A UTOPIA, A PAZ E A IMORTALIDADE
Utopia é termo que pode significar uma aspiração natural ao
Homem e que, eventualmente, e à partida, o Homem entende irrealizável,
persistindo contudo em acreditar nela, mesmo para lá do que se possa considerar
como imediatamente racional. A paz entre os homens, a paz universal, faz parte
do equipamento utópico do género humano. Parece uma impossibilidade, em vista
do que sabemos e do que observamos a toda a hora, mas continuamos a acreditar
que pode ser possível. Tal como a imortalidade.
Há quem diga que a qualidade de uma utopia só se descobre depois
do desaparecimento dessa utopia, ou depois de deixarmos de levar tal utopia a
sério. A utopia poderia bem ser um programa para a sociedade perfeita dos
tempos a vir. Falanstérios, comunidades anarquistas, comunidades silenciosas,
comunidades rurais, comunismo. Mas uma utopia não tem necessidade de vir a ser
uma realidade integral e tangível para abanar a sociologia e a História. A
qualidade da utopia é a capacidade de exercer uma influência sobre o pensamento
e sobre o real que passa por alto a sua possibilidade prática de realização.
Toda a grande utopia irradia realidade. Pode até promover uma
teoria.
A utopia pode inspirar o pesadelo – pensamos logo no
totalitarismo -, mas a sua irradiação de realidade posta às avessas pode
modificar essa iminência de pesadelo, protegendo a própria utopia da sua
probabilidade de realização.
A utopia assenta em pressupostos outros que a realidade. A
utopia arrasa, queima, destrói e faz renascer.
A utopia vivifica a realidade. Toda a utopia é uma síntese entre
a razão e o imaginário, entre o sonho e o real. E a utopia aparece e
desenvolve-se em paralelo com o aparente triunfo do racionalismo.
Disse Galileu: a natureza
é um livro escrito em linguagem matemática. E abriu-se assim a probabilidade ao mundo
moderno, ao desencanto, à decepção da natureza e do Homem.
Os mais famosos e ousados dos utopistas foram talvez aqueles que
revestiram a sua utopia de roupagens científicas. E pensamos logo em Marx, em
Engels. E no momento exacto em que um e outro proclamaram o fim do socialismo
utópico. Provavelmente mantendo-lhe o núcleo intelectual originário.
Provavelmente transfigurando-lhe a linguagem e a eficácia comunicacional, ao
declararem inaugurado o o tempo de um socialismo científico.
A utopia pode fazer-se passar por uma ciência quando o sonho
regressa à razão e arrisca a hiper-racionalidade e se disfarça de ciência. Caso
da dita utopia marxista. O sonho pretende impor-se, e, para se impor,
dissimula-se nas costas do racional, imiscui-se e participa na tirania da
razão. A razão que pode até transportar consigo um sonho utópico.
Um poeta deve deixar
indícios, não provas. Só os indícios fazem sonhar – escreveu alguém, um poeta por certo, quando se deu conta do
enfraquecimento que o mundo contemporâneo provocou ao poder de sonhar.
A utopia talvez possa ser uma hipótese de aplicação das regras
da poesia ao real prosaico, no sentido de preservar no Homem uma capacidade de
sonho. A utopia pode pretender trazer até ao futuro a memória inconsciente e
colectiva das idades de ouro já passadas.
É a utopia, aliás, que faz pensar numa idade de ouro perfeita,
já não no ignoto e mítico passado, como é comum pensar, mas no futuro. A utopia
resiste à modernidade pela recusa que implica ao ilimitado, pelo eco que
transmite do mundo antigo.
Por sua vez, e não sei em que contexto histórico-político,
Theodor Adorno escreveu: de todas as
abstractas noções, nenhuma se aproxima mais de uma utopia realizada do que
aquela que nos fala da paz perpétua.
A utopia da paz, se pudermos definir as coisas, é uma aspiração
da Humanidade. Mas, atenção, de uma Humanidade moderna. E uma aspiração herdada
de uma Humanidade mais arcaica, todavia não muito, se considerada
historicamente. A aspiração da paz universal eterna remonta ao século XVIII. Precisamente.
Às Luzes. Ao vislumbre do humanismo que
a filosofia das Luzes trouxe ao pensar humano.
Tem-se ouvido falar numa revivescência dos fantasmas bélicos na
Europa. E talvez a situação que se vive no presente europeu, se pensado em
quadros históricos e político-militares ligeiramente mais recuados, fosse já
razão bastante para estarmos no limiar de uma nova guerra europeia. Porque a paz é uma aspiração
predominantemente europeia. E o cerne do pensamento utópico do pacifismo está
em pacificar as relações entre os homens e os povos europeus, em primeiro
lugar, e porque era aqui na Europa que
se encenavam todas as guerras.
O sec XIX trouxe alevantadas e pacíficas esperanças. O
positivismo. O começo da era industrial. A aniquilação da idade feudal criadora
de militarismos e fautora de muitas das guerras mais famosas. Mas tudo
descambou no sec XX. As utópicas intenções pacifistas desvaneceram-se no sec. XX, que começa logo por uma guerra em formato insólito até então – mundial – e
de violência nunca antes imaginada. Uma guerra que não serviu de emenda, posto
que logo de seguida se foi cair noutra ainda mais sangrenta.
O sec XX, posterior às Luzes e aos positivismos, pode
considerar-se o século mais violento e sangrento de toda a História do Homem.
E, ilustrado por sabedorias anteriores e óptimas intenções e sistemas de
pensamento, seria o século mais obviamente fadado para o progresso das ideias de
uma paz universal.
As guerras do sec XX
decorreram de outros conflitos, de conflitos de ordem, se se pode dizer,
espiritual, as ideologias, as quais, por seu turno, reflectem os profundos
fossos de ordem social existentes na Europa e no mundo, sem falar do tópico
espiritual que também podem ser os nacionalismos. E ainda dentro do foro
espiritual não tardará aí a religião para repor algum do antigo sabor feudal
nas guerras do sec XX. Mas nem por isso, no sec. XX, os discursos de paz
deixaram de se fazer ouvir…
A Sociedade das Nações, antepassada da ONU, chegaria mesmo a
estabelecer uma lei universal que tornaria a guerra uma ilegalidade entre as
nações.
Guerras de emancipação colonial. Guerras regionais e tribais.
Genocídios. O Médio Oriente. O Vietnam. A Bósnia. O Kosovo. A Tchechénia. O
Ruanda. E mais recentemente a guerra sem fim à vista da actualidade, declarada
pelos EUA ao terrorismo maioritariamente islâmico.
Nunca – ou poucas vezes - se esteve tão longe da paz. E nunca a
utopia da paz marcou tanto o pensamento do Homem e a acção dos governantes.
A paz perpétua é um sonho,
mas nem é um bom sonho – palavras do marechal Moltke.
Mas precisamente a guerra sem fim dos EUA ao terrorismo pretende
significar um esforço de paz perpétua pela criação prévias condições à
realização dessa paz perpétua, dessa utopia.
Uma paz perpétua parece não ser possível então sem uma
quantidade prévia de guerras.
E quem acredita que a multiplicação das guerras conduzirá à paz,
nem que seja efémera?
Mas esse desiderato parece ter sido acolhido como destino
incontornável pelos EUA no seu esforço de impor uma constituição democrática e
republicana a quem quer que seja e funcionando como requisito único de diálogo
pacífico entre nações.
Há quantas décadas os EUA, polícias do mundo que, apesar de
tudo, ainda se arrogam de ser, não andam por esse mundo a combater guerras como
condição de assegurar a paz à escala mundial?
Que condições seriam então necessárias para assegurar uma paz
mundial e eterna? As melhores condições de vida eternamente garantidas a todos
os povos, a todos os homens? Quando chegar o dia em que cada família da África
sub-saariana, por exemplo, puder dispor de pleno emprego, uma bela casa, um
razoável automóvel, boas roupas, férias pagas, e tudo isto em regime de
democracia política e economia de mercado, à ocidental? E como ficará
configurado o mundo ocidental quando esse dia nascer?
A criação da ONU, logo após a devastação da II Guerra, visava à
erradicação de uma vez por todas do milenar fenómeno da guerra. O primeiro
passo para a paz e a felicidade no mundo exterior à Europa e aos EUA era a
emancipação do jugo colonial. No seio da ONU a responsabilidade de assegurar o
equilíbrio pacífico no planeta recaiu sobre os membros do conselho de
segurança.
Está à vista.
Bem podem os estados menos poderosos assinar tratados de
intenção pacifista ou constituir tribunais internacionais. Os estados bélicos,
mesmo se auto-proclamados garantes da estabilidade e da ordem universais, como
os EUA, têm poder e força suficientes para ignorar, se lhes convier, todas as
disposições pacificadoras do resto da comunidade internacional.
Mas a guerra, do ponto de vista das relações internacionais,
pode ser considerada uma eventualidade normal. Há legitimidades para a guerra.
Ou antes: uma guerra pode ser considerada juridicamente justa sem precisão
alguma de justificações, ou demasiadas justificações, quanto à justiça ou
injustiça das razões de quem a promove, de quem a declara.
Se há circunstâncias no mundo actual que se possam, dentro de
certa medida, considerar factores anti-belicistas, um deles é a economia, o
crescimento económico, o sistema neo-liberal.
No contexto da convivência económica liberal não há guerra que
se possa desejar para lá da guerra da concorrência, dos preços, das taxas de
juro, o comércio, as indústrias, o import-export. O liberalismo não olha para
as perspectivas de guerra com bons olhos. Bem, a menos que se trate de matérias
primas essenciais. Petróleo, nomeadamente. Aí está.
Kant, em tempos de pensamento luminoso, é que chamava a atenção
dos príncipes no sentido de compreenderem que a glória deles fundar-se-ia de
futuro na cultura interior dos seus estados, mais do que na força das suas
armas.
O pensamento medieval, necessariamente cristão, equilibrava-se
entre a doutrina da guerra justa – desde que fosse o papa a entidade arbitral –
e a ideia de uma paz universal garantida pela estabilidade política do império.
O pensamento moderno tem em conta a limitação das guerras porque
também terá de ter em conta que a pluralidade actual dos estados decorre de uma
decomposição do mundo cristão.
Deveria caber ao Direito o papel fulcral na garantia da paz
perpétua no mundo. As doutrinas do equilíbrio de forças são outras das
componentes da utopia, visto que os equilíbrios são precários, sempre foram
precários, não obstante as ideias já do sec. XVIII de uma aliança que fosse
duradoura entre os estados europeus, e
cristãos. Kant viu bem quando disse que o sistema não funcionaria, a menos que
fosse prevista a independência absoluta dos estados e se a totalidade desses
estados adoptasse uma constituição republicana.
A paz não poderia ser garantida a não ser entre povos livres e
tementes de decretar uma guerra que iria ter desastrosas consequências nos seus
próprios territórios e no contexto do belicismo das monarquias absolutas.
Para Hegel, nos seus Princípios
da Filosofia do Direito, de 1821, o Direito internacional era uma
imperfeição. Faltava uma entidade que lhe arbitrasse superiormente as regras.
Para Hegel também a guerra teria a sua moral pela razão simples de poder
acrescentar seriedade à existência humana. E o pensamento militarista alemão
gostava da ideia de uma moral da guerra e dava-lhe um relêvo que hoje nos
custará os olhos da cara a aceitar.
Os atentados do 11 de Setembro, se, ao contrário do que muito se
diz, não mudaram grande coisa na lógica de funcionamento deste mundo, vieram
sem dúvida troçar dos dispositivos da segurança internacional inaugurados a
seguir à II Guerra, nomeadamente os instituídos pela ONU.
O 11 de Setembro fundou um novo e inusitado e quase implausível
tipo de guerra quando a atitude geral do combatente de todas as guerras vinha a
ser determinada pelo imperativo de salvar a vida para continuar a combater. Depois do 11 de Setembro, e das centenas de
ataques suicidas que se lhe seguiram, percebeu-se que existia uma estranha
guerra e que existiam combatentes cuja finalidade não era salvar a vida mas
sacrificá-la, deixando a outros seus irmãos a continuação eterna do combate. Decorre
daqui, em boa parte, a teoria anti-terrorista americana da guerra sem fim –
nunca deixarão de nascer novos combatentes dispostos a imolar-se e a sacrificar a vida pela sua causa. Uma
guerra sem fim, porque sem fim parece ser a disposição de sacrifício daqueles a
quem o Ocidente e os americanos dão combate.
Mas nem os acontecimentos do 11 de Setembro, do Afeganistão, do
Iraque, e de tudo o mais que ainda estaremos para ver, extirparam das
mentalidades a utopia de uma paz universal eterna, que seria achega de monta a
outra utopia, a da imortalidade humana. Uma utopia que, paradoxalmente, a
ciência vai mantendo viva.
A abolição da morte implicará uma revolução na Biologia,
revolução essa que acha a sua aliada na informática.
Quem dominará e comandará os genes que regulam o desenvolvimento
dos órgãos a partir de células omnipotentes e capazes de reconstituir qualquer
sorte de tecido corporal?
Quem inventará e porá em execução as próteses cerebrais movidas
por nano-robots e actuando sobre os neurónios à escala molecular?
Quando poderemos falar do tele-carregamento de uma personalidade
com a clonagem informática e a possibilidade de multiplicação infinita de um
indivíduo?
Já se esteve mais longe, quer-me parecer.
A utopia, enfim, pode ser o resistente poder de sonhar até num
estádio civilizacional que já não convive bem com o sonho.
Edgar Morin propunha reintegrar a incerteza no estudo e no
conhecimento do real. Navegamos num oceano de incertezas semeado de ilhotas de
certeza. Em 1941, diz ele, o que era mais do que provável, quase indiscutível,
era a estrondosa vitória dos nazis e consequente hegemonia deles sobre a
Europa. Mas muitos conseguiram acreditar que o impossível podia acontecer.
Resistir ao real é desenvolver a esperança e não sucumbir a um
realismo fatalista. Ou será também inocular no real a contribuição da vontade.
Porque à primeira vista realismo e utopia parecem
contradizer-se. E se, para evitar a contradição, avançamos para a utopia
realista poderemos causar estranheza. Mas não será um disparate pegado falar de
utopia realista.
Não há utopia digna de ser levada a sério – enquanto utopia, obviamente
– se não puser um pezinho na realidade. Ou na probabilidade de si mesma.
Tal como, inversamente, nenhum razoável e lúcido realismo passa
bem se não for atravessado por um fio de utopia.
Que sabemos nós… ou o que nos será possível saber… acerca da
extensa realidade do nosso presente? O conhecimento é interpretação,
reconstituição. Não exactamente uma fotocópia da realidade. Além do mais,
confundimos muito realidade com realismo.
Ortega y Gasset fala da nossa inconsciência relativamente ao presente. Não sabemos o que se passa. E talvez o que se passa seja aquilo
que nós não sabemos que se passa.
O real não nos dispensa a noção de que as forças subterrâneas
que formam o presente das nossas vidas nos passam quase sempre
desapercebidas.
Muito bom.
ResponderEliminarNão vale a pena perder o melhor da vida a correr atrás da "informação" permanente - como alguns pobres tontos, que esgotam o pouco tempo de que dispõem a ver os canais "informativos" -, pensando que é isso que nos vai fazer ver e compreender essas forças subterrâneas da realidade, que tantas vezes só descobrimos quando já fazem parte do Passado.
Lembro-me de uma frase que aprendi num programa seu: «- Nada como ler jornais antigos, para se andar bem informado..."!
E ler bons livros, acrescentaria eu...