sexta-feira, 28 de março de 2014


     OS IRMÃOS MARX AFINAL ERAM SEIS


O cinéfilo que só se preocupe com a História do Cinema nem sabe disto.


O Groucho, o Harpo, o Chico, o Gummo e o Zeppo. Cinco. O Gummo e o Zeppo foram desaparecendo da cena já não me lembro porquê, se é que alguma vez o soube. E também não conto com o que morreu ainda miúdo, o Manfred. Mas vou contar com um outro menos conhecido, ou pelo menos pouco conhecido no ramo a que os outros cinco genialmente se dedicaram.


Claro, amigos, estou a referir-me ao Carlos, o dialéctico.
Às portas de Abril lembro-me sempre dos Marx, e em especial do Carlos, e ainda mais depois de ter lido não sei onde o mea culpa de Otelo Saraiva de Carvalho quanto à reforma agrária…


Bem gostaria eu de poder falar sobre os outros, o Groucho, o Chico, o Harpo, e até o Gummo e o Zeppo. Mas não tenho elementos. E por isso tenho de me contentar com o Carlos, com a loucura, o humor ou o non sense do Carlos, que alguns opinadores ainda consideram o mais sério e ajuizado dos irmãos Marx, enquanto outros, mesmo assim lhe acham pilhas, o dizem um estouvanado, e acham uma pena ele não ter feito filmes cómicos como os outros. E eu diria: sisudo, está bem, mas, apesar de doente crónico da dialéctica, não menos provido de loucura, humor, non sense… e irreverência, sobretudo. Embora sempre de palavras sérias e desencantadas, barbaçana respeitável e expressão façanhuda. O Carlos Marx. Ao tempo que não sei nada dele.  Pergunto-me, eu e alguns amigos: se ele ainda contasse alguma coisa no mundo destes anos 2000, que diria?
Talvez ele, Carlos Marx, apesar do aspecto e do que deixou dito, não fosse substancialmente um filósofo. O que não significa que não fizesse a sua perninha no pensar mais alto. Talvez fosse mais um economista, um sociólogo – ou, no fundo, um cómico que se entretinha e divertia mais pelas filosofias e pelas economias do que pelas pilhérias.

                                                                                            

Hoje, pelo menos nós, os mais antigos, os que ainda vimos os flmes dos irmãos, quando falamos dele pensamos logo num revolucionário de faca na liga e bomba aparelhada e fumegante na mão. Mas o bom Marx, o impagável Carlos, cismava muito. Era mesmo um pensador. E pensando, perguntava-se: que diacho de leis presidem ao comportamento humano? Como será possível mudar a vida dos homens sem infringir por demais essas leis?


E numa teoria geral do Homem, seu comportamento e suas leis, o Carlos, englobava filosofia, economia e sociologia. Uma totalidade que ele queria deslindar. E começava por filosofar, ele e o amigalhaço, o Frederico, o Engels, Friedrich Engels, outro barbaças, um metafísico que ria até chorar com a cena do camarote do navio em Uma Noite na Ópera e com o médico de Um Dia nas Corridas, quando às vezes acontecia falarem dos irmãos do Carlos, e porque o Frederico, afinal de contas, era um dialéctico em último grau e já desenganado pelos médicos – por isso é que eles se davam tão bem.

                                                                                           

Atribuem a um deles, já não sei se ao Carlos, se ao Frederico, ou aos dois, a expressão materialismo dialéctico – uma degenerescência grave dessa doença, a dialéctica. Está mal. É falso. Eles podiam sofrer disso, mas não falaram disso nesses termos. Pois não. O primeiro que falou em materialismo dialéctico foi um célebre paciente russo que deve ter apanhado dialéctica numa viagem ao Cáucaso, aos Urais, à Sibéria, não sei, e se chamou Plekhanov.
Marx, o Carlos, não ia à bola com a filosofia. Preferia Uma Noite em Casablanca. Por entender que não havia interesse nem proveito nenhum em estudar as ideias em si mesmas, só por si mesmas. As ideias eram uma parte da actividade humana. Uma parte. Só se nelas se contivesse a tal totalidade dessa actividade humana, fosse a do indivíduo isolado, fosse do grupo de indivíduos.


E lá vem então a dialéctica. Às vezes, O Carlos descuidava-se com os medicamentos e tinha ataques de dialéctica, pois. E lá vinha os sintomas dolorosos mas aliciantes da teoria e da prática. A teoria não vale um chavo por si mesma. E a prática pode não ser grande coisa sem o fundamento teórico. Logo, as ideias, as teorias não podem ser separáveis da prática, do concreto dos actos humanos. E os actos humanos, regra geral, não se regem pela madura reflexão, nada têm de reflexão teórica, as mais das vezes. Apenas acontecem. E quem diz actos humanos diz as humaníssimas fezadas, as crenças.


As coisas que existem acontecem e são só porque sim. Ele ainda falou disso ao Groucho, a ver se ele pegava na ideia para um filme, mas o Groucho não foi nisso.
Todos nós, os antigos amigos – e até alguns discípulos - do Carlos, sabíamos disso: não se pode isolar um facto, uma actividade, isolá-los para um exame sério, sem termos de considerar a posição desse facto ou dessa actividade em toda a evolução do conhecimento dos factos e das actividades humanas. Exacto: essa praga terrível e muito contagiosa a que se chama História.
Um facto e uma actividade são avaliáveis, estudáveis, no tal contexto, a contextualização de que se fala muito na televisão. Contexto histórico; evolução histórica. Se assim não for, estaremos a falar de abstracções, ou ilusões sociais, patologias que também afectam muito a sociedade.
Porque o Homem é capaz de inventar. É verdade, amigos. E ai, como o Carlos sabia disso ao dar-se com os irmãos. O Homem é danado para inventar instrumentos – e para os tocar, como o Harpo e o Chico. Eles inventavam instrumentos para intervir a cada momento no processo de formação da realidade deles, que era a fantasia deles passada ao celulóide. Inventavam esses instrumentos e não se ficavam feitos parvos a olhar para eles. Inventavam-nos e utilizavam-nos. Eram homens.


E o Homem desata a inventar instrumentos para quê, não me dizem? E utiliza os instrumentos que inventa exactamente em quê? Para satisfazer necessidades. E logo à cabeça necessidades do mais básico que se possa imaginar: comer, beber, abrigar-se, aquecer-se, sentir prazer, multiplicar-se (procriar). E foi essa capacidade de inventar instrumentos que pôs o Homem em conflito com a mãe-natureza. Os instrumentos permitiram-lhe relacionar-se com ela, natureza, conviver com ela, e depois, evoluindo, evoluindo, rivalizar em criação com ela, abusar da paciência dela, conflituar com ela, violentá-la a ela, natureza – o tal problema da violência doméstica. E até substituir-se a ela. Porque é que eu já posso comer cerejas todo o ano? Porque é que eu posso estar até cheio de calores dentro de casa se na rua, na natureza, estão não sei quantos graus abaixo de zero? Porque é que eu já posso ter vida sexual activa aos 75 anos?


E do Homem insatisfeito e curioso do que o rodeia e de si mesmo só pode esperar-se aperfeiçoamentos, e que uma invenção leve a outra e a outra (o Groucho, o Chico e o Harpo bem o ouviram), e sendo que cada invenção lhe sugere uma nova necessidade, que para ser satisfeita exige uma nova invenção. E quem diz o Homem está a dizer as sociedades que o Homem cria, os grupos, os clãs, as nações, os estados. E quem diz novas necessidades diz novos prazeres, novos gostos - lembrem-se de Duck Soup (não me lembro do título português)..
Disse-nos o Carlos (a nós, aos antigos, aos que o frequentámos) que a capacidade técnica do Homem é maravilhosa. E é única, como se sabe, em todo o reino animal.


Na opinião do Carlos constitui mesmo essa capacidade técnica a natureza humana fundamental. E é dessa capacidade técnica que derivam as mudanças, as profundas, as lentas ou as súbitas. A História, em suma.
A capacidade técnica do Homem para inventar instrumentos que acorram a necessidades, a criação de novas necessidades que implicam a invenção de novos instrumentos de onde decorrem outras necessidades, e mais a consciência que ele, Homem, vai ganhando de tudo isso chama-se o quê? Pois claro, chama-se História.
Ladino este Carlos, não acham? Se pensarem bem vão ver que é assim mesmo, que ele tinha razão. Pelo menos neste ponto. Foi uma pena não ter acompanhado os irmãos na vida de cinema…
E de tudo isso resulta o método chamado científico. Se formos a ver, desse método dito científico de avaliação, de crítica e de vida, já se começara a falar no séc. XVIII. Ciência igual a entendimento de uma matéria. Certo? Materialidade. O Homem do séc. XVIII, no caminho da sua evolutiva precisão de instrumentos, e na trabalheira de os inventar sempre novos para prover às sempre novas necessidades que os novos instrumentos lhe impunham, desata a desespiritualizar-se, a desmitificar-se (ou a desmistificar-se) e desata a chamar-se a si mesmo de materialista.
E, materialista, começa a reparar no seu passado de inventor de instrumentos e de necessidades. E no seu passado o Homem do séc. XVIII detectou uma quantidade de disparates, de loucuras mesmo, de ilusões e de alguns actos tresloucados nascidos do âmago desses disparates, dessas loucuras, e fundamentalmente dessas ilusões que ele julgara serem  necessidades básicas e para as quais inventou instrumentos, e necessidades que afinal nem eram básicas e nem eram sequer necessidades. (E disso falou o Carlos aos irmãos e eles bem se aproveitaram das ideias dele.)
                                                            
                                                    

E era preciso que alguém inventasse um novo instrumento para interpretar a razão de ser dos instrumentos inventados no passado e respectivas consequências. A esse novo instrumento chamaram os homens do séc. XVIII método.
Método que era observar, experimentar primeiro o funcionamento dos instrumentos e dos actos deles decorrentes – método empírico, disseram. Método que era os irmãos ensaiarem primeiro muito bem uma cena antes de a filmarem. Método que era observar rigorosamente, sem paixão ou preconceito, a materialidade dos instrumentos, dos factos e dos actos – método científico. Científico, sistemático, empírico, juntar dois mais dois, raciocinar, quer dizer, método rigoroso. E a partir dele interrogar-se, pôr-se questões quanto ao conjunto do instrumental humano até aí usado para prover necessidades e satisfazer gostos.
E o que o Homem do séc. XVIII viu do instrumental humano que a História contava para trás de si era uma quantidade de superstições e de crenças sem qualquer base de realidade e que os mais proeminentes do rebanho humano, cabeças coroadas, chefes militares, sacerdotes, tinham aproveitado para submeter os demais. Parece simples – só o Carlos para dizer destas. Parece simples mas para o Carlos não era nada simples.
Não havia afinal verdades eternas, verdades sem tempo. Não há sentenças universais válidas para todo o tempo e para todo o lugar. Cada passo novo na capacidade técnica do Homem implicará novas fronteiras, mais alargados campos de observação e acção. E não só no que à materialidade possa dizer respeito. Também ao espírito. Ao intelecto. À moral, ora aí está…


Nenhuma ideia pode nascer separada de um conjunto. Os irmãos perceberam. Cada gag haveria de ter um contexto e proporcionar novos gags. As ideias são instrumentos, podem determinar novas invenções e novos instrumentos, como podem impor outros e novos comportamentos sociais.

                                                             

Oh, quantas ideias e quantos instrumentos na História humana para satisfazer necessidades!
Os exércitos (excelente instrumento) e com ele e para ele, a pólvora (excelente invenção). A agricultura (olha que excelente ideia!). A escravatura (no contexto de uma dada época e no paradigma moral dela uma excelente ideia, certamente). O feudalismo: excelente instrumento, no quadro do tempo e da cena que se está a filmar, sempre no quadro do tempo próprio de cada piada, relativo, dinâmico e nunca absoluto e estático esse tempo.
Se a capacidade técnica, dom exclusivamente humano, determina as ideias e invenções humanas, e as formas de vida humana não são, por outro lado, nem as ideias nem as formas de vida a determinar a capacidade técnica do Homem, então são as necessidades que suscitam as ideias e não as ideias que determinam as necessidades.
As ideias. Não mais do que a parte superior da vivência humana. E não é pouco. Não é pouco nem é muito. É o que é. As ideias são a fonte do que o Carlos chama de super-estrutura, a estrutura do topo que é suportada pela estrutura da base. A cena filmada e montada pelos irmãos sobre a base de uma tomada de vistas, tomada essa assente num script  básico previamente escrito. É boa não é? E a estrutura da base das sociedades humanas é a forma económica que reveste um grupo humano.


A arquitectura da base ou a forma económica adoptada pelo grupo humano é condicionada pelo tipo e quantidade de instrumentos que lhe permitam manter essa forma económica, e igualmente pelos indivíduos que sejam donos ou controlem tais instrumentos – caso dos produtores de Hollywood nas actividades dos irmãos dele.
E às ideias, ao conjunto delas, produto da super-estrutura da organização humana, o Carlos chamava ideologia – do que ele se ia lembrar, diacho do rapaz…
E também há que ver que tais ou tais condições sociais podem não propiciar o aparecimento de tais ou tais ideias. E quem diz ideias diz mesmo invenções ou descobertas materiais, instrumentais. E algumas, já inventadas enquanto  apenas ideias, poderão esperar os momentos históricos mais propícios para assumirem materialidade e serem postas a uso – a dependência do Groucho, do Harpo, do Zeppo e do Chico da política dos estúdios, At The Circus, a propósito.
Leio que a máquina a vapor foi inventada, foi ideia, em Alexandria – e séculos e séculos foram passados antes que fosse materializada em instrumento para suprir necessidades básicas – o Carlos lembrou-se disto, vejam lá. Ou o submarino, ao que dizem inventado pelo Leonardo, o da Vinci, outro cómico impagável do nosso imaginário…
É o moinho movido pelo vento que vai engendrar o regime feudal. (E esta? Pena o Groucho não a ter aproveitado.)
É o tear mecanizado que origina a realidade de um mundo industrial.
Moinho, invenção que leva a um tipo específico de organização da sociedade. Organização da sociedade derivada da invenção do moinho de vento que origina pareceres, opiniões, comportamentos e vidas em conformidade. Opiniões, comportamentos e vidas que pretendem conservar esse tipo de sociedade, esse modo específico de aquisição e distribuição do poder.


Então e o espírito, grande Carlos? Isso não é vida humana?
É. O espírito manifesta-se materialmente em obras, obras de arte, por exemplo, obras do Direito, do pensamento. Os filmes dos irmãos, os Marx Brothers, também, claro. Obras e instituições. Instituições que podem até ser morais, como as instituições filantrópicas. Que podem também ser jurídicas, religiosas. E que são modo de vida global de uma sociedade humana. E que são necessidades.



Invenções e ideias transformam as necessidades – quer dizer as formas de viver. Transformam as necessidades que lhes deram origem. E segredam ao Homem um novo desejo/necessidade. E provocam no Homem novas invenções, novos instrumentos para suprir novas necessidades. E criam por isso novas formas de sociedade.
São as formas assumidas na luta pela sobrevivência – a primeira de todas as necessidades - ou pelo poder, e sua identificação,  o segredo da compreensão da vida social.
E com o Carlos Marx – e já antes dele com os chamados empiristas de Setecentos – passa a ser-nos proibido pensar e dizer de alguma verdade que é intemporal, ou atemporal. Depois do que o Carlos nos disse e do que os filmes dos irmãos dele nos mostraram, isso passará a ser um absurdo - vejam lá se se lembram do Go West, de 1940...
A verdade é uma relação.
A verdade é uma relação entre o pensamento humano e os objectos desse pensamento. E nem objectos nem pensamento são algo de estável, imutável. Eles mudam, olá se mudam, mudam e bem. Mudam à medida da mudança das condições históricas.


Aquele que está preso, vive e pensa na sociedade como um prisioneiro, porque alguma ele fez contra os modos de viver e a moral dessa sociedade; ele pensa-a de certa maneira e quer modificá-la. Ao passo que aquele que se sente bem numa dada sociedade, solto e em harmonia com ela, pensa de maneira diferente, e consequentemente age de maneira diferente, porque o seu ideal consiste em manter essa sociedade em que se sente tão bem tal como ela é, tal como ela está, e não quer ouvir falar em transformações. E até porque o fluxo das suas necessidades como que cessou. Enquanto, para o que está preso, o fluxo das necessidades aumentou de caudal, quer ver-se livre, e para se ver livre sabe que alguma coisa tem de mudar. Algo na sociedade – ou na circunstância - que o mantém preso terá de se transformar.
A liberdade. Que nos disse a isso o Carlos? De vez em quando é bom a gente lembrar-se do que ele nos disse há tantos anos…
Liberdade é vitória sobre os obstáculos que existem entre o Homem e as suas necessidades..
Boa!
Obstáculos que tanto faz sejam da natureza como sejam intrínsecos ao Homem, as suas paixões, a sua selvejaria auto-destrutiva…


Liberdade é controlar sábia e rigorosa e racionalmente os recursos ao dispor da sua necessidade. E liberdade tão mais risonha e compensadora quanto mais esses recursos forem abundantes, quanto mais homens possam controlar de facto esses recursos.
Lembrem-se daquela cena de Monkey Business – não me lembro do título em português – essa cena, exactamente.
Reside na História, e seu estudo, a chave do enigma humano.
Avaliar factos e verdades esquecendo ou ignorando contextos é jamais encontrar as respostas para esse enigma humano. E perder definitivamente o sentido. Quando estava nos dias dele o Carlos dizia coisas que nos deixavam de boca aberta, acreditem. Até os endiabrados irmãos pasmavam…
Liberdade individual… propriedade privada… pois, pois… é um caldinho de alto lá com ele… justiça económica… ui,pessoal!... direitos individuais… tudo expressões que podem depressa perder o sentido em certas sociedades primitivas, naquelas em que a ideia mesma de propriedade não passava pela cabeça de ninguém – isto no tempo do Carlos, já se vê. O primado da propriedade privada não é intemporal como nos quiseram, e querem, fazer crer. E muito menos universal.

                                                                                       

Mas já um amigalhaço intelectual e percursor que o Carlos  nunca chegou a conhecer pessoalmente, o Jorge, Jorge Frederico, mais conhecido pela alcunha, o Hegel, viera dizer ao mundo que um dos aspectos marcantes da História humana era o movimento das crenças, das culturas e correlativas mentalidades. E que tais coisas podem criar impulsos sociais e constituir influências decisivas, reflexos de um progresso da materialidade sobre a mente humana, e transmitindo às acções subsequentes uma mensagem de eficácia, isto é, o que mais e melhor contribuísse para uma vida social apta a satisfazer necessidades materiais.
Armas. Olá! A moral. A moral enquanto, por hipótese, juízo de valor. Bem, pode ser uma arma. Uma arma dissimulada mas eventualmente eficaz na luta pela supremacia – ou até na luta pela sobrevivência.


Cada marco na História do Homem é uma tensão entre a atitude dominante das instituições e tudo aquilo que se lhe oponha. Tensão que produz um conflito entre forças que separam a actividade humana – não esquecem os amigos dele que o Carlos era um fan do Heraclito. É o conflito constante entre os sentimentos, o pensamento e os comportamentos que determinam a mudança – ou, sublinhado por mim com sarcasmo, aquilo que é comummente designado por progresso… e quando eu, envelhecido amigo e admirador do génio do Carlos, já não sei bem se todo o progresso terá por força de consistir em mudança…
Ou sim, está bem… alguma mudança terá de haver, bem vistas as coisas…
E a questão das classes. Alguém se lembra do Carlos a falar disso? Oh, oh, os irmãos lá em casa mudavam logo de conversa…
 O Carlos falava explicitamente da burguesia, senhora dos poderes e dos instrumentos já no tempo dele. E para ele a moral podia ser um alibi, um instrumento disfarçado de uma classe preponderante para submeter outras.


Classes. Pff. Uma classe condenada pela História – estou a pensar na aristocracia dos tempos franceses pré-revolucionários, segundo o que o Carlos nos dizia, que podia não ser capaz de compreender o mundo em que se movia e que supunha dominar. Por causa dos naturais processos de defesa, processos psíquicos colectivos que lhe ofereceram o dom do optimismo e lhe concederam visões idílicas quando de derrocada iminente se tratava.
O que o Carlos nos contou a respeito deste assunto foi, se não estou em erro, que uma classe era um grupo de pessoas que se uniam por algum objectivo social que não era muito mais do que a necessidade de adquirir qualquer coisa que ampliasse a liberdade daquele que possuía essa coisa, aumentando assim a satisfação das suas necessidades.
E não será novidade para ninguém que a História da Humanidade, para o Carlos, também não era muito mais do que a História da luta de classes. Cá está. E foi a partir de uma forma primitiva de comunismo que o Homem deu início à sua fabulosa carreira sobre a terra. E essa forma de comunismo primitivo esvaiu-se à medida que a capacidade técnica do Homem inventava novos instrumentos. E instrumentos esses que os proprietários deles usavam para sacar daqueles que não os tinham uma coisa só: trabalho.
E os que inventaram e tomaram posse dos novos instrumentos passaram as passas do Algarve para conservarem os meios instrumentais que lhes permitiam explorar em seu proveito os que não os tinham.
E toma lá que já almoçaste, diria o Carlos, se fosse ainda vivo…



Simples e claro como água. Essa exploração quantificava-se através da diferença entre o custo do que era necessário para manter os outros capazes de produzir e o valor daquilo que eles produziam.
E ainda pode haver gente que fale a torto e a direito de mais-valias e não saiba o princípio simples em que ela foi calculada. E nem saiba que foi o Carlos que num dia de paródia com os irmãos definiu essa equação. 
Aquele Carlos!
E também talvez não saiba que é a essa dita mais-valia, que remonta às mais primitivas das sociedades humanas, que se usa chamar capital.
E ainda assim pode ser que muitos não saibam que é este chamado capital o fulcro daquilo a que o Carlos costumava chamar luta de classes -  e que agora todos fazemos por esquecer, porque todos somos induzidos a dizer como o outro, o socialista convicto: abaixo o capital, para a gente lhe chegar melhor…


Pois é. Moral. E classes. E Justiça. E piedade. E bondade. E liberdade. Parecem integrar o conjunto das tais categorias intemporais, valores humanistas universais.
Parecem. Para o espertalhão do Carlos não era assim. Para ele, como para os irmãos, não passavam de ficções e só a História poderia julgar tais conceitos. A História, evidentemente, quando correlatada com as necessidades humanas. E classes porque um acto que vá ao encontro dos interesses da classe que domina é considerado moral, bom, justo; e porque se o mesmo acto não for para esses mais do que um obstáculo, então passa a ser imoral, mau e injusto.

                                                                        

Quem segue na vanguarda material da posse dos instrumentos capazes de suprir as necessidades humanas mais básicas é quem determina todos os valores, toda a moral.
Toma lá que já almoçaste…



        Lembrei-me do 25 de Abril por causa do dilema do cabo apontador da metralhadora e por causa das disponibilidades do coronel Otelo para mudar de regime. E logo atrás da lembrança dessas personagens, dessa madrugada e desse dia veio a lembrança recorrente de todos os meus 25’s de Abril, o Carlos, o sexto irmão Marx, o que se dedicou ao humor de outra maneira…


1 comentário:

  1. Segunda-Feira, hora de almoço (13h-14h) - era sempre a hora sagrada das Questões de Moral, na «Antena 2». Mais uma vez, muito obrigado, Joel Costa...


    Contradições da mente humana: Carlos Marx, judeu alemão "londrino" - e talvez o pensador intelectualmente mais abusado de todos os tempos -, curiosamente, terá confessado a um amigo, numa célebre epístola, que seguramente ele próprio estava longe de se considerar um marxista...

    Mas lá que o seu pensamento moldou decisivamente o Mundo do Séc. XX, disso ninguém pode ter dúvidas!

    Que ele vá ainda a tempo de moldar alguma coisa neste Séc. XXI (em que vamos todos morrer), pelo contrário, já muito poucos arriscarão pôr as suas mãos no fogo.

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