quarta-feira, 25 de setembro de 2013


                         O SILÊNCIO E AS ELITES


Kant pensava no Homem e nas comunidades, claro, bastante ao arrepio das categorias da vida comunitária e política de hoje.
Um primeiro preceito kanteano era o de cada um pensar por si mesmo e assim obter o estatuto moral de ser livre, uma vez que liberto das conivências e dos preguiçosos abandonos mentais ao pensar mais comum das massas onde está inserido.
O pensar reflectindo a opinião geral falsifica a verdade da convivência, é mais uma achega a uma falsa universalidade de parecer, integra-se no movimento geral do pensamento, privilegia a superstição em lugar da verificação.
A tendência do pensamento humano talvez seja a de ser dirigido por outrem ou condicionado pelo geral.
A razão pode ser passiva, mas o homem esclarecido pode e deve ultrapassar-lhe a passividade.
Bom, mas no mesmo âmbito desse pensar kanteano por si próprio haveria que defender-se de um natural egoísmo de mentalidade  e ensaiar um pensar pluralista. É possível pensar por si próprio e todavia em comum com os semelhantes, com aqueles que nos transmitem os seus pensares próprios e aos quais possamos transmitir os nossos.
(Parecendo que não, é de democracia que estou a falar.) 
O pensar por si próprio. Logo: a opinião. No acaso mais ou menos previsto das minhas leituras caiu-me sob os olhos o lucidíssimo ensaio do pensador politico francês Alain Minc sobre a democracia. É, como digo, um pensamento lúcido e como tal nada agradável para os olhos sensíveis dos contentinhos e/ou mais democraticamente deslumbrados.
Começa ele por dizer que com o desaparecimento do optimismo histórico termina uma época que nos foi aberta pelo Século das Luzes. Ou seja, está a terminar um ciclo para a democracia política.


A democracia tem dois séculos – é uma criança ao pé da longuíssima experiência humana das tiranías – e passou esses dois séculos de metamorfose em metamorfose. Quando teve acirrados adversários esteve à altura e entre as suas fragilidades desencantou forças. Agora, que não tem inimigos, deu-lhe para a autofagia e vira essa força contra si mesma.
Rende-se o comunismo, desaparecem as ditaduras militares, é a universal vitória da democracia.


Mas o mal estar desencadeia-se. Uma deserção civil, como alguém disse. Fica-se tão assombrado perante o triunfo democrático que parece que nos recusamos a habitar a democracia.
A democracia e seus optimistas dizem que vivemos numa democracia de opinião porque governada quase apenas em função dos media e das sondagens eleitorais; a democracia e seus pessimistas dirão que dela, democracia, apenas restam alguns símbolos tradicionais.  
A democracia de opinião. É a democracia que presta culto ao imediato. E qual será o primeiro agente de imediatismo nas nossas vidas quotidianas? A televisão. Nem é preciso pensar muito.
    A televisão ou o totalitarismo do instantâneo. A televisão ou a entidade detentora da emoção quotidiana da nossa vida. Captar o sentir da opinião e satisfazê-la. E já está. E acontece a nova metamorfose da democracia.


Fala-se na importância da televisão (mais do que da queda do Muro de Berlim) no movimento da sensibilidade política das massas e no novo fôlego que o sistema democrático representativo quis tomar.




A opinião e as sondagens. A pesporrência e o descricionarismo de um chefe político só poderão ser temperados pelas sondagens. As sondagens que enfraqueceram em tempos Margareth Thatcher, John Major, Helmut Kohl, e as sondagens que evidenciaram os descontentamentos.
Na América, já se sabe, a peleja é entre o presidente e o congresso. E se a cota de popularidade do presidente sobe, os congressistas conformam-se, se ela desce, eis os congressistas desenfreados no ataque ao presidente.

A França elege todos os sete anos um monarca que põe uma equipa de técnicos a governar e só tem que se preocupar com a sua performance nas sondagens.
E os cidadãos parecem gostar do jogo de espelhos das sondagens e dos prestígios e capacidades políticas que são melhores ou piores ao sabor da sondagem do dia. É mesmo. A sondagem evita muitas chatices ao cidadão, dispensa-o da militância política, dispensa-o das manifs. Dispensa-o de pensar. A sondagem faz regredir ao primário a evolução política das sociedades. Os políticos profissionais tornam-se obedientes servos do número. Dão voltas à cabeça quanto à maneira de ganhar pontos percentuais na próxima sondagem. Os discursos procuram antes de mais, antes de tudo, o impacto possível nas sondagens.
Há até quem fale cinicamente das eleições legislativas como uma sondagem em tamanho natural. A democracia de opinião gera tão magníficos simulacros que pode bem dispensar a realidade. 
Todos continuamos a crer que a opinião pública seja igual à soma das opiniões individuais. Vale a dizer que a opinião individual transfere responsabilidades para a opinião pública. O que dá com que vivamos e nos movimentemos alegremente entre memórias e amnésias e às aranhas no torvelinho dos comportamentos sociais.
O homem político, ou o partido, que conjunturalmente vá em primeiro lugar nas sondagens julga-se desde aí detentor de uma legitimidade. Porém de uma legitimidade que não passa de ser imaginária.
Ou então, à força de repetidos, os resultados das sondagens legitimam-se a si mesmos. Como diz Alain Minc: à força de pretender existir essa opinião acaba por consegui-lo. E os homens políticos vergam-se a ela. E se se vergam a ela, obviamente, justificam-na. Se actuarem como se a opinião fosse realidade não correm riscos; mas se não actuarem, multiplicam os riscos.
Equação: opinião igual a sondagem mais jornalistas.


François Mauriac chamou de escroquerie intelectual à autoridade dos media. E, enfim, Mauriac declarava altissonante aos media: Para vós, a opinião pública não se distingue daqueles que ao mesmo tempo a exprimem e a encarnam -  os jornalistas.
Ou como ainda disse Tocqueville: quando um grande número de órgãos de imprensa caminha na mesma direcção, a sua influência, a prazo, torna-se irresistível e a opinião pública, flagelada sempre do mesmo lado, acaba por ceder  aos seus golpes.


Em sociedades complexas como a democrática, o jornalista é o único que é ao mesmo tempo espectador e actor. Nunca está sujeito à sua própria crítica. Penso, logo: sou a opinião pública.
Estaremos perante uma das últimas – ou, quem sabe, a última – das metamorfoses da democracia representativa?
Ou estamos na revolução que fará nascer a nova forma: a democracia de opinião.
Quem o poderá saber?
E como valorizar o voto do cidadão se ele representa um estado cada vez mais fluído e momentâneo de opinião e a ele se segue um interregno de anos até às eleições seguintes, e sendo que o sentido desse primeiro voto, a meio do interregno pode já não exprimir a real opinião dos eleitores?
Que a política já nada tem de convicção ideológica  era sabido. A política passou a ser uma competição do tipo desportivo, e o poder, bem vistas as coisas, pode não passar de uma faculdade de domínio da técnica de combate às tão mutáveis inclinações da opinião. 

                                
São extremamente custosas, como se compreende, as reformas numa democracia pautada por uma opinião que flui rapidamente. Era preciso que um país inteiro se consciencializasse quanto ao momento. Era preciso que cada poder político gozasse de uma credibilidade inconcebível para operar uma reforma violenta sem consultar parceiros sociais nem querer agradar aos seus clientes tradicionais.
Porque, na verdade, não é muito difícil burlar um cidadão. Nem com o conto do vigário. Nem com o truque do bilhete premiado. Uma vez, ali para os lados de Belém, houve até quem vendesse um carro eléctrico a um saloio. E estou a falar de coisas palpáveis, materiais. Agora imagine-se como é doce vender a imagem de um governo a funcionar maravilhosamente. Ou vender a ideia de um simples voto, que não custa dinheiro a quem vota mas que pode render milhões  a outros…

                                                      

Como será agradável publicitar o infinitamente imaterial!
Falando sério, o que quererá dizer a expressão opinião pública – e concretamente em democracia?
Será que a dita opinião pública exprime o sentir da maioria do povo? Não creio eu e julgo que ninguém bem intencionado crê numa balela democrática dessas. A opinião pública pode ser… pode ser… a opinião dos jornalistas. Pode até nem ser a opinião sincera desses jornalistas, porque pode bem ser a opinião que os donos dos jornais queiram que o povo tenha.
Os donos de uma opinião pública nacional são dois ou três proprietários de jornais ou de televisões – ou das duas coisas. E os proprietários de jornais não são propriamente gente comum, nem pobres, nem assalariados, e geralmente não são fascistas nem comunistas. Nem nada. São donos de jornais. Capitalistas que querem vender o seu papel e com o papel vender ao público as ideias que lhes façam vender mais e mais e cada vez mais do seu papel.Claro como água.


Donos de jornais, directores e editores de jornais que insinuam uma opinião e por isso também têm a sua parte na governação da democracia. São até governantes invisíveis. E invencíveis. Nunca perdem porque nunca jogam, e não jogando não correm riscos. E os muitos do eleitorado votam conforme lhes é indirectamente sugerido pelos poucos que lhes fazem a opinião.


A opinião pública é a opinião dos cronistas e comentadores ditos independentes a que os jornais e televisões dão tempo e espaço e que não se podem afastar muito da mediania suportável em democracia, ou dos interesses de quem lhes dá a palavra.

                                                                                           
    
   Avaliando bem, quase sempre os cronistas e comentaristas políticos, não tergiversando das baias do conveniente, acabam por representar, mais até do que a sua opinião pessoal, a opinião de alguns grupos de interesse, ou políticos, ou religiosos, ou partidários, ou económicos, ou cívicos, e que, sem declararem os interesses e opiniões a que dão voz, tentam inculcar – muitas das vezes impingir – uma verdade aos leitores e espectadores – na realidade, todos eles eleitores.    


                                                                                                                                                       
Há até quem diga que as notícias falsas ou deturpadas e os comentários ilusoriamente sinceros convencem mais do que a realidade – realidade que com o correr do tempo já ninguém sabe ao certo qual seja.

                                                                              

Já no primeiro quartel do século XIX o grande Tocqueville tinha falado nestas coisas da opinião, no império soberano da opinião pública. E a expressão dele, opinião pública, tornou-se um mito, um dogma. E Tocqueville não podia sonhar com os apuros a que a política poderia chegar na consideração do que fosse opinião pública e do modo de a manipular.


Mas Tocqueville disse mais. Frases dele a respeito da opinião pública, algumas: a imensa pressão do espírito do todo sobre a inteligência de cada um – uma;  o indivíduo está pronto a reconhecer que não tem razão quando o maior número o afirma – outra;  a maioria não tem necessidade de obrigar o indivíduo, a maioria convence-o – outra. E outra ainda: a opinião comum é o único guia que resta à razão individual nos povos democráticos, ela tem um grande peso no espírito de cada indivíduo.                                                                          
Volto a dizer: o conceito de opinião de Tocqueville dificilmente tem que ver com a opinião que a sociedade actual sabe fabricar.
Quem pode hoje, cidadão comum, ajuizar quanto à verdade, ou verdades, da vida pública, quando a verdade mediática a cada momento procura sobrepor-se à verdade dita pura? Às vezes coincidem. O que é bom para o sistema.  Mas se não coincidirem, que será feito do tal tão badalado Estado de direito?
Na democracia de opinião haverá como que uma novelização da vida. A emoção compensa. A razão está em decadência. O directo. O espectáculo. O zapping em busca de sensações. A guerra em directo. As imagens eventualmente chocantes. O efeito CNN. As audiências. As audiências!
A informação já nada tem de solene ou de sagrado. A informação não passa de um produto. A informação é mercadoria, porque há vasto e compensador mercado para a informação. A informação mais rápida é mercadoria mais rentável. Informação rápida e/ou infinitamente repetida. A rapidez da sobreposição da informação gera a amnésia do público – da opinião – superficializa a História, a moral, o bom senso.
A acção esbate-se. A reacção é soberana… ainda não há reacção do partido tal aos acontecimentos… o clube tal já reagiu ás declarações…
Quem governará as sociedades serão os media. Já não são precisos nem partidos nem governos totalitários.
O totalitarismo… cá está. Travestido. Bela frase de Régis Debray, esta: É o espectáculo do Estado que faz o Estado, tal como o monumento faz a memória.


A tríade decisiva para o funcionamento da democracia de opinião que se prefigura no horizonte passa pelo Juiz, pelos media e pela opinião propriamente dita que aos dois primeiros compete produzir. Este trio parecia anteriormente ser o contrapoder das sociedades democráticas. Mas se parecia, ou era mesmo, deixou de ser, porque também gritantemente deixou de parecer. O poder judicial passará a ser o verdadeiro poder. Os media passarão a ser o verdadeiro poder. O mais imediato e verdadeiro poder estará na opinião. São os media os grandes actores. Eles tanto constroem como reflectem a opinião. Todos os dias vemos isso à hora do telejornal.
Todos serão postos perante o juízo da opinião. Quer dizer: todos serão sujeitos à ditadura da transparência. E será que a maior transparência significa mais ou maior democracia? Atenção que a opinião é em si mesma instável, não o sendo menos certamente o grau de democracia que possa engendrar.  
E bem se afadigou o Estado a querer controlar tanto juízes como comunicadores e fazedores de opinião, quando o centralismo era palavra de ordem, quando o poder público se sentia com condições de garantir o interesse da comunidade - e mesmo com leis democráticas.
Na opinião de Alain Minc, os novos magistrados e os novos jornalistas assemelham-se. E como tanto se assemelham, entendem-se numa cumplicidade eventualmente natural. Aqui em Portugal fomos percebendo isso muitíssimo bem ao correr destes últimos anos. Os media e a justiça alimentam-se mutuamente. O juiz de instrução detém um poder inusitado ao usar a imprensa como caixa de ressonância. Um cidadão publicamente declarado como arguido por um juiz de instrução já é na prática um culpado. A presunção de inocência é, para o juízo da opinião pública, uma figura de estilo.


O julgamento de primeira instância de um indivíduo que chame as atenções da imprensa é quase um veridicto. Para a opinião pública, claro está. Um processo de opinião é já mais que meia condenação. Um juiz de instrução torna pública uma acusação e cria um facto irreversível. O juiz pode ir instrumentalizando a opinião através dos media durante todo o processo de instrução e assim desencadeia uma dinâmica impossível de conter. Todos temos percebido isso nos últimos tempos.
Um testemunho acusatório tornado público pode acabar com qualquer presunção de inocência e o exame desse testemunho já, para a opinião, faz parte do processo condenatório.


Um juiz é um gestor de suspeições colectivas na democracia de opinião.


Até que, descontentes com a sua subalternidade de caixas de ressonância, os media começam a querer comprometer os próprios poderes policiais e judiciais e a desenvolver a sua própria e autónoma investigação. E tudo isto se passa em nome da igualdade – é preciso sublinhar – para que não haja privilégio de classe ou de fortuna no tratamento dos negócios da justiça.


E a opinião que juízes e media produzem inibem o político na sua acção. A grande vítima da democracia da opinião será o homem político. A opinião vitimizará o político. Por isso talvez os políticos sejam cada vez mais medíocres e burocratas. Andam tolhidos de medo e contratam a peso de ouro o homem que passou a ser o mais importante membro de um gabinete ministerial: o assessor de imprensa.
Os homens carismáticos deixarão de ter peso e espaço na política. A democracia de opinião acabará por criar um novo homem político. Um homem angustiado pela sua imagem, pelo que podem dizer dele os jornais de amanhã. Um homem feito gato-sapato pela opinião. Na democracia da opinião.
Uma das traves mestras da opinião pública, engraçado, é o silêncio. É esse o genial parecer de uma socióloga alemã chamada Noelle Neumann.
A espiral do silêncio. Isto é: o silêncio é o segredo da opinião, porque só a apatia de muitos garante a influência de outros, as elites. Se se conseguir dar a sensação de que a opinião geral mudou, ela muda mesmo.
Já se deixa ver, mesmo à vista desarmada, que democracia de opinião e sociedade de mercado são comadres muito chegadas. Tão chegadas quanto indissociáveis. Tão chegadas que, como na história do ovo e da galinha, às vezes duvida-se sobre qual delas existiu primeiro. Quer dizer, assim, a olho nu, deve ter sido a sociedade de mercado. Há mercado – e que mercado! – para a opinião. A economia esmaga-nos. Tanto como a opinião.


A democracia representativa, aliás, não será muito mais do que um mercado político. E o mercado precisa de estudos de opinião quando quer saber  como e o quê e quando e onde pode comprar e vender.


Mas, pelo menos, em democracia de opinião o homem político já escusa de se impor por métodos brutais. Isso era antigamente. Na actualidade estamos no domínio do político sedutor. É a sedução a grande arma política numa democracia de opinião. E a democracia de opinião é tão sedutora, tão real, tão efectiva, tão livre, tão indiferente e tão tolerante que me permite, a mim, que não sou ninguém, vir para aqui botá-la. À opinião.
Mas enfim, tem-se dito e escrito, e praticado, tantas coisas, ou uma coisa e o seu contrário, sob o pavilhão da democracia, que eu não posso deixar de pensar que hoje por hoje, essa gloriosa, invencível, antiga, seríissima e venerável democracia deixou de ser o que quer que tenha sido, porque já poucos a levam a sério enquanto princípio, e reduziu o seu ser a uma singela palavra, embora de bela ressonância histórica e moral.
A democracia não será, hoje, muito mais do que uma palavra, uma das várias palavras para designar a existência num mesmo corpo político-legislativo de várias pequenas e parcelares - mas muito efectivas – ditaduras. Pequenas e parcelares ditaduras que, somadas, e paradoxalmente, não dão uma grande ditadura, só dão uma pequena democracia.

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