intensamente, ferozmente.
Uma transfiguração, como propusera o mestre. Ou o doce e definitivo reencontro de Isolda com o cadáver de Tristão. Ou a descoberta de uma pulsão de eternidade sobre os êxtases da morte, o fôlego humano e a vida transcendente da música de Wagner em ambíguo triunfo sobre barbárie da História – o cheiro cadveroso das valas comuns de Treblinka, as câmaras de gás de Auschwitz…  
(À guisa de conclusão, diria que em Portugal, a linha estética de Wieland Wagner, tanto quanto posso saber, não teve expressão particular na casuística da programação wagneriana dos tempos do pós-guerra.  O que não quer dizer que não possa ter mais ou menos influenciado o trabalho de um ou outro encenador de terceira ordem  dos que se encarregaram de encenar Wagner em S. Carlos. 


Tivemos em S. Carlos, isso sim, alguns interessantes trabalhos encenográficos do filho de Wieland, Wolf-Siegfried Wagner, que nos visitou assiduamente pelos finais dos anos 70 e princípio dos anos 80. Um Wolf-Siegfried a meu ver algo distanciado das propostas estilísticas do pai e mais próximo das concepções de Chéreau, historicistas, materialistas dialécticas, talvez, se assim lhe quisermos chamar. O que pode ter sido, para o filho do renovador da estética de Bayreuth uma bela maneira de muito freudianamente renegar a família, matar o pai.)

1 comentário:

  1. Muito interessante! Parece que ainda hoje sentimos o impacto da inovação em Bayreuth - será que algum dia vamos reconhecer-lhe a genialidade? Obrigado pelo seu texto :)

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