terça-feira, 10 de abril de 2018


             UM TEMPO DE NINGUÉM

 
 

Em Salamanca, José Maria de Alpoim passeava com D.Miguel de Unamuno quando lhe chega a notícia do assassínio de D. Carlos. Alpoim não cabe em si de contente. Enfim, lá morreu o canalha, terá ele dito ao grande filósofo espanhol.
 
 
Dias depois, está em Lisboa com Guerra Junqueiro no Hotel do Comércio. E ouvia Junqueiro dizer: se houvesse dependido a morte do rei de que eu, sozinho neste quarto, mexesse o meu dedo mindinho, não o teria feito; nem pela morte do rei nem pela dum Caim nem pela dum Judas; mas enfim, mataram-no, está bem morto.
 
 
Alpoim disse: vou mandar um telegrama de condolências à rainha. Junqueiro agarrou-o, não, não faça tal, não pode fazê-lo…
Mais tarde, Guerra Junqueiro escreveria: lamento de olhos enxutos a execução do monarca. Mas se tivesse o dom de o ressuscitar, não o levantaria do túmulo. Deploro, angustioso, a morte do príncipe. E diante dos cadáveres dos homicidas, descubro-me, ajoelhado, com frémitos de terror, lágrimas de piedade e, porque não hei-de confessá-lo?, de admiração e carinho.
 
 
E Raúl Brandão escreveria: só ele fala e sonha um Portugal esplêndido. O plano estabelecido e iniciado fecha-se com um ponto culminante: o tratado de comércio com o Brasil, que D. Carlos teve, e que, ao que parece, tarde, dificilmente, ou jamais, se conseguirá. Foi este homem que assassinaram como um ladrão a uma esquina de Lisboa.
Diz Rocha Martins que em Lisboa os sinos dobravam, soavam as salvas, rezava-se nas igrejas, e, nas ruas, os políticos oposicionistas davam-se os parabéns vestidos de luto pesado.
 
 
Para os funerais régios, recorrendo a Rocha Martins, direi que Lisboa se encheu de estrangeiros. Todos os países mandavam as suas missões, emplumadas, garridas. Principes, embaixadores e militares da Europa e das américas, chegavam e curvavam-se diante dos ataúdes, enquanto nos núcleos republicanos se preparavam os primeiros comícios.
 
 
Estava um sol triste. Era sábado. O comércio ou estava fechado ou estava à meia porta. Veio gente de fora. Desde as Necessidades até S. Vicente que logo a partir das 8 da manhã que se formaram alas de povo. Havia crepes nos uniformes e nas bandeiras. Etc.
João Franco perspectivava a sua continuação à frente do governo. Pelo menos até que os ânimos acalmassem. Não seria numa emergência daquelas que o iriam afastar do poder. E tudo acontecera logo naquele dia, dia de inauguração da sua nova casa na Alexandre Herculano, com um jantar de cerimónia já marcado.
 
 
Outrossim declaro que me apraz que os actuais ministros e secretários de Estado continuem no exercício das suas funções –concluia a proclamação que João Franco levava a assinar ao novo rei.
João Franco apresenta o texto da proclamação e aguarda as observações do jovem monarca. Diz-se que D. Manuel abriu a boca para recusar assinar o documento, especificamente no ponto que mantinha o governo em funções. Que não passava de um formulário, acorrera João Franco. E que era necessário para que o novo rei pudesse ser investido, e já que aquele governo gozara da confiança do rei falecido. O assinar não comprometeria D. Manuel na obrigação de manter exactamente aquele governo.
 
 
El-rei fará o que entender – remata João Franco. E D.Manuel assina o seu primeiro documento como chefe de Estado. O dia da queda da monarquia aproximava-se.
Os dias que medeiam entre os acontecimentos de 1 de Fevereiro de 1908 e os de 5 de Outubro de 1910, parecem uma espécie de tempo de ninguém, histórica terra de ninguém entre duas idades nacionais. A moral política e institucional dominante e a tradição dos séculos escoavam-se rapidamente.
Um tempo de ninguém e de todos, ou de muitos,o que vem a dar no mesmo. No dia 1 de Fevereiro de 1908 caíra o silêncio sobre Lisboa pelo resto da tarde e pela noite dentro – tive uma avó que me falava sentidamente deste dia. Os transeúntes escapavam-se depressa para as suas casas – e não havia televisão. Lisboa esvaziou-se. Os eléctricos circulavam vazios. As lojas fecharam imediatamente os taipais logo que correu a voz de que o rei acabara de ser assassinado.
 
 
A imprensa das diversas cores políticas – ou mais simplesmente a monárquica e a republicana -, na sua maioria, noticiou o regicídio como noticiaria mais um crime de sangue ocorrido nalguma baiúca. Ninguém vituperou os assassinos. Ninguém exprobou os mandantes. Ninguém louvou o rei assassinado. Ninguém se apiedou do príncipe real desaparecido tão jovem. Ninguém se condoeu da triste sorte da rainha.
 
Dos jornais da época: Deus vele por este pobre Portugal…que o novo rei de Portugal saiba conseguir a acalmia… os acontecimentos de ontem marcam na nossa História uma tenebrosa era que é preciso encarar com serenidade…
 
 
E da imprensa internacional, os ecos. O Figaro: impossível que o cavalheiresco povo português não repudiasse com horror tudo o que lhe pudesse recordar um crime cometido por mãos de carrascos, sublinhando a simpatia que a nação francesa sempre votara a D. Carlos.
Le Journal: ninguém se atreveria a supor que o rancor da oposição fosse até ao assassínio. E o Le Matin profetizava que entre um ditador (cujo valor intelectual e a força moral arrancaram até homenagens dos inimigos) e os partidos que o combatiam com uma cólera que não respeitava nem a vida humana, perspectivava-se uma luta sem quartel.
 
 
Em Espanha, El País, fazia votos para que o novo rei tivesse a força necessária para arrostar com a sua dor e trabalhar na salvação da sua pátria, enquanto El Imparcial achava que o mais provável era a emboscada ter visado algo mais do que um assassínio.
 
 
Machado Santos, o carbonário mestre da Alta Venda, já depois de ter sido declarado o herói da república, declarava em 1914: D. Carlos era um grande rei, e mesmo o pequeno era simpático. Hoje está decaído, mas a culpa foi de quem lhe matou o pai e o irmão. A mim, chamaram-me herói, mas juro que se tal me sucedesse morreria de pavor. Mal sabia ele para o que estava guardado. Nunca se sabe para  que se está guardado…
Os lutos foram ordenados por 8 meses.
        João Franco estaria convicto de que a seguir ao regicídio e por entre a imensa agitação que naturalmente se seguiu, continuaria à frente do governo. Na proclamação anteriormente citada, o novo rei jurava manter a religião católica apostólica romana e mais a integridade do reino.
 
 
Outrossim declaro que me apraz que os actuais ministros e secretários de Estado continuem no exercício das suas funções. E foram estes dizeres – aliás sugeridos por ele mesmo - que alimentaram a fé de João Franco.
João Franco ainda teria veleidades de poder castigar os reais autores da morte do rei. Ainda pensava na ferocidade de uma nova repressão.
A 2 de Fevereiro, o dia seguinte, a vida política continua. Reunião do conselho de Estado. Sob a presidência do novo rei (ferido, de braço ao peito) e na presença de toda a família real. José Luciano de Castro pelos progressistas, todo ele é vindicta, quer o franquismo esmagado, humilhado. Mostrava-se implacável perante o monarca de 19 anos. Júlio de Vilhena, pelos regeneradores, em contrapartida, pensava que João Franco poderia continuar a sua obra no sentido da defesa do trono e do regime, embora com melhor inteligência nos passos a dar. Pensava que um afastamento de Franco enfraqueceria inevitavelmente o regime monárquico e achava que esse afastamento só viria provar a cobardia dos defensores do mesmo regime monárquico.
 
                        
 
             Desejo que todos se agrupem em volta de mim e me ajudem a cumprir os meus deveres de rei constitucional. Esqueçam as inimizades e auxiliem-me – implorava o novo rei na reunião do conselho de Estado. E tentava a quadratura do círculo: um governo em que os dois partidos monárquicos tivessem lugar e o apoiassem com vista à acalmação dos espíritos e à colaboração de todos para bem do país.
 
 
João Franco entrou nos reais aposentos e curvou-se. Diz-lhe D.Manuel: pensei muito esta noite na situação política. Imagino que só um ministério de acalmação será desejável. Só lhe pedia que não se opusesse… que não contrariasse tal solução… e que não visse aí nenhum melindre pessoal. D. Manuel acabava de despedir um ainda esperançoso João Franco. Só lhe pedia que não se melindrasse – repete o rei. Vossa Majestade é  o filho de El-rei D. Carlos que servi e amei. Estou pronto a acatar qualquer governo que o rei entenda formar.
À saída do conselho de Estado, o duque de Palmela abraçava João Franco: e eu que tinha tantas esperanças em você! Mas este é o fim da monarquia, não é João Franco?
Ferreira do Amaral, por pouco simpático que fosse para muitos, é o homem indicado para formar o tal governo de acalmação.
 
 
Ferreira do Amaral fazia parte de uma espécie de clube que se reunia na Rua dos Condes, chamado Os Makavenkos. Tinha fama de corajoso e valente, de piadista, de liberal. Era amigo de republicanos mas nunca como tal se assumira. Apontavam-se-lhe na folha alguns senãos, o não ter sufocado como devia uma revolta de marinheiros, o ter mandado açoitar pretos, o de devorar pão com manteiga entre os pratos de um banquete, dado que não concebia banquete onde se parasse de comer.
 
 
O marquês de Soveral, embaixador em Londres, também vai ouvir das boas do rei Eduardo VII: que país é esse onde matam um rei e um príncipe e a primeira medida que se toma é demitir o ministério? Quer dizer que a revolução triunfou!
 
 
Segundo alguns comentadores, teria razão Eduardo VII. Os assassinos saíam moralizados do caso. Só graças a eles fora possível acabar com a ditadura. Segundo outros comentadores, não teria razão Eduardo VII. O erro foi não se ter escolhido bem o ministério do dia seguinte.
Na verdade, o ministério de Ferreira do Amaral toma medidas imediatas. Anula decretos ditatoriais, solta os presos políticos, permite a venda pública de postais ilustrados com os retratos dos assassinos - doravante saudados como heróis nacionais -, e dá toda a liberdade aos organizadores de uma romagem ao Alto de S. João, às campas do Buiça e do Costa.
 
 
Fosse como fosse, João Franco pouco mais tempo poderia continuar como chefe do governo. Era considerado o agente indirecto do regicídio por mor da sua política ditatorial. Era demasiado forte. Todos pediam a sua cabeça. E João Franco é compelido pelo novo governo a abandonar o país.
 
 
Mas mesmo depois de apeado do poder, João Franco continuara a frequentar o paço. E um dia recebe em casa  um telefonema. Era o juíz do instrução criminal Alves Ferreira, que ele próprio nomeara.
- Enquanto o senhor estiver em Portugal, o presidente do governo não vê maneira de restabelecer a ordem no país…
 - E então?
 - Então, pede a V. Exa. que saia do país…
 - Eu? Mas porquê?...
 - Porque é necessário…
 - Bem, o ser expatriado não faz muita diferença, porque felizmente sou rico, mas queria saber porquê…
 - Olhe, porque não podemos responder pela segurança de V.Exa…
 - E que me importa isso? Careço de que o governo me intime…
- Pois então, está V.Exa. intimado a sair de Portugal.
 
 
A viagem de João Franco, de combóio, até ao exílio em Itália (onde tinha propriedades) foi acompanhada pela imprensa estrangeira, que a cada escala do percurso corria a tentar entrevistá-lo.
Essa tragédia foi para mim um golpe doloroso. Conservo, apesar de tudo, a esperança de ver o meu país refeito do abalo e tenho inteira confiança no futuro de Portugal e da monarquia que acaba de se tão cruelmente atingida. Quero viver longe da política, ignorado. Deixo ao tempo o cuidado de julgar do meu procedimento. Oponho o desmentido mais formal à notícia de que a raínha me tivesse acusado de haver sido moralmente o assassino de seu esposo.
 
 
A quem convinha o assassínio do rei? Nanja aos republicanos, não obstante as aparências.
Os republicanos foram logo apontados como grandes responsáveis e logo sairam a terreiro a defender-se com unhas e dentes. Se ainda ao menos a república tivesse sido implantada nesse dia 1 de Fevereiro de 1908, ou nos dias seguintes, era como o outro. Mas não foi.
 
 
A muitos notórios republicanos chegou a repugnar o regicídio. Mas o populacho, intoxicado como vinha a ser pela propaganda da nova ordem a instaurar, aumentava a pressão sobre os notáveis e o Partido Republicano não lhe podia ficar indiferente. Um dilema moral.
Sugere Jorge Morais, no seu livro Regicídio, A Contagem Decrescente, que os republicanos estavam obrigados políticamente (e moralmente, digo eu) a condenar o regicídio para o qual, afinal de contas, e enquanto instituição, não tinham metido prego nem estopa, e logo por saberem que tudo se poderia virar contra eles.
Mas a verdade é que também não podiam deixar de aproveitar a circunstância e o contexto que o destino (e a mão individual que se moveu fora da disciplina partidária) lhes oferecia para prosseguirem os seus intentos.
 
 
E os monárquicos?
Os monárquicos, muito previsivelmente, terão começado a temer pela própria monarquia. Porque sabiam das culpas que tinham no cartório - e também das mãos que se haviam auto-marginalizado à instituição monárquica e se tinham movido para o crime. De uma parte, a condenação de João Franco e da ditadura que levara ao fatal desfecho; da outra parte, os que queriam o reforço político do mesmo João Franco, com endurecimento dos processos ditatoriais. Enfim, andavam tão às aranhas quanto os republicanos.
Monárquicos e republicanos enredados, embora por desígnios opostos, em espinhosas questões de coerência, ou seja, de moral.
 
 
As finanças do país estavam pelas ruas da amargura O atraso nacional generalizava-se a todos os sectores da vida. No princípio do séc. XX, anunciadas as importantíssimas visitas de Eduardo VII de Inglaterra e de Afonso XIII de Espanha, Portugal não tinha um palácio em condições para receber hóspedes de Estado.
 
 
Estava tudo numa ruína. Nem havia carruagens ou parelhas de cavalos em qualidade e quantidade suficiente para transportar monarcas estrangeiros e respectivos séquitos em visita oficial. Tudo estava ao abandono.
 
 
A ordem pública continuava problemática. A propaganda republicana subia de intensidade e intimidava a sério monárquicos e monarquia. D. Manuel, muito novo e impreparado para cavalarias tão altas e complicadas, seria outra dor de cabeça.
 
 
A monarquia tinha escapado à justa. Não se sabia por quanto tempo escaparia ao reviralho, mas previa-se que fosse por pouco. Um regime – e mais do que um regime, uma tradição universal milenar, um estado de alma, uma cultura profunda, uma civilização – agonizavam em Portugal, como no resto da Europa. Uma nova ordem anunciava-se prenhe de incógnitas e hesitante em afirmar-se desassombradamente.
Vai ser Afonso Costa a propor nas cortes um pacto de não agressão entre republicanos e a monarquia, segundo José Relvas. Um pacto logo inviabilizado por uma raínha de alma ferida e com grande e natural influência sobre o filho. E assim a revolução republicana ficará mais próxima. 
 
 
Magalhães Lima, grão-mestre da Maçonaria, mais tarde escreveu: a ditadura franquista, com os seus corregedores à maneira de Pina Manique, irritava a opinião, e pode bem dizer-se que muito contribuiu para acelerar a marcha da República.
 
 
      E Pinheiro Chagas: sabe-se hoje que foi por essa ocasião que maior incremento tomou a propaganda revolucionária e que maior desenvolvimento tomaram as associações secretas, cuja organização até essa data estava apenas vagamente esboçada.
 
 
Monarquia ou república? Não era uma opção de fundo, como se viu antes e depois depois do 5 de Outubro, com tanto monárquico a dissidiar e a passar-se para o inimigo sem rebates de consciência. O contrário não sei se se passou tão frequentemente. Duvido. Mas os tempos eram de reviralho e as monarquias estavam secularmente desgastadas. E ainda ninguém sabia, em república, para o que estava guardado.
Mas o que ocorre perguntar é: então e as culpas?, as culpas morais, as culpas materiais? Como é que ficou o caso? Quem mandou afinal matar o rei? Os mandantes dos assassinos foram castigados? Claro que não. Eram senhores. Eram importantes. Alguém importante em Portugal é lá agora castigado?
 
 

 

2 comentários:

  1. São todos tão inocentes... Não fazem, nem sabem de nada. Obrigada, caro Joel por esta bela análise de um tempo tão conturbado.

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  2. Mais um insólito episódio português, eivado daquele sentimentalismo paralisante, pré-reflexivo, ao qual nem os intelectuais da época escapavam.

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