terça-feira, 3 de setembro de 2013

   QUEM DISSE QUE O PÚBLICO TINHA SEMPRE RAZÃO?
                           
                    
       
         Não nos esqueçamos de Verdi. Também é o ano dele. 
        Tenho homenageado mais frequentemente Wagner do que Verdi. O que também se compreende. Wagner teve uma vida mais complicada, muito mais. Wagner meteu-se em alhadas complicadíssimas e tocou em assuntos de subtileza, melindre e reserva que ao Verdi, homem do concreto das vidas, nem pela cabeça passavam. Verdi era um homem simples, um latino prático, quer dizer, de mente complexa, sim, sim, mas de outro tipo de complexidades. Um terrone, enfim, e com toda a honra e orgulho nessa qualidade, que nunca pretendeu filosofar e só quis viver confortavelmente a sua vida e escrever bem a música de que a maioria gostasse. Grande serviço prestou ele assim à humanidade. Ou seja, à qualidade de ser humano…
       Verdi.  Parece que o estou a ver, um braço afectado pelo reumático, Agosto de 1852, quando um conhecido de Londres, do tempo dos ensaios de I Masnadieri, acaba presidente da república francesa, Louis Bonaparte, e faz dele cavaleiro da Legião de Honra.
Debaixo do dorido braço tem ele pronta a servir mais uma ópera, Il Trovatore. E vai servi-la a Roma. Por alturas do Natal. E já resolveu a sua vida criativa para os próximos tempos, La Traviata. E essa será servida no La Fenice de Veneza de tão gratas memórias.


          Chega a Roma. Melhora e piora do reumatismo do braço e custa-lhe os olhos da cara sair de casa, e só o faz por obrigação profissional, para dirigir os trabalhos de  montagem de Il Trovatore. Em casa vai trabalhando na nova partitura, vai compondo, devagar, devagar.
         A noite de 19 de Janeiro de 1853 é mais uma noite de triunfo para ele. Il Trovatore estreia e desperta grande entusiasmo no público romano do Teatro Apollo, ao mesmo tempo que a crítica se cobre de crepes em memória da grande e delicada tradição italiana do bel-canto, para sempre espezinhada pelos sons pousées das novas óperas verdianas, mais os seus soluços doloridos, as guturais gritarias de raiva ou os delírios de alegria demencial. Verdi exprime por música os seus fantasmas íntimos, a sombria paisagem da sua alma. Tal poderá custar a perda de voz  a alguns divos e divas do canto adocicado, mas… paciência, o tempo passa, nada a fazer contra isso, o público gosta, e o público é que manda, o público tem sempre razão, e para os cantores é mister cavalgar a crista da onda, e essa crista e essa onda trazem na espuma um nome: Verdi. Um novo tipo de cantor estará para aparecer, dramático, de grande e extensa voz, de temperamento vocal furibundo – o cantor verdiano.


        Estreado o Trovatore, Verdi não descansa enquanto não regressa a penates e não dá os últimos retoques na partitura de La Traviata. O Piave ainda não acabou de limar o libreto, e mesmo nas passagens já prontas há alongamentos de cenas que podem fazer adormecer o público, especialmente para o fim da ópera, que deve ser rápido se não quisermos perder o efeito – isto é Verdi em carta ao presidente do Teatro La Fenice.
         Chegam notícias de Paris. Más novas sobre a Donatelli, a cantora que o La Fenice contratou para estrear a La Traviata. Verdi põe os pés à parede e manda dizer que não a aceita, que o presidente do teatro terá de providenciar outra prima-donna, e depressa, se quiser estrear a ópera. Pode ser a Penco, pode ser a Boccabadati ou a Piccolomini. A meu ver, a melhor escolha seria a Penco. Tem boa figura, canta com alma e fica muito bem em cena.
         Rebentam tumultos em Milão. As portas da cidade foram fechadas. Fevereiro de 1853. Há condenações à morte pra os seguidores das ideias revolucionárias de Mazzini.
         De momento, Verdi está mais preocupado com os fragmentos de poesia que lhe faltam para dar por concluída a escrita de La Traviata. Entretanto, vai preparando a sua chegada a Veneza e vai marcando alojamento no Hotel de Europa, com a condição de lhe porem no quarto um piano que preste. E também gostaria muito que me arranjasses por aí – escreve ao libretista Piave - um carpinteiro que me fizesse uma estante de música que seja bastante alta para eu poder escrever de pé. Se não, vê se me consegues uma de empréstimo. Mas também vou precisar de uma boa poltrona. Não te preocupes com os preços.


         Está descontente com os primeiros ensaios da nova ópera. O tenor tem pouca voz, o barítono Varesi parece desinteressado e da soprano já ele tinha ouvido falar das deficiências. O caso é que os cantores se sentem deslocados num tipo de ópera com que não estão calhados e parecem renitentes em seguir as indicações do autor. Porque, enfim, La Traviata traz a novidade de ser ao mesmo tempo que uma ópera burguesa uma tentativa de estilo verista e onde Verdi faz um passo adiante do que fizera com a Luisa Miller, ópera burguesa, está bem, mas inserida num quadro romântico.


         E depois, La Traviata era um avanço histórico no contexto do melodrama cantado. O assunto era actual, passava-se no tempo actual, caso raro e nunca visto, e as roupas eram as do dia-a-dia de 1853.         


         Verdi reflecte nas relações da sua ópera com a obra de Dumas Filho La Dame aux Camélias, que quando posta em cena em Paris não resultara nem drama nem comédia. Une piéce mêlée de chants, era o que era, e representada no Teatro do Vaudeville.
Verdi acolhia do original o tom desenvolto e por música acrescentava-lhe a paixão. Seria uma primeira etapa na direcção de uma espécie de comédia musical inspirada em episódios da vida real e corrente.


         La Traviata estreia a 6 de Março de 1853, fadada para entrar na lista dos mais retumbantes e históricos fiascos da cena lírica.


         Os espectadores irritaram-se ao ver os cantores no espaço sagrado do palco vestidos à moda do dia, tal qual eles se vestiam para ir à rua ou frequentar a banal plateia?
O público irritou-se com com a debilidade da voz do tenor ou com o desinteresse do barítono?
O púbico riu do drama ao presenciar durante três actos as movimentações de uma soprano alentada a quem no último acto o médico prevê que a tuberculose em fase terminal não lhe concederá senão umas poucas horas de vida?
Porquê o fracasso?


         Verdi escreve aos amigos mais chegados: La Traviata foi um fiasco. Não procuremos as causas. É assim a vida. Ou: não te escrevi depois da primeira récita, escrevo-te depois da segunda. O êxito anunciado deu em fiasco. Decididamente fiasco. Não sei se quem é a culpa. É minha ou dos cantores? É melhor nem falar disso. Nada te direi acerca da música e permite-me que não te fale dos executantes. Ou ainda (ao editor Ricordi): Custa-me dar-te uma triste notícia, mas não te posso esconder a verdade. La Traviata foi um fiasco. Culpa minha? Culpa dos cantores? O tempo julgará.


         Não se acusa o público do La Fenice de estar enganado quanto à qualidade daquela ópera. Verdi muito menos o acusa. Tem por princípio a absoluta liberdade de julgamento do público. Tem com o público uma relação que ele reputa de saudável e coerente. O público soberano que o leva em triunfo hoje pode ser o mesmo público soberano que o apupa amanhã, e se ele lhe dá razão pelo triunfo estará obrigado a dar-lhe razão pela desfeita. O público julga como lhe parece. Está no seu soberano direito.


Mas há outra instância de recurso. Que é o tempo. O tempo é juiz mais imparcial do que a circunstancia proteiforme do público de um dado momento, de um dado lugar, de uma dada idiossincrasia.  E é ao julgamento do tempo que Verdi em última instância se submete.  
         Ainda assim, Verdi e a sua La Traviata têm quem os defenda. Há críticos a destacar a beleza da partitura – independentemente do guarda-roupa ou da envergadura física da cantora. O critico da Gazzetta di Venezia não partilha da opinião de Verdi de que o público é soberano e tem sempre razão nos seus juízos e dá-se à ousadia de opinar que o público também se engana, pesando embora o eventual desacerto dos cantores. A Traviata teria por certo novas oportunidades de exercer mais tarde uma bela vingança sobre o público do La Fenice. E não seria caso virgem. A Semiramis, de Rossini, também baqueara no La Fenice diante do mesmo público, e depois viu-se a carreira que fez.


         Verdi, não sei se muito ou pouco ferido pelo desastre artístico de La Traviata, coisa a que não estava nem pouco mais ou menos habituado, debruça-se uma vez mais sobre aquele seu eterno projecto que nunca veria a luz da ribalta, o Rei Lear. Pensa passar o próximo inverno em Nápoles, mas a meados de Outubro vai a Paris. Antonio Somma continua a trabalhar num libreto para o Rei Lear e lá entende que Verdi foi a Paris negociar um contrato para o estrear lá. E está enganado. Não tenho nada que ver com o Teatro Italiano de Paris. A além de tudo o mais, o Rei Lear seria assunto por demais vasto  e de tal modo novo e ousado em termos de forma que não me dá vontade de o arriscar por estas paragens, onde não se compreendem senão as mesmas melodias repetidas há vinte anos.
         Está, sim, em negociações com a Opera para um libreto de Scribe, Les Vêpres Siciliennes, que se compromete a fazer estrear ali no inverno de 1854/55.
         Pensa numa possível reprise de La Traviata em Roma, isso pensa. Começa a compor as Les Vêpres Siciliennes, mas o trabalho não anda. Nesse entretanto, um certo Antonio Gallo, indefectível admirador do Maestro, de violinista de mérito e editor muscial que já é, quer tornar-se empresário – vinha de uma família veneziana proprietária de teatros, o San Giovanni Crisostomo e o San Benedetto, nomes já então mudados (julgo que até hoje) para Teatro Malibran e Teatro Rossini. E o primeiro projecto empresarial deste Gallo é uma reposição (revanchista) de La Traviata. Em Veneza,  está muito bem, mas não no La Fenice.
         Verdi avisa-o: que pensasse bem no que ia fazer, porque quando se arrependesse daquele passo poderia já ser tarde demais.


         Antonio Gallo não atende aos conselhos de Verdi e forma uma companhia lírica. A Spezia, o Landi e o Coletti para os papéis principais. Com Piave a tratar  da direcção cénica. E garantindo a Verdi  a quantidade e qualidade de ensaios que ele entender.
         Verdi já dera ao editor Ricordi as suas ordens no respeitante a La Traviata: os direitos estariam reservados até ao dia em que fosse possível montar a ópera sob estricta superintendência sua. 
E começa a rever a partitura. E retoca uma que outra passagem, sem contudo alterar nada de estrutural. Na tirada do barítono pura siccome un’angelo muda alguns compassos e altera alguma harmonia e instrumentação. A passagem também baritonal bella, voi siete, e giovine leva alterações. E assim por diante. Pouca coisa. Até à conclusão da ária Di Provenza il mare, il suol, uma cabaletta que muitos acharam uma pepineira vulgar inesperada no mestre de Busseto. O que portanto significa que as mais relevantes modificações se fizeram no 2º acto.
E era bom que se melhorasse a acção dramática com o indispensável cuidado de a tornar mais rápida e mais concisa.
E… ponto crucial: vestir as personagens à moda de 1700!  


E chega a noite de 6 de Maio de 1854. Catorze meses são passados depois da estrondosa queda, e estamos ainda em Veneza. Mas agora no Teatro Gallo a San Benedetto. E é a vingança. E  é o triunfo de uma das maiores obras-primas do teatro lírico de todos os tempos.
O público não tem sempre razão. Na segunda récita alguém escreve a alguém a dizer que o entusiasmo é indescritível. Os mesmos espectadores que primeiramente tinham condenado ao fracasso La Traviata gabam-se agora de sempre a terem considerado uma belíssima ópera.
Verdi limita-se a escrever: a Traviata que presentemente se canta no San Benedetto é a mesma Traviata, a mesmíssima, que se cantou no ano passado no La Fenice, apenas exceptuando alguns transportes de tonalidade feitos por mim próprio – sim, sim, maestro, e mais as mudanças abissais de época e de guarda-roupa, diria eu…  
Ricordi, o editor, também tem notícias, e escreve ao seu autor: é preciso que te repita que em Veneza não há exemplo de sucesso parecido com o da Traviata? Nem mesmo no tempo do teu Ernani. Gallo contou-me que a terceira noite foi uma loucura de aplausos e que ele mesmo, Gallo, empresário, foi obrigado a ir a cena agradecer os aplausos no fim da récita. Nunca tal se viu. Mas foi assim.



E de imediato La Traviata foi representada com enorme sucesso em todos os teatros de Itália e nos principais teatros estrangeiros. Até hoje.


1 comentário:

  1. Primoroso. Prefiro a História, os sítios, as gentes, às efabulações dos priorados. Sei lá quem anda a mandar na gente... só vejo outlets de chineses e vales de desconto! A mess onde nos encafuaram.
    Tal qual as "autárticas" como andam por aí no "face" nos "tesourinhos", um ver se te avias. Por ex.: em Chamusca um tal candidato "Queimado" qualquer cheira-me a churrasco...Verdade verdadinha que nunca julguei que houvesse tanta iliteracia e tanta estupidez juntas. Pobre povo, nação (que foi)valente.
    abraço

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