quinta-feira, 5 de junho de 2014

                           OPTIMISMO


Lembrei-me hoje dos caminhos e descaminhos do optimismo nacional.


De quantos mitos nacionais, ou de quantas das tais misteriosas coisas portuguesas que segundo as mais altas autoridades do nosso optimismo, ainda tinhamos a obrigação cívica de nos orgulhar, nos poderemos continuar a orgulhar?
Toda a mediocridade tem um alibi ético. O optimismo, coisa boa e positiva, justificará eticamente a mediocridade e a irresponsabilidade que parece serem-nos atávicas. O optimismo pode até funcionar como justificação ética para procedimentos eticamente duvidosos.
E isto porque, por acaso, me calhou folhear despreocupadamente o Candide, de Voltaire. Cândido, ou o Optimismo, de seu título inteiro.. Desnecessário, talvez, dizer que Voltaire, ao escrever, não estava a pensar nos governos e nas oposições do Portugal do século XXI – embora por vezes pareça. Mas não é menos certo que, por acaso, a acção do livro passa por Lisboa, a Lisboa setecentista, a Lisboa de sempre – ou de quase sempre.

                                                                                

Está demonstrado – dizia o filósofo Pangloss, perceptor de Cândido - que o que existe não pode ser diferente, porque, tendo tudo sido criado para um fim, tudo é necessariamente para o melhor dos fins. E assim os narizes foram feitos para segurar os óculos e portanto nós temos óculos. E assim as pernas foram instituídas para serem calçadas e é por isso que usamos calçado. E assim os porcos foram criados para serem comidos e nós comemos porco todo o ano.

Quem afirma que tudo está bem, diz uma asneira. É preciso afirmar que tudo vai pelo melhor – inclusive a lesão do Cristiano Ronaldo e os tristes pontas-de-lança da selecção nacional, como diria Voltaire.

Voltaire escreve o Cândido como refutação a Leibniz, todos o sabemos - e se não sabemos também não interessa. Esse Leibniz que invocava a “razão suficiente” que tudo explicaria, que tudo justificaria.
Vamos é ver se nos safamos. Troika, TC, milhões em falta, falências, bancos, desemprego… não há-de ser nada. E cá está: quem diz que a nossa tragédia do século XXI irá continuar e durar per omnia secula seculorum está a apresentar os sintomas do nosso real e dolorido pessimismo que paradoxalmente é o motor do nosso falso optimismo.   


E olha, por pessimismo, invoco hoje também, para além de Voltaire, o espanhol D. Miguel de Unamuno.


Passeando por Lisboa nos começos do século XX, o grande escritor espanhol está nas ruínas do Convento do Carmo, arrasado por um terramoto do século XVIII, e pensa na espécie de terramoto íntimo e moral que ainda então – ou já então - ameaçava o povo português.


Por falar na coisa péssima que são os terramotos, e recuando a 1755, vemos a personagem de Voltaire, Cândido, mais o seu mestre Pangloss, a caminho de Lisboa, corridos de um castelo da Westfália. Encontram um anabaptista caridoso. O anabaptista crê que os homens corromperam a natureza: não tinham os homens nascido lobos, mas tinham-se tornado lobos. Deus não lhes tinha dado canhões de 24, nem baionetas, e eles tinham inventado isso tudo para irem dando cabo uns dos outros. Mas Pangloss persiste em que tudo isso era indispensável. E porquê? Porque as desgraças particulares são o que realiza o bem geral. De forma que, quanto mais desgraças particulares houver, mais tudo irá bem. E aqui está uma sentença que parece feita como uma luva para a nossa actualidade nacional.
À vista de Lisboa o navio onde vai Cândido e Pangloss é fustigado por violenta tempestade.


Em Lisboa, Cândido assiste ao pavoroso terramoto. Segundo Pangloss, aquele terramoto era inevitável, as coisas não se podiam ter passado de maneira diferente. Tudo isto é o que há de melhor, diz, porque se existe um vulcão em Lisboa é porque não podia estar noutra parte. É impossível que as coisas não estejam onde estão. Porque tudo está bem.


E com Pangloss diria eu: era impensável tanto optimismo a justificar uma ética de insânia, incompetência, mentira e mediocridade noutra parte senão neste nosso Portugal. É impossível que as coisas não estejam onde estão. E é no melhor e mais optimista dos mundos que se fortalece o pessimismo e acontecem as coisas desgraçadas. Ou vice-versa. Vai dar no mesmo, isto é, as coisas desgraçadas acontecem na mesma.


E a seguir ao tremor de terra que destruira três quartos de Lisboa, fora decidido pelos sábios da Universidade de Coimbra que o espectáculo de uns quantos autos-de-fé, de umas quantas pessoas queimadas a fogo lento e com grande cerimonial era segredo infalível para impedir a terra de tremer. Falou Voltaire.


E na verdade, à época, a Universidade de Coimbra era considerada pela intelectualidade europeia uma instituição retrógrada face às novas teorias filosóficas, às Luzes. Era o nosso “progresso” científico, social e politico. Que vem de longe, como se vê. Era Portugal. Era o seculo XVIII, mas era Portugal. É impossível que as coisas não estejam onde estão.


O optimismo, o ver as coisas pela positiva. Atitude excelente em si mesma, e muito necessária à vida pessoal e colectiva, mas que pode neste singular país transformar-se numa espécie de droga que serve de escapatória a toda desresponsabilização, a toda a dita insânia, a toda a incompetência, a toda a má fé, a todo o delinquente desleixo, a toda a impunidade, a toda a engravatada vigarice, afinal de contas, a toda a mediocridade da nossa vidinha.
Todo o português sabe que muito dificilmente, em Portugal, se arranjam responsáveis… a justiça, a injustiça, os juízes, os advogados, os jornalistas, os segredos, os arguidos, os argutos, os agressores, os deputados, os ministros, as vítimas, o ministério público, a Relação, o Supremo, o Constitucional, já tudo está confundido para que o cidadão deixe de o ser, isto é, deixe de compreender o que de facto se passa na polis… ninguém denuncia claramente, ninguém se acusa e ninguém acusa inequivocamente, ninguém se demite, não há responsáveis, tudo está bem, é impossível que as coisas não estejam onde estão…
Uma granja e um banco: aí temos Portugal”. Não, não é Voltaire. É Oliveira Martins. De um lado, o campo português, o doce vegetar; do outro, Lisboa, a cidade cosmopolita cheia de beócios, materialistas sem fé alguma em nada que seja duradouro. Oliveira Martins. Que sabia das coisas. No século XIX. E, mutatis mutandis, neste século XXI.
Estranho é o contraponto entre os angustiados apelos ao optimismo social e político feito pelos mais notáveis de um país naturalmente, atavicamente, pessimista – ou a quem os notáveis de todos os tempos só deram motivos para ser pessimista, fadista. Ou para ser até, como pensava D. Miguel de Unamuno, um país e um povo de suicidas.
Um optimismo postiço, desesperado e injustificado, por amor, desampor, ciúmes ou negócios, pode ser uma forma de suicídio.
Um optimismo português resulta, só pode!, da mediocridade nacional. Que não é um motor de acção e desenvolvimento; que é antes uma balela para iludir o atraso e a incapacidade das elites e enganar os tolos. E os tolos somos nós. Os da rua. Eu.
E com o optimismo como medicamento milagroso para nos tirar as dores do pessimismo ancestral, muitos vão governando menos mal a vidinha.
Um amigo português de Unamuno escreve-lhe uma carta: Chegou-se em Portugal a este princípio de filosofia desesperada: o suicídio é um recurso nobre e uma espécie de redenção moral. Tudo o que é pobre se suicida neste malfadado país; tudo o que é canalha triunfa.
O nosso mal, continua esse amigo de Unamuno, é uma espécie de cansaço moral, de tédio moral: o cansaço e o tédio de todos aqueles que se fartaram de crer.
Como estarão os actuais níveis de suicídio em Portugal?


Optimismo e passividade. Não são sinónimos, eu sei, nem consequências um do outro. Eu sei. Bem pelo contrário. Mas o optimismo, aqui, institui-se como intimação oficial à apatia e ao silêncio.
Pensando no original pessimismo português que os nossos actuais mentores pretendem ocultar e contrariar, Unamuno refere-se a essa apatia, uma apatia que pode mesmo desencadear ataques de fúria – assassínio, suicídio. Mas sempre num quadro de submissão. Submissos, os portugueses, submissos mesmo quando se revoltam. Porque se formos interventores teremos de chamar às coisas e às acções pelos seus nomes e podemos prejudicar-nos na vida. A começar pelo empregozinho. Portanto, o melhor é deixar andar, armar um sorriso beatífico, virar a cara para o lado, assobiar, não ter opinião, piedosamente não reparar nos responsáveis por tudo o que, desde logo no nosso local de trabalho, funciona mal, ou nem sequer funciona. E já está: teremos um país pronto para a maior produtividade, para a mais gloriosa competitividade. Competitividade que não passa sem optimismo, é muito certo, mas que também não vive dele. E o que eu digo é que, pelos vistos, para os nossos dirigentes, o optimismo é uma espécie de saída eticamente airosa, imediatista, de emergência, para o seu próprio fracasso e para a nossa mediocridade. E quem vier atrás de mim que feche a porta…
O optimista não é, à primeira vista, e de uma maneira geral, um crítico. E a quem é crítico e realista costuma-se chamar por estas plagas de pessimista, de derrotista. De populista! – último epíteto inventado pelos políticos instalados para atirar a quem tiver a lata de, em democracia, os criticar. Populista! Mais dia menos dia, o pessimista será um marginal, um anti-social.
A mansidão portuguesa só se encontra á superfície; raspai-a e logo haveis de encontrar uma violência plebeia que chegará a assustar-nos. Miguel de Unamuno dixit. É só lermos os jornais para aquilatarmos da propriedade destas palavras.


Mas também, actualmente, por cá, não vale de muito a crítica. A mediocridade é uma instituição nacional, ai de quem atente contra ela; a mediocridade portuguesa é imbatível – começa e acaba no optimismo. Crítica? Para quê? Nada, ou pouco, acontece. O relatório é inconclusivo. O chefe de secção que se demita. Não é possível responsabilizar ninguém mais acima.
Mas pedir-se optimismo a um país secularmente pessimista, o país do fado? Não lembrava ao diabo.
E de novo a carta do amigo português de Miguel de Unamuno – provavelmente Manuel Laranjeira: A Europa despreza-nos; a Europa civilizada ignora-nos; a Europa medíocre, burguesa, prática e egoísta detesta-nos como se detesta gente sem vergonha e sobretudo sem dinheiro. Apesar de tudo, ainda há em Portugal muita nobreza moral, pelo menos há nobreza moral bastante para morrer
Isto nos primeiros anos do século XX.
E continua: Sou português e filho de um povo que atravessa uma hora incerta, crepuscular, do seu destino. O meu espírito sofre intermitências de abatimento e entusiasmo, fé e desânimo, crença e desespero. Tratar-se-á do crepúsculo que precede o dia e a vida, ou do crepúsculo que antecede a noite e a morte? Não sei.
Estava-se naquele tempo a viver, parece-me, o estertor da monarquia, posto que o amigo de Unamuno escreve: ainda há meses, quando Portugal atravessava os dias terríveis da ditadura de João Franco, julgava eu que iamos ressurgir. Publiquei artigos fervorosos de optimismo e crença, e hoje sinto uma tranquilidade pútrida. Não falta por aí quem diga que isto já nem é povo, antes o cadáver de um povo.
(Ou o tal sítio mal frequentado – diria o Eça.)
A paisagem da, em tempos, tão esperançosa democracia portuguesa é neste momento assustadora. E quem atente contra o optimismo e a mediocridade, dizem eles, é da extrema direita ou da extrema esquerda populistas, e está a atentar contra a democracia civilizada. No tempo do Salazar eram os comunistas. Mas a lógica medíocre é a mesma. Já estamos habituados.
As coisas mais desgraçadas que nos acontecem podem ser consequências da nossa mediocridade optimista - ou optimizada pelos nossos chefes.


Cândido cai nas mãos dos canibais. Compreende que no melhor dos mundos os homens se comem uns aos outros. Ele próprio está para ser devorado mas salva-se. Os canibais apuram que ele matou um jesuíta inimigo deles e resolvem não o comer. Cheio de optimismo, Cândido quer ir-se embora do Novo Mundo. Mas não sabe para onde ir. Se volto para o meu país, encontro os búlgaros e os árabes que cortam a garganta a toda a gente. Se volto para Portugal sou queimado. Se fico nestas terras arrisco-me a ser enfiado num espeto, assado e comido.
Optimismo. Pensamento positivo. Alimentação racional. Abstinência e água do Luso. Vegetais. Anti-tabagismo. Naturismo. Piedade para com os animais e fim às corridas de toiros. Tolerância para com os homossexuais e todos os outros alternativos. Brincos nas orelhas dos homens e igualdade para as mulheres. Facilidades no ensino. Auto-estima. Correcção política acima de tudo - dogmas do nosso presente nacional minado pela delinquência e pela vigarice a todos os níveis, mas que se pretende racional, moderno, progressista, tolerante, alinhado lá por fora.
O optimismo português também é filho da nossa ancestral e nacional hipocrisia. É o que é…
E eu tenho que me mentalizar de que sou um bonito rapaz, que ainda estou jovem, que o bilhete de identidade não dá informação fiável a meu respeito. Eu tenho que afirmar a mim próprio que sou um sujeito com muito boas qualidades de carácter, que sou muito boa pessoa. Eu vejo-me obrigado a pensar, neste mundo competitivo, que sou um fulano inteligente. Eu tenho que estar convencido de que sou um profissional exemplar, competitivo.
É. O radiante optimismo nacional pode fazer de mim um tipo ridículo e risível.
E se uso o optimismo é para não começar a exercitar a desconfiança. Sobre os outros. Sobre mim. Sobre tudo.
E reparo num insignificante e estranho exemplo: se por acaso algumas pessoas olham para mim e constatam em tom de censura, “ah, você fuma… faz tão mal, quantos maços fuma por dia?”, e se eu respondo “é verdade, sou um proscrito da sociedade da correcção, dos bons e salutares costumes, da droga, dos assaltos, da violência doméstica galopante, do assassínio do meu vizinho, do suicídio, da depressão e dos violentos desastres de automóvel… sou um desgraçado, fumo, confesso, mas vou deixar de fumar ainda este ano… aliás… já ando a deixar de fumar… estou cheio de força de vontade”… se respondo assim gozo de algum movimento de amnistia no coração das pessoas, e mesmo que nunca me tenha passado pela cabeça deixar de fumar, ou mesmo porque sei que não tenho força de vontade para tanto – ou vontade de fazer essa força. Mas mesmo assim as pessoas, é comovedor e hipócrita reconhecê-lo, ficam contentes por mim, o semblante delas suaviza-se imediatamente quando digo que vou… que já estou a deixar de fumar, “faz muito bem, assim é que é, força amigo!”, e mesmo que eu minta elas irradiam simpatia e humanidade para comigo. Apostam em mim, sem me conhecer de lado nenhum. Fizeram a sua boa acção acção, salvaram uma alma dos infernos do Marlboro. Optimismo,em suma.
Mas se respondo que não tenho intenção alguma de deixar de fumar, a cara das pessoas fecha-se sobre mim, olham-me como se o meu nome figurasse na agenda dos talibãs. Porque eu não lhes dei lugar a qualquer optimismo, mesmo num assunto que me diz respeito só a mim. Não lhes dei esperança alguma de ficarem optimistas por estarem em vias de salvar uma alma das neblinas tabágicas. E a pior coisa que se pode fazer a um cidadão nacional hoje em dia é abrir-lhe um caminho realista, é não lhe mostrar nem uma insignificante via para as quimeras do optimismo.


Ainda no Novo Mundo, no Perú, Cândido espanta-se: O quê? Não existem por aqui frades que ensinam, que discutem, que governam, que intrigam, que fazem queimar as pessoas de opinião contrária? Um velho sábio peruano responde-lhe: “Só se fossemos doidos.Não, amigo, aqui somos todos da mesma opinião:”
 “Ó Pangloss!, exclama a certa altura Cândido. Tu não tinhas imaginado tais abominações. Decididamente, terei por fim que renunciar ao teu optimismo.
O criado Cacambo pergunta a Cândido o que vem a ser isso de optimismo. Cândido replica-lhe: Ó homem, é o furor de insistir em que tudo está bem quando tudo está mal!
“Deixa lá, pode ser que não seja nada”.
“Vais ver que vai correr tudo bem.”
 “Não há-de ser nada.”
“Vais ver que ainda vais dar a volta por cima.”
E se por acaso, puro acaso, e por um golpe de sorte, conseguimos em qualquer coisa da nossa vida dar uma volta por cima, ah, “vês?, eu sabia, eu bem te disse que ias dar a volta por cima, eu bem te disse que não havia de ser nada e que havia de correr tudo bem. Eu sabia.”
Todos nós passámos a saber.


Roubado em terras do Suriname, Cândido vai ter com um juíz a dar parte do mestre de uma embarcação holandesa que lhe levou os haveres. Descreve os factos. Mas fá-lo num tom de voz um pouco elevado e o juíz logo à cabeça aplica-lhe uma multa de 10.000 piastras por ter falado alto demais, fazendo-o pagar outras 10.000 pelas custas do processo. Quanto ao roubo em si, bem, quando o mercador holandês regressasse ao Suriname logo se veria.
Os desgostos secretos são mais cruéis do que as misérias públicas – diz a Cândido um velho maniqueu
E torno a citar Unamuno: Um povo triste na trivialidade das suas manifestações exteriores. Um povo triste mesmo quando sorri; uma literatura triste mesmo quando é jocosa ou cómica.
Estarmos optimistas é confiarmos em que o nosso país está em boas mãos, em que os nossos comandantes aos diversos escalões, do Estado ao local de trabalho, saberão enfrentar os problemas e resolvê-los. O que significa, para a nossa mentalidade, ficarmos sossegados e mantermo-nos apáticos e sem opinião crítica e sem intervenção activa, para não prejudicarmos os nossos legítimos interesses, para não andarmos contra a corrente, para não sermos considerados pessimistas, destrutivos, reaccionários, política e socialmente incorrectos. Populistas!


É de suicidas o povo de Portugal. Talvez seja um povo suicida. Para ele a vida não tem um sentido transcendente. Viver? Para quê? Mais vale não viver.
D. Miguel de Unamuno menciona o pessimismo suicida de Antero de Quental, de Soares dos Reis, de Camilo, ou mesmo de Alexandre Herculano (que segundo ele se suicidou como os monges, de isolamento).
Lord Byron, outro frequentador destas paragens, escreveu num poema a nosso respeito: Poor paltry slaves!” – escravos miseráveis apesar de nascidos entre as mais nobres cenas. Why, Nature, waste thy wanders on such men” – com tal gente, ó Natureza, porque desperdiçaste os favores?
“Não há-de ser nada, tudo vai correr bem, deixa por minha conta”, “e se se descobre?”, “se se descobre o quê?, há para aí tanta coisa para descobrir que não se descobre”, “mas se se descobre?”, “mas quem é que descobre? Quem é que tem moral neste país para descobrir alguma coisa, isto é só cá entre a malta”.
Os jornais, a televisão, “desculpe, mas eu nada tenho a ver com isso,” “não, está enganado, não é da minha competência”, “não comento”, “claro que declino toda e qualquer responsabilidade”, “não quero prejudicar o andamento da justiça”, “o senhor tinha conhecimento de que…”, “eu?, que ideia!”, “a justiça está a funcionar!”,  “mas o senhor não é presidente disto e director daquilo e  comandante daqueloutro?”, “eu?, que disparate, eu não sou nada… “; ou então: “sou sim, presidente disto, director daquilo e comandante daqueloutro, e depois?, já lhe disse não tive conhecimento de nada, e ouça… o que se passa é normal, faz parte da…”, “ah, faz parte?”, “claro que faz parte…”, “digo e repito: não fiz nada de ilegal, não estou arrependido de nada, voltaria a fazer o que fiz”, “mas, senhor presidente”, “começo a estar cansado da má fama de que goza a classe política, a minha classe, enfim!”, “ouça, amigo, isso faz parte…”.
Em Portugal hoje em dia tudo há-de correr bem, porque tudo é normal, porque tudo faz parte.
         Em Constantinopla, Cândido encontra-se com um célebre dervixe, homem com fama de ser o maior filósofo da Turquia.


Mestre, porque foi criado um animal tão exótico como o Homem?, pergunta ele ao dervixe.
Que tens tu com isso?, responde-lhe o sábio.
Mas, mestre, que devo então fazer?
Estares calado.
É que eu gostaria, mestre, de discutir um pouco convosco os efeitos e as causas do melhor dos mundos, da origem do mal, da natureza, da alma e da harmonia estabelecida.”
E ao ouvir isto, o dervixe, sem cerimónias, fecha-lhe a porta na cara.
Que razão nos dão os nossos maiores para acreditar, para sermos optimistas - para não sermos esses execrandos populistas resingões? Que valor têm as ilusões de legalidade, transparência e prosperidade que nos têm criado? 


Porque, muitas das vezes, conhecermos a verdade de nós mesmos pode significar a depressão, a auto-aniquilação. E pelo que dizem as estatísticas hospitalares, os portugueses do século XXI andam a oscilar muito entre serem optimistas sem razão, ou serem depressivos. E esses infelizmente com toda a razão.
O optimismo português do século XXI é um desespero. Pode ser um grito de vida ou de morte.
E restam-me poucas dúvidas de que para o nosso ridículo índice de produtividade, entre outras e desvairadas coisas, muito tem contribuído o optimismo televisivo dos nossos dirigentes. Dirigentes que talvez não nos falem toda a verdade quanto à nossa realidade. A nossa realidade depende muito dos altos e baixos das sondagens eleitorais. E elas são optimistas, hoje para uns amanhã para outros, quando não são optimistas para os dois lados no mesmo dia.

 “Sim, sim, o treino de ontem deu indicações bastante positivas”.
“Foi uma reunião muito produtiva.”
“Sabe, tirei ilacções bastante úteis daquilo que vi”.
“Pareceu-me uma decisão muito correcta.”
Ou como quando no ano passado o Sporting acabava de perder um de muitos outros jogos e o seu guarda-redes declarava às televisões: “A equipa está de parabéns”.
Não acontece nada neste país que não seja correcto, que não dê indicações positivas e não há reunião que não seja produtiva nem ilacções tiradas que não apontem para boas perspectivas. E contudo…


Mas - e isto também é queiroseano - como povo religioso e temente (a Deus ou ao que for preciso) que sempre fomos, sempre preferimos a mentira piedosa à crueza da nossa verdade.



3 comentários:

  1. Que cobardia nos faz realmente não enfrentarmos as nossas fraquezas e os nossos erros? Temor, como muito bem diz, "ao que for preciso"...
    Um abraço.

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  2. Joel Costa faz ressaltar pelo seu escrito uma psicologia muito própria do povo português, a que já Cunha Leão se tinha dedicado e confrontado num outro tempo.

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  3. Bom dia, Joel Costa.

    Sem outro meio de contacto ( a não ser um e-mail na antena2 que já usei e parece não estar funcional), aproveito para lhe perguntar se é possível anexar ao seu blogue os programas radiofónicos das «Questões de Moral» dos quais é autor. Eu tenho em arquivo informático os programas desde 2008 a 2012 (disponibilizados no site da Antena2) mas não consigo encontrar ou aceder a registos de anos anteriores.


    Grato pela atenção.

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