domingo, 5 de maio de 2013


                       VIA DEGLI AVIGNONESI
   


         Está a dar-me para falar de uma viagem que realmente me apeteceu fazer, e que realmente fiz, em lugar de falar das outras, das que não fiz porque, entre outras coisas, não me apeteceu fazê-las.
         Na conta das (não muitas, por sinal) cidades que visitei comparece, porque não podia deixar de comparecer, Roma. E estando eu um belo dia em Roma (por acaso não era um belo dia, estava frio e chovia água se Deus a dava), numa ruelazinha estreita, escura, antiquíssima, à porta de um modesto restaurante, fumando o meu cigarrinho enquanto não vinha o spaghetti alle vongole vere, eis que a chuva desaba mais forte e me recolho num portal ao lado do restaurante, fumo o cigarrinho, olho lá para dentro, reparo num balcão, tomo conhecimento de que se trata de uma agência de apostas e lotarias, dou uma última passa, deito fora a beata, vou para voltar ao restaurante, olho um pouco para cima, reparo numa lápide e sinto uma espécie de comoção, uma forte comoção cinéfila. Aquela lápide comemorava o lugar exacto onde Roberto Rossellini executara a primeira volta de manivela do filme que, segundo alguns, inauguraria o neo-realismo cinematográfico. Roma, Cidade Aberta.


         Passaram-se anos. Estou de novo em Roma, e agora está sol e calor, e compro um livrinho de pequeno porte. Título: Fare un Film. Autor: Federico Fellini. Meto-o na bagagem e esqueço-o.

         Passam-se mais um ou dois anos, a minha vida transforma-se num vasto espaço de ociosidades, pego num livro ao calha, pequeno, de bolso, levo-o para a cama para me ajudar a adormecer. Fare un Film. Fellini. E a páginas tantas dou com a história (verdadeira) que aqui me trás hoje, e mui prazeroso revivo aquela hora de almoço numa ruela da Roma fria e chuvosa, acoitado no portal manhoso de uma agência de apostas: Via Degli Avignonesi. E fico a saber umas quantas coisas mais acerca das primeiras voltas de manivela de Roma, Cidade Aberta.
      
  A guerra está a terminar. Fellini, ainda que tendo colaborado de uma maneira ou doutra numa ou noutra produção em tempos de guerra, e feito trabalhos de jornalismo cinematográfico, nunca lhe passou pela cabeça vir um dia a realizar um filme. O que ele gosta mesmo de fazer é desenhar, de fazer caricaturas.
         Quando os aliados chegam a Roma, Fellini ganha a vida a correr as esplanadas e os restaurantes e a oferecer-se para debuxar um ou outro retrato rápido, uma que outra caricatura. Já em tempos de liceu fazia isso, corria as praias da terra natal Rimini, smocking e lacinho, a retratar os banhistas em pelota. 
           Desenhar era um automatismo para ele. Era ter papel e lápis a jeito, fosse qual fosse a situação, o lugar, e punha-se a rabiscar desenhos. E depois desenhara publicidade para algumas revistas e jornais. Em tempos de miséria, quando vem para a capital à procura de vida, são os desenhos e as caricaturas que lhe valem. Diz ele que nessa época era magríssimo e que a sua figura devia fazer pena aos turistas que se deixavam caricaturar e não raro o convidavam a abancar com eles e a comer qualquer coisa.

                                              

         Roma é finalmente libertada e é o caos. Nem pensar em procurar trabalho em cinema ou em jornais. Tinha amigos, muitos, amigos dos cafés e das tratorias, que como ele, é claro, passavam dias de muita penúria.


                                                            

         Mas lá está a tal coisa, é a necessidade que aguça o engenho. E uma noite, ele e os amigos, que também eram da arte, tiveram uma ideia. Abrir uma loja de caricaturas – bottega della caricatura. O nome do negócio saíu-lhes rápido da imaginação e ao nome da loja acrescentaram mais alguns pormenores: Funny Face Shop – Profiles Portraits, Caricatures.

         Os americanos estavam por ali. Os GI’s desembarcavam em Roma aos magotes, davam um giro pela cidade, e diz Fellini que faziam bicha (fila) à porta da bottega na expectativa de levarem para o Michigan ou para a Carolina do Norte um souvenir original e personalizado.
         Mas personalizado como?
      Personalizado porque Fellini e os amigos inventaram umas vinhetas que desenhavam em série e com situações turísticas muito típicas – o corpo fardado de um soldado americano a matar um leão no Coliseu; outro, em Nápoles, dentro de um barquito, a pescar uma sereia; outro em Pisa, a aguentar a torre inclinada só com um braço. Desenhavam uns cinquenta exemplares de cada tema deixando o espaço da cara em branco. 
         Organizaram um album com o mostruário dos produtos. E pronto. O cliente camone aparecia. Escolhia o tema que mais lhe agradasse, olhe faz favor, quero mandar para casa um retrato meu a matar um leão no Coliseu de Roma. Estava escolhido o cartão e em três tempos Fellini e os amigos desenhavam e pintavam a cara do rapaz no espaço em branco. Com a cidade cheia de americanos, sul-africanos, ingleses, australianos cansados de guerra, era uma mina.
         Mas foram mais longe. Um outro amigo deles que tinha trabalhado na rádio e na indústria dos discos inventou uma espécie de massa peganhenta que se aplicava em pequenos discos de metal e que podia conservar uma gravação sonora de minuto e meio. Outro ricordo interessante para juntar ao retrato do soldado yankee que aguentava a torre de Pisa só com um braço. Dear mom, yesterday I’ve hold the Pisa Tower with my arm. Dear Mary, yesterday I’ve killed a lyon in Rome Colosseum…

            

         Havia uma cabina improvisada dentro da lojeca onde os camones gravavam as mensagens na placa peganhenta que depois juntavam ao desenho, pagavam, e estavam despachados dali.
         O que os soldados americanos não sabiam era que aquele disco só se podia ouvir uma única vez. Se o fossem ouvir uma segunda vez o peso da agulha removia a pasta e o disco ficavam parecido com um pirezinho de esparguete. Mas como os desenhadores sabiam que as licenças dos soldados eram, em regra, só por três dias, e que no primeiro desses dias davam uma volta sacramental pela cidade, no segundo apareciam lá pela bottega, e no terceiro iam embora, estavam todos de cavalinho, porque quando a vigarice fosse descoberta o soldadinho texano andaria a milhas da Cidade Eterna.
         O pior é que os cálculos de Fellini and friends nem sempre batiam certos com a realidade e algumas vezes tiveram de aturar as enfurecidas reclamações de militares enganados por aquela raça de caricaturistas latinos e lhes atiravam à cara a massa encarniçada e pegajosa da gravação que tinham tentado ouvir uma segunda vez e lhes chamavam bastards, fascists e outros primores. Oh, sorry, very sorry, replicavam os caricaturistas, technical trouble, very very sorry.  E Fellini pinta esses momentos como cenas escaldantes de uma crise em  saloon de filme de cow-boys.


     Uma tarde, a casa à cunha de fardas, soldados, aviadores, marinheiros, sul-africanos, canadianos, ingleses, australianos, americanos à compita para se fazerem retratar e gravar as mensagens, aparece no meio da balbúrdia um fulano  pálido, vestido à burguês, chapelinho, queixo proeminente, aspecto de emigrante. Quem era? Fellini conhecia-o. E ele estava ali mesmo para falar com Fellini. Era Roberto Rossellini.


         Fellini esta a desenhar e a pintar a cara de um soldado americano, inglês ou australiano, mas com traços de chinês. Rosselini faz-lhe sinal. Queria dar-lhe uma palavrinha. Diz Fellini que no entretanto, enquanto ele trabalhava no retrato do chinês,  Rossellini, para criar uma atmosfera favorável, ia fazendo acenos de aprovação ao que ele estava a fazer, para impressionar bem o chinês. E curvava-se para lhe ir falando ao ouvido, para lhe dizer ao que ia. Ia para lhe pedir uma colaboraçãozinha no argumento que estava a preparar sobre a vida de um padre, Don Morosini.
         (Isto pede uma nota explicativa, peço desculpa, mas tenho que dizer que se tratava da vida de um sacerdote que aderira à célula de Monte Mario da resistência romana; que foi denunciado por um bufo; que foi horrorosamente torturado; que guardou sempre um heróico silêncio sobre as actividades da célula; e que, apesar das pressões do Vaticano, foi fuzilado no dia 3 de Abril de 1944. E este parêntesis pede uma nota arrepiante: Don Giuseppe Morosini dirigiu-se aos homens do pelotão de fuzilamento e gritou-lhes alto e bom som as palavras de Cristo na cruz: “Deus perdoar-vos-à porque vocês não sabem o que fazem.” E ainda outra nota ainda mais arrepiante: dos doze elementos do pelotão de fuzilamento, à voz de fogo, dez dispararam para o ar. Don Morosini, atingido só por duas balas, não morreu, ficou ferido e acabou por ser morto com dois tiros na nuca pelo oficial fascista que comandava o pelotão.)
                                                 
         Bem. Fellini vai desenhando e pintando o chinês e vai falando com Rossellini.
- Sabe, senhor Rossellini, eu agora ando muito ocupado aqui na loja… isto está a dar, com os americanos aqui em Roma não há mãos a medir, as liras estão a cair em grande, e caixas de cigarros, e latas de soup and vegetables, de roast-beef, não há tempo para mais nada, e depois, sabe, senhor Rossellini, o cinema, para mim, pff… é um assunto um bocado… um bocado, como direi, remoto… não é coisa para nós italianos, e para mais agora, que estamos a voltar a ver o Gary Cooper, o Fred Astaire, a Harlow… e aquela rapariga com muita habilidade que está aparecer, a Crawford…

   

         Entretanto, o chinês vê Fellini meter o pincel no amarelo e começa a ficar nervoso. Rosselini continua a bichanar-lhe aos ouvidos…
         - É que eu gostava de ter o Aldo Fabrizi no papel do Don Morosini… eu sei que tu conheces o Aldo Fabrizi… an?, que tal? Se tu pudesses dar um jeito, falar com ele e tal… convencê-lo…


         Nisto, o chinês dá um salto, agarra Fellini pelo pescoço, encosta-lhe uma navalha à garganta e começa a gritar:
         - I’m not yellow! I’m not yellow!
         Rossellini quer agrarrar o chinês, quer acalmá-lo, não, não, que ideia, é agora amarelo…
         - Of course… of course, it is true, you not yellow..
         - He made me yellow!
         - Oh, no… you not yellow… - e grita para Fellini: – Per la madonna, Fedé, fá-lo cor de rosa, Fedé… cor-de rosa… não tens aí o rosa?
         Meteu polícia. Sacaram a navalha ao chinês e correram com ele.
         Isto tudo só para dizer que o filme sobre a vida de Don Morosini em que Rosselini pedia a Fellini (ini) para convencer Aldo Fabrizi a aceitar o papel, era esse mesmo. Ou passou a ser esse mesmo, Roma, Cidade Aberta.


         Primeiras tomadas de vistas justamente num teatrinho da Via Degli Avignonesi – aquele mesmo espaço que meio século depois conheci como agência de apostas de má morte.
         Estão a filmar. Em frente do teatrinho há uma casa de putas. Da casa de putas sai um soldado americano, já meio grosso. Sai, a ruela é muito estreitinha e o rapaz tropeça nos cabos eléctricos que fazem parte da maquinaria das filmagens e se estendem pelo passeio. E cai. E parte o nariz. E levanta-se. E cambaleia. E pragueja. Quer saber o que se passa, quem são aqueles, de quem é a responsabilidade de ele ter caído e partido o nariz, quem é que o vai indemnizar pelo sangue que lhe escorre cara abaixo.
         O soldado americano entra no teatrinho aos gritos. Estão a filmar. Pára tudo. Que se passa? Acalmam-no. Fazem-no sentar. Chegam-lhe um lenço para limpar o sangue. O rapaz ainda está meio tonto, confuso. Olha em redor. Que é isto? Reflectores, cabos, luzes, a máquina. Mas isto é cinema, é uma filmagem! Trazem-lhe gelo para pôr no nariz. Dizem-lhe que se está a meio da rodagem de um filme. E é então que o americano se abre todo num sorriso. Estou com a minha gente, diz – ou pensa.
      
      
      Declina a identidade e declara ser um grande produtor cinematográfico americano, sim, Hollywood, claro que sim, oh, oh, oh, claro que faço parte da indústria, produzi este e este e aquele filme. A Fellini, os gestos e as falas do rapaz parecem-lhe copiados de Jimmy Durante.
         - Que me caia já um raio em cima se eu, com o faro que tenho de produtor americano, não estou a sentir o cheiro do próximo grande sucesso para o filme que vocês estão aqui a fazer.


         Tinham-no deixado assistir à rodagem de alguns planos e o soldado-produtor  achou tudo maravilhoso. Thank you. E abraçou-se a Rossellini. Thank you. E abraçou os electricistas. Thank you, thank you. E os maquinistas, e os caracterizadores e o moço do bar. Thank you. E, já que apareceu o moço do bar, fez questão de pagar uma rodada.


         A rodagem de Roma, Cidade Aberta terminava e pelos vistos o soldado americano produtor de cinema ainda estava em Roma quando se organizou o primeiro visionamento. Conta Fellini que no fim da sessão o rapaz estava muito emocionado e tinha os olhos húmidos. E que se levantou do lugar e foi para a frente, para debaixo do ecran. E que falou em voz trémula. Trocaria todos os filmes da sua longa carreira de produtor cinematográfico nos States por um só enquadramento do filme que acabava de ver. Era para ele um orgulho sem fim estar presente naquela data histórica para o cinema. O cinema naquele dia tornara-se finalmente uma arte adulta.


         Abraços e beijos e lágrimas. O soldado foi-se embora dias depois e levou o filme para o promover na América.


         Vem a saber-se que o soldado não era nem nunca na vida tinha sido produtor de cinema. Não passava de um publicitário. Produtor tornou-se ele tempos depois, e também por empenho de Rossellini.
         E o soldado falso produtor de cinema volta mais tarde a Itália como produtor de verdade, e produtor vem a ser ele de um novo filme de Rosselini. Paisà.   

3 comentários:

  1. Adorei este apontamento. Tanto mais que, curiosamente, revi há pouco tempo "Roma, Cidade Aberta"...

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  2. Eu também... mas aqui o nosso amigo a dedilhar memórias, vai ser um problema para o acompanharmos com-digna-mente. Abç para si, JCosta

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  3. Muito interessante.

    O Mundo está cheio de acasos, mas que raramente sucedem por acaso...

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