EXISTENCIALISTAS
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E dizem… li num dossier organizado pela revista
Magazine LIttéraire… dizem os críticos, ou aqueles que tudo sabem da vida
sexual das grandes personalidades, os historiadores, os investigadores… dizem…
disseram… que Sartre nunca terá proporcionado especial prazer sexual a
Beauvoir. Deu-lhe, isso sim, quanto a isso tenho a certeza, um imenso prazer
intelectual. O que, em certos casos, pode funcionar como um elemento supletivo
de sensualidade, também estou convencido disso, uma overdose de líbido… ai que bom estar na cama como este homem
(mulher) tão inteligente… ai esta sensibilidade, estas magníficas e tão bem
torneadas frases que ele, ou ela, diz… qualquer coisa assim.
E como já se
deixou ver, não é precisamente sobre a obra e o pensamento de Sartre e de
Beauvoir que eu quis organizar esta minha conversa.
Questão de moral, isso sim,
pode ser. E este factor humano que é comum a génios e a destituídos, o desejo,
a repulsa, o afecto, o ódio, a liberdade, a solidão e a alegria, o que não for
literário nem imediatamente filosófico – sem deixar de o ser, aí é que está a
piada; sem deixar de o ser e de intervir na letra e no pensamento. A vida
privada. Uma autonomia de vida. Uma soberania pessoal. Liberdade, ora aí está!
A existência apela à liberdade individual, a tocar aqui e ali a libertinagem e
a felicidade (le bonheur) no desprezo
possível dos códigos de classe e de sociedade, das convenções sempre capazes de
castrar impulsos e contribuir, quantas vezes, para muito do nosso mal-estar de
vida.
Também acho que
já o disse, que quando (os cafés!) comecei a ouvir falar das relações deste
casal singular, assim por alto, isto do amor livre, anos 60, eu pelos meus 18,
19 anos, a impressão foi de uma idealização dessas míticas vidas de Sartre e
Beauvoir. Quando mais recentemente, com os meus 18, 19 anos muitíssimo
distantes, me fui às fontes, o meu desconsolo, não posso negar, foi algum.
Havia, à superfície da letra, pouco ideal e muito material, e muito físico.
Disse à superfície da letra, porque no profundo do espírito é difícil, ou
impossível, penetrar. É que as teorias de amor caem sempre em cheio sobre o
maravilhoso. É a prática do amor que nos dá a volta à cabeça.
Mas a prática
amorosa, ou, talvez melhor, o princípio amoroso Sartre/Beauvoir, foi uma moda
conjugal, por assim dizer, para os baby-boomers
filhos do pós-guerra, como eu, nesta Lisboa dos anos 60.
No memorial A Força das Coisas, Beauvoir confirma. Há muitos casais que estabelecem mais ou menos o mesmo pacto que eu fiz
com Sartre: manter, a despeito de todos os desvios, o caminho principal, uma
certa fidelidade. E um compromisso destes tem os seus riscos. Questão de moral
pessoal, sim senhor. Um pacto baseado
na verdade, não na paixão, insisto.
Se porém os
aliados mantivessem relações sexuais esporádicas, passageiras (contingentes),
não haveria crise. Mas isso também quereria dizer que a liberdade deles nem
mereceria tal nome. Sartre e eu fomos
mais ambiciosos, queríamos viver também os amores contingentes.
Contou Beauvoir
que em 1945 o existencialismo andava na boca dos franceses. Uma filosofia da
consciência, consciência que era abertura ao mundo e perda nesse mundo. O
existencialismo era o existir fora de si. Ou para além de si. O Homem que é
atirado para as coisas, para os fenómenos. Coisas, fenómenos, que são o cerne
da existência mesma. E se a existência é um dado gratuito, o sentido só poderá
ter origem no Eu, nos actos e nas escolhas de um Eu para sempre condenado à
liberdade.
Num café de
Paris, uma senhora enerva-se, solta um palavrão, depois cai em si, pede
desculpas aos circunstantes. Dizendo: perdão,
eu devo estar a tornar-me existencialista.
É por essa
altura que Sartre profere uma conferência, sob o título O Existencialismo é um Humanismo – que veio a dar em livro e chegou
a ser publicado em Portugal (eu li-o no intelectual café, e não me perguntem o
que na altura tirei dele).
O existencialismo era, portanto, e essencialmente, um humanismo (o que hoje nos parece mais do que óbvio), e Sartre
declara à vasta e douta assistência que a filosofia dele não era a priori positiva nem negativa. Mas o caso
é que Deus não existia, e o Homem construía-se a si próprio, sem tutelas
espirituais, e assim se tornava responsável pelo seu destino, por aquilo que
era ou que viria a ser, sem alibis, sem desculpas.
O Homem estava condenado a
ser livre – uma chatice. Porque a existência lhe precedia a essência. E a
existência era um absoluto de liberdade pessoal. E tal circunstância tinha
fatalmente aplicação aos lances do amor. Amor só haveria aquele que era
construído. O amor só se manifestaria no decorrer de uma relação amorosa… ui,
onde esta conversa nos levaria… e nessa conferência houve desmaios, desacatos,
cadeiras pelo ar…
E do companheiro
Sartre, Beauvoir disse que no plano literário ele sonhava ser ao mesmo tempo um
Stendhal e um Spinoza. Segundo ela, Sartre teria lido a Chartreuse pelo menos vinte vezes. Aliás, Beauvoir elevaria
Stendhal às alturas no seu Segundo Sexo.
E mais porque Stendhal nos seus livros nunca fez das mulheres simples e
irrelevantes objectos, fez delas sujeitos de parte inteira. Stendhal não se limita a descrever as suas
heroínas em função dos seus heróis, antes lhes confere um destino próprio. Para
ela, Stendhal era o mais moderno dos romancistas, comparado com Lawrence, com
Claudel ou Breton, a quem chama de escritores machos, odiosos ou ridículos,
embrenhados no mito do Eterno Feminino.
Não nascemos mulher, tornamo-nos mulher. Frase forte do
livro O Segundo Sexo. E não se pode
esquecer que, não obstante todas as iniciais dúvidas, Beauvoir era existencialista,
pensava existencialista. Logo, não jurava pelo que se costuma chamar de
natureza humana. Tudo seria construído e a feminilidade também seria uma
construção pessoal e social. E em todas as culturas que estudara o homem era o
sujeito e a mulher era o Outro. Porquê?
A unidade de
medida do existencialismo, já se viu, era a liberdade. Mas a liberdade era um
nunca-acabar de obstáculos para as mulheres, e a sociedade ainda não estava
preparada para encarar a mulher como ser livre – isto em 1949… hoje já deve
estar (ainda não?).
E o livro O Segundo
Sexo, em 1949, foi um escândalo. Beauvoir tinha ido longe, mais longe do
que as escritoras a que os franceses chamavam travestidas, George Sand e
Colette.
Dessa obra –
como já da escrita de memórias – ressaltavam certos mal entendidos. Beauvoir
perguntava-se: alguma vez eu escrevi que
as mulheres eram como os homens? Alguma vez eu pretendi não ser uma mulher?
Não. Nunca. O esforço assentava na definição das particularidades individuais
de uma condição feminina, que era a dela. Que a feminilidade não era em si
mesma uma essência, uma natureza inelutável. Que a feminilidade era, sim, uma
situação criada, histórica, civilizacional, a partir de certos elementos
fisiológicos, bem entendido. Eu não
negava a minha feminilidade. Mas também não a assumia. Nem pensava nisso. Eu
tinha as mesmas liberdades e as mesmas responsabilidades que os homens.
Oh, mas será que
pesava alguma maldição ancestral sobre as mulheres? Pesava, sim senhora. E era
o sofrerem. E era o acomodarem-se. E era o felicitarem-se até pela dependência.
Uma dependência a que eu fui poupada. Ser
feminina era apenas um dos dados da história pessoal de Beauvoir. Não era uma
explicação.
Recuando a 1946,
parece que estou a ouvir Beauvoir a discorrer com Sartre. Que significa ser
mulher? Sartre a objectar que para ela nem significava assim tanto como isso.
Omessa! Pois não, ela levava o mesmo tipo de vida que os amigos homens, era uma
privilegiada. Alguma vez você se sentiu
inferior por ser mulher? E o resultado desta conversa foi Beauvoir ter
posto de lado tudo o que planeava escrever e passar várias semanas encafuada na
Biblioteca Nacional a recolher materiais para o que desejava fosse um extenso
ensaio. E foi. O Segundo Sexo. E até
ganhou a fama de ter sido um marco literário do século XX.
Tudo muito bem.
Ou tudo muito mal para as feministas mais radicais, que criticaram com
desassombro os valores masculinos em que Beauvoir fundava o seu feminismo,
nomeadamente a indulgência para com esse execrável chauvinista-machista que era
o Sartre.
A Beauvoir a
escrita romanesca começou por não convir muito. A princípio. É Sartre que a
convence a experimentar o romance – como já vimos. E enquanto o desenvolto
Sartre, heterogéneo e saltitante, dá à evidência a capacidade de transitar
calmamente de género para género, romance, teatro, ensaio, tratado filosófico,
e até o script para um filme de John
Huston – que se realizou de facto, Freud,
mas não com o guião de Sartre.
Beauvoir concentrou-se na coerência e no rigor
de pensamento. Ensaios escritos de 1949 a 1974, está muito bem, mas
fundamentalmente romances e memórias, desde sempre até à velhice, até aos
últimos alentos.
Bom, a escolha
deles, deles os dois, estava feita há muito – desde 1929. Prioridade de vida: a
literatura. Cada um tinha a sua obra para cumprir, a sua vida de trios e
quartetos amorosos, o seu destino, enfim, para viver. Juntos. Livres.
Em 1938, Sartre
irrompe pelas consciências contemporâneas quando publica o primeiro romance de
grande sucesso, A Náusea. O
existencialismo. A angústia. O Nada. A chatice da liberdade, da
responsabilidade. Onze anos depois, é Beauvoir quem revoluciona o pensamento
francês com O Segundo Sexo. Em 54,
Beauvoir ganha o Prémio Goncourt com Os
Mandarins.
E dez anos depois do Goncourt de Beauvoir, Sartre ganha o Nobel.
E recusa-o.
Desculpar-me-ão,
mas… eram tempos infelizes, é verdade, mas podia-se pensar, pensar
autonomamente, sem ter que seguir qualquer cartilha de correcções ou corrente
de bom comportamentismo, de formatação, de unicidade de pensamento. E até é muito por isso
que gosto de falar destes tempos imperfeitos da sociedade humana – ah, sim, imperfeitos
para as bitolas de hoje: a perfeição parece que é hoje o mercado soberano, os
investidores anónimos, as redes sociais, o pensamento único, a chamada
democracia, o santificado Estado de Direito, a inovação tecnológica… só.
Ah, e os vírus... mesmo a calhar para a economia liberal, que (a crer nas estatísticas) se vai vendo livre dos velhos improdutivos que só andam por aí a sobrecarregar os orçamentos de Estado.
Bom, mas eram tempos, aqueles, em que se pensava, sim, mas pensava-se, digamos, comunicativamente. Quer dizer, um
pensamento que ultrapassava a cavilação escolástica e era publicado, publicitado,
lido, posto ao alcance do vulgo para suscitar adesões e repúdios. Um tempo de
intelectuais próximos do homem mediano, apesar de todas as densidades
filosofantes. De Sartre, Beauvoir, Camus, Merleau-Ponty, Raymond Aron, e muitos
outros, pensadores conhecidos, apreciados, criticados, eram-lhes conhecidas as
posições.
Pois é… é verdade… os tempos não são
comparáveis…
E vem a ser o
pós-guerra a trazer finalmente a fama mundial ao duo Sartre/Beauvoir. O Homem
estava para ser recriado e era essa a missão do casal Sartre/Beauvoir – o homem
e a mulher, para sermos mais politicamente correctos. Beauvoir chega a dizer
que Sartre vivia, viveu, para escrever e mais nada, como se tivesse mandato
para testemunhar sobre todas as coisas que aconteciam, que existiam –
existencialismo, está bem.
Ora então,
mundialmente famoso, Sartre nunca mais pára e é convidado para conferências por
esse mundo fora.
A primeira viagem é a Nova York, como jornalista, e
curiosamente em serviço tanto para o esquerdista Combat – de Camus – como para o conservador Le Figaro. E pronto, apaixona-se por uma americana. Dolores
Vanetti – o homem medularmente racionalista era inesgotável nas paixões: vai à
União Soviética e apaixona-se pela tradutora Lena Zonina; vai ao Japão e enamora-se
pela intérprete japonesa, Tomiko Azabuki; vai ao Brasil e cai de amores no
Recife por uma jovem jornalista brasileira, Cristina, 25 anos, ruiva, virgem,
com quem pensa logo em casar - ele, que se enchia de urticária em 1929 quando
se falava de casamento...
Beauvoir
diz-lhe: em quase todas as viagens que
fizemos, ou que você fez, houve sempre uma mulher que foi a encarnação do país.
A guerra dividiu a minha vida em duas, diz ele. E
foi. Antes da guerra, tirando o círculo apertado dos amigos intelectuais e dos
confrades, quase ninguém o conhecia. Depois da guerra, a bem dizer da noite
para o dia, Sartre passa a ser um nome mundialmente conhecido. Beauvoir não
passa sem comentar: tive pouco peso
nisso, mas Sartre foi brutalmente lançado para a arena da celebridade e o meu
nome ficou associado ao dele.
Todas as semanas
os tabloides parisienses passam a publicar boatos sobre o célebre casal
existencialista. Sartre e Beauvoir mal podiam andar na rua sem verem os paparazzi a persegui-los como se fossem
estrelas pop. E sai o romance de Boris Vian, A Espuma dos Dias, em que as personagens principais são duas
estrelas da intelectualidade parisiense Jean-Sol Patre e a Duquesa de Bovouard.
O jornal sensacionalista Samedi Soir
chamava a Beauvoir La Grande Sartrienne ou Notre Dame de Sartre.
Caso engraçado,
contado pelo escritor espanhol Jorge Semprun, foi que, naquela vaga de
existencialismo, havia um homem parecidíssimo com Sartre que batia as mesmas
ruas lá de Montparnasse, parava nos mesmos cafés que Sartre costumava
frequentar, e que costumava gritar, furioso, da mesa do café onde estava, ou
quando na rua alguém passava e olhava para ele, eu não sou Sartre!, sósia, sim, mas não sou Sartre!
E o mais
engraçado ainda é que esse homem era mesmo Sartre, no auge da celebridade, a
não querer que o incomodassem com conversas ou a pedir autógrafos.
Nova York. Aventuras
americanas. Sartre aterrou em Nova York no dia 13 de Janeiro de 1945. Não sabia
inglês, nunca tinha andado de avião e apanhou logo uns sustos valentes com os
poços de ar, numa viagem que durou dois dias, com três escalas.
E depressa se
encantou com essa tal Dolores Vanetti, moça ainda mais baixinha que ele, de pais
italianos, que falava francês e lhe serviu de intérprete. Viria ela a recordar
que Sartre estava num estado de tensão e
efervescência, sempre a falar e a contar histórias divertidas, e a puxar-me
para a vida dele.
Quando a
comitiva dos jornalistas franceses volta para Paris, Sartre não descansa
enquanto não regressa a Nova York à procura da Dolores Vanetti. E por lá fica
algum tempo. E como Sartre não havia meio de voltar a casa, as comunicações
eram más e ainda havia guerra – e não havia telemóveis nem internetes, e hoje é
sempre bom recordar isso a quem não viveu, ou a quem já não se lembra que houve
tempos na História humana sem essas coisas – Beauvoir cumpre a cartilha
libertária do existencialismo e a correlativa liberdade individual, e cai nos
braços de um actor meio russo que estava justamente a representar um papel numa
peça de Sartre, o Huis Clos. Nos
braços desse e, já agora, nos braços de outro com quem em tempos idos, antes de
Sartre, e platonicamente, ela tinha namoriscado, René Maheu.
Sem querer fazer
a parte da alcoviteira, tenho a dizer que nesse entretanto, em Nova York,
Sartre (acabadinho de fazer 40 anos) está desgostoso com Dolores, porque ela
quer acabar com tudo. Note-se que ainda não havia tempo para ela se ter tornado
existencialista, e da moral de vida dela ainda fazia parte a fidelidade tout court e, assim sendo, não podia
levar à paciência a existência de outra mulher, a Beauvoir, na vida de Sartre.
Mas é claro que
Sartre regressa a Paris. Regressa a Paris, e, apesar das juras que tinha feito a
si próprio de nunca mais querer saber dela, não se contém e escreve à Dolores.
Ora nessa altura a Dolores (certamente a acusar os primeiros sintomas de existencialismo) começara
a dormir com o amigo de Sartre, Bost, sempre ele (se estão lembrados ex-paixão
de Beauvoir), que também estava na América como jornalista.
Mas mesmo assim,
Dolores responde carinhosamente à carta de Sartre. E as bombas atómicas caem em
Hiroxima e Nagazaki, e Beauvoir sente que para ela o mundo nunca fora tão
terrificante como nesse momento.
Com respeito a
ciúmes, Beauvoir declara que aquela Dolores foi quem mais a mortificou. Porque
a sentia como uma mulher hostil. É que a Dolores queria mesmo casar com Sartre,
e é evidente que também nutria ciúmes fatais da Beauvoir, a pontos de proibir
Sartre de lhe falar na Beauvoir. A paixão
dela assusta-me – escreve Sartre de Nova York. Em especial por não ser esse o meu forte. Estou ansioso por chegar a
casa. Estou meio morto de paixão e de tantas palestras. Oh, mas espera aí, a
Universidade de Columbia estava a acenar-lhe com um belo contrato de dois anos,
e ele, em segredo, já tinha pedido a Dolores Vanetti em casamento.
Honestamente, diga-me lá – a Beauvoir a
falar, desabrida, num café de Paris. Quem
é mais importante para si, essa Dolores ou eu? Sartre responde,
circunspecto: Dolores é muito importante
para mim, mas é consigo que eu estou. O que ele queria dizer, pensou ela, é
que estava a respeitar o pacto de 1929, quando o casamento para ele eram
facadas, e não se falava mais nisso.
Sartre está
apaixonado pela Dolores, sim senhor, mas uma coisa era estar apaixonado por uma
mulher, e outra coisa era desistir da vida que levava para se casar com ela.
Sim, casar com ela, Dolores não fazia a festa por menos do que isso.
E Sartre paga do
seu bolso o caro e difícil divórcio de Dolores de um primeiro marido americano,
e Dolores fica a viver em Cannes, à grande e, evidentemente, à francesa, à
custa de Sartre, e à espera da hora em que ele se case com ela. Mas o pior para
ela era que Sartre se tinha entretanto apaixonado pela mulher de Boris Vian,
Michelle – Vian viria por muito tempo a chorar-se e a acusar Sartre de lhe ter
roubado a mulher.
Vamos lá a ver… sexualmente,
o confessado herói da vida de Beauvoir não julguem que foi Sartre. Não, senhor.
Foi um apagado escritor americano, de seu nome Nelson Algren. A quem ela até
chegou a chamar de marido. De quem ela guardou um anel até à hora da morte.
(Pois é isso,
existencialismo, amor livre, amigos, amantes, trios, quartetos… mas a sombra do
casamento e da vida burguesmente sossegada não lhes saía da cabeça…)
Já se vê que
Sartre não lhe ficava para trás nos projectos com a Dolores. Mas o certo é que
se fartou dela. Por uma vez na vida, Sartre ficava pelos cabelos com uma mulher.
E rompe com ela – ao que se diz com a ajuda da Beauvoir. E viria o tempo em que
o tal plumitivo americano também ficaria pelos cabelos com a Beauvoir e a
deixaria. Para os dois existencialistas o mais importante de tudo mantinha-se
intocado, ora bem: o pacto de 1929.
Até às três da manhã bebo whisky docilmente. O whisky
é uma das chaves para a América. Assim mesmo, Beauvoir também teve a sua
conta de aventuras americanas. E resolve tê-las pelo cair da noite de
Manhattan, a pensar que o melhor para penetrar aquela cultura estranha era
arranjar um amante americano.
Estava lá para
fazer conferências, já se percebeu. Mas foi encontrar-se com a rival, Dolores
Vanetti. Relutantemente. Se recuarmos só um bocadinho no nosso tempo narrativo,
diremos que nesse momento a Dolores estava em vésperas de partir para Paris
onde se encontraria com Sartre na expectativa de vir a casar com ele. No
encontro dela com Beauvoir, em Nova York, o whisky
também escorreu a jorros. E Beauvoir faz o relatório para Sartre: pois olhe, gosto muito dela, fiquei
contente, compreendi-lhe os sentimentos e consegui valorizá-los, e a si também,
por senti-los. E mais notou que a pequenina e reboluda Dolores Vanetti lhe
fazia lembrar um ídolo anamita.
É nesse
entremeio que alguém lhe dá - a Beauvoir - a morada e o número de telefone de
um escritor americano, o tal Nelson Algren. Quando
chegares a Chicago procura Nelson Algren, disse-me um jovem intelectual quando
estive em Nova York, em 1947. E ela enche-se de coragem e telefona-lhe. E
atende uma voz de homem. E ela fala. E o homem desliga. E ela torna a ligar. E fala
mais alto (com o imprescindível sotaque, claro). E o homem diz-lhe que é
engano. E ela não desiste e pede ajuda à telefonista. Tenho alguém em linha que deseja falar-lhe, Mr. Algren. Por fim,
Algren atende.
Atende e
aparece. Aparece para mostrar a Beauvoir as vistas da cidade, clubes de strip tease, bares de negros e pubs de gangsters.
E confessa-lhe: era em sítios daqueles que se sentia em
casa. E assim foi. Paixão de caixão à cova.
Mas Beauvoir não se esquece do
pacto de 1929. E escreve a Sartre – então já em pulgas para se ver livre da
Dolores: mais do que a libertação dos
nazis, mais do que a minha viagem à América, é sempre você a experiência mais
extraordinária da minha vida, a mais forte, a mais profunda e verdadeira.
Isto é bonito.
Anos passados,
bastantes, mesmo assim, Algren vem a ler o livro de memórias de Beauvoir em que
é contado o primeiro encontro entre eles, e vá de escrever, ele também, um
artigo numa revista americana. Quando
chegares a Paris procura Simone de Beauvoir, recomendou-me um
pseudo-intelectual. E Algren escreveu estas e outras coisas engraçadas. Diziam-me que para uma boa escritora ela era
surpreendentemente sentenciosa, desprovida de sentido de humor e tirânica.
E se calhar era mesmo.
É preciso ver
que aquele escritor americano, Algren, não fazia a mais pequena ideia, em 1947,
de quem fosse Simone de Beauvoir, de quem fosse Jean-Paul Sartre, e muito menos
que raio vinha a ser essa bizarria do existencialismo. Mas Beauvoir até se sentia
muito bem, muito feliz por essa ignorância do amante. Feliz, pois claro, estava
com um homem que a desejava antes de mais como mulher. Como já disse, foram
dias e noites de arrebatamento. Diz-lhe ele assim: tem piada, estamo-nos a dar tão bem. Eu, que nunca me dei bem com
ninguém.
No regresso a
Paris, Beauvoir amaldiçoa aquele Oceano Atlântico que a separava do homem do
seu ideal. Mas jura voltar. E volta. Volta a Chicago. E Algren quer que ela
fique lá por casa a viver e que juntem os trapos e se case com ele. E ela tem
que lhe explicar, num paralelismo flagrante com a aventura de Sartre com
Dolores, que a vida dela não era aquilo, não era Chicago coisíssima nenhuma, a
vida dela era Paris, eram os cafés, os amigos literatos, as amiguinhas livres.
Algren não engole a explicação. Ela fica pesarosa com a incompreensão dele. Se
não lhe podia entregar a vida, também não era merecedora do amor dele – coisa
linda, coisa fatal, romanesca. Sou muito
ambiciosa, Nelsinho querido. Quero tudo da vida. Quero ser uma mulher e ser um
homem, ter muitos amigos e estar sozinha, trabalhar muito e escrever bons
livros, e viajar, e divertir-me, ser egoísta e ser altruísta.
E já se sabe que
se viu obrigada a dizer-lhe o que Sartre representava para ela. E que Sartre
precisava dela. Era ela a verdadeira amiga que ele, coitadito, tinha na vida, a
única que o compreendia, que lhe dava paz e trabalhava com ele. Há quase vinte anos que ele fez tudo por
mim. Ajudou a encontrar-me comigo própria e a viver. Não posso abandoná-lo,
estás a compreender Nelsinho. Não posso comprometer a minha vida com outra
pessoa. Detesto falar nisso, Nelsinho. Sei que estou em risco de te perder e
sei o que significaria para mim perder-te, Nelsinho…
E com as coisas
neste pé, Algren farta-se dela, de a ver chegar e partir, chegar e partir. Até
ao dia em que a vai esperar com indiferença, sabendo que alguma coisa, muita
coisa, estava a morrer entre eles.
Conversa de faca
e alguidar, porque, coitado, também tinha a ex-mulher à perna, e ele, que até
se dizia já farto de mulheres, começava a cismar se não seria melhor voltar
para a ex-mulher e casar com ela outra vez.
CONTINUA
Muito obrigada pela partilha de textos tão interessantes e fabulosas imagens para esquecermos o corona vírus e toda a sua paranóia.São momentos de leitura importantes para manter a sanidade mental.
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