EXISTENCIALISTAS 2
Os tempos passavam,
paulatinos. Colocada em Paris, no Liceu Moliére, Beauvoir não tarda a
deslumbrar outra aluna, de seu nome Bianca Bienenfeld, 16 aninhos, loira,
bonita, delicada de modos, e depois fascinada com a história dos trios que
Beauvoir lhe ia contando. Ao mesmo tempo que Sartre seduzia a tal irmã mais
nova de Olga, Wanda, e se deixava seduzir por uma jovem actriz, Colette
Gilbert, confessando-lhe que a ama, mas que não há lugar para ela na sua vida,
onde já estavam Olga, Wanda, e Beauvoir, claro, Beauvoir primeiro que todas e
que tudo. Os trios ampliavam-se, multiplicavam-se.
Quando Sartre se
apaixona por Wanda, diz Beauvoir que no Flore as pessoas olhavam de lado para mim.
E a jovem Bianca acabará
também por ir parar aos braços de Sartre. E Sartre declara-lhe o seu amor e
quer saber se será possível ela vir a apaixonar-se por ele – histórias de
cordel, não? Bom, possível era, que a jovem se apaixonasse por ele, o que ela
não queria de maneira nenhuma era magoar mademoiselle de Beauvoir. Mas Sartre
desvaloriza. Não, Castor não se importaria nada com isso.
E pronto. Era um
novo trio fundado por Sartre às escondidas. Sartre passava a noite com Bianca e
de manhã ia bater à porta de Beauvoir, no Hotel Mistral, a contar-lhe como
tinha sido a noite. Mas também a jovem Bianca se abria com Beauvoir, admitindo
que estava apaixonada por Sartre e que tinha medo de o perder. Beauvoir que
falasse com ele. Depois de ela me dizer
isto descemos para o meu quarto, onde nos envolvemos em carinhos ilícitos. Mas
penso que, em última análise, não sou homossexual, uma vez que, sensualmente,
não sinto quase nada.
Sartre está na
tropa, longe de Paris. Beauvoir vê-se e deseja-se para estar com ele. Para ir
ter com ele ao quartel passa estafadeiras entre camionetas e comboios. E num
fim de semana da tropa, Sartre mostra-se preocupado. Por causa dessa coisa das
mentiras, as mentiras que andava a impingir a Wanda. Parecia-lhe que a rapariga
o amava a sério. Começava a questionar-se. E se fosse melhor ficar fiel a uma
só pessoa? E é quando o jovem Bost salta da cama da Beauvoir e cai todo
juntinho na cama de Olga.
Mas mesmo no
meio da balbúrdia de corpos e camas, Sartre não deixava, de pensar, de
escrever. E tanto assim que chegamos a 1938 e Sartre, passadas muitas
tentativas e cunhas poderosos junto da editora Gallimard, lá consegue ver
publicado o primeiro livro, um romance, o celebérrimo A Náusea.
E nem os seres
de alta compleição intelectual têm meios de escapar à parvoíce e à toleima
barata. Depois de saber que a Gallimard lhe vai publicar a obra – sim, vai, porém
na condição de aceitar a sugestão do patrão, Gaston Gallimard, e mudar-lhe o
título de Melancholia para A Náusea – sai-se com esta: hoje sim, posso caminhar pelas ruas como um
autor. Alguém saberá melhor do que eu a diferença entre o andar na rua como
um paisano vulgar e o andar na rua como um autor.
No caso de Beauvoir, rejeitada pela Gallimard
e logo em seguida pela Grasset, demorava a encontrar editora para o primeiro
romance. Oiça, Castor, porque não se
coloca a si própria na sua escrita? – pergunta-conselho de Sartre. Você é muito mais interessante do que essas
olgas, wandas, biancas, lisas. Sobressalto de Beauvoir: cale-se lá homem!, o quê, lançar-me a mim
própria num livro, não preservar as distâncias, comprometer-me? Só a ideia
de se expor lhe punha os cabelos em pé, Ousar,
ousar – recalcitrava Sartre. A minha
maneira de sentir, de reagir, era tudo isso o que eu deveria exprimir num livro?
Nunca! (Pois, desde então não fez outra coisa em toda a vida e obra.)
A relação de
Sartre com Wanda era pública e notória, mas a paixão de Beauvoir e Bost era
clandestina, enquanto as relações de Bost com Olga eram oficiais. Mas a relação
de Sartre com Beauvoir, estranhamente, também era consumada um pouco às
escondidas, porque Sartre não queria que que Wanda soubesse demais. E Sartre e
Beauvoir lá continuavam a pagar todas as despesas daqueles trios, ou, sei lá,
quartetos, quintetos, às escondidas ou às claras.
Acreditavam
firmemente no socialismo, mas o individualismo (em que acreditavam ainda mais)
refreava-lhes as posições progressistas, e assim se mantinham no papel de
testemunhas silenciosas dos acontecimentos políticos. A guerra! Haveria guerra
ou não haveria guerra?
Apoiavam platonicamente as manifestações operárias, as
greves nas fábricas, porque eram justas, mesmo sabendo que essas manifestações
e greves lesavam gravemente o outro apoio platónico que davam ao governo
socialista de Léon Blum, o Front Populaire. Que viria pouco depois a cair por
acção da extrema direita.
Numa viagem pela
Alemanha ainda lhes custava convencerem-se da realidade, que o nazismo não era
aquele fogo de vista político que os comunistas propagandeavam. E assistiram às
paradas, viram os braços estendidos e os olhares fixos de um povo em transe.
Sartre já
profetizara: se Hitler não fosse derrotado, a França teria a mesma sorte da
Áustria (entretanto anexada por Hitler, como se sabe). Mas havia outras
correntes de pensamento, a dizer que uma França em guerra seria bem pior do que
uma França nazificada. E Sartre continuava a bradar, sem abandonar o seu
individualismo burguês e filosófico, somos
intelectuais, uma dominação nazi roubará todo o sentido às nossas vidas.
E profetizava
mais: aquela seria uma guerra moderna, sem massacres; como a pintura moderna,
sem personagens; como a música moderna, sem melodia; como a Física, sem
matéria. Profecias erradas. Acontece aos melhores.
Por outro lado,
Beauvoir ia dando nota das transformações (e conversões) que se estariam a
produzir nela perante a ameaça nazi. 1939 era ano de rupturas pessoais.
Renunciava ao individualismo – não percebo como uma pessoa pode renunciar a uma
condição que lhe está, digamos, na massa do sangue. Mas Beauvoir, vá lá, dizia
estar a aprender a solidariedade.
Mas também retrospectivava os últimos dez
anos de vida e as transformações e conversões de 1929, a saída da casa dos
pais, a independência económica, o fim das amizades da infância e adolescência
e o começo das novas. E Sartre. E a felicidade assegurada por via do pacto com
Sartre. E a ambição literária, vamos lá, ainda que baseada, segundo ela, numa
vocação abstracta. Queria ser escritora, muito bem, mas iria escrever o quê?
Admitia nunca se ter curado dos males do moralismo, do puritanismo, ou de um
universalismo tão abstracto como a vocação literária. E era o sonho de
felicidade pessoal que a cegava para as realidades políticas.
E por uma bela
tarde de domingo, 3 de Setembro de 1939, a França segue a Inglaterra e declara
guerra à Alemanha. Beauvoir estava no Café de Flore a escrever, e o primeiro
pensamento dela foi para o jovem Bost, a grande paixão contingente do momento.
Bost que estava no serviço militar e que lhe inspirava o pressentimento de que
iria morrer na frente. De caminho, escreve-lhe: meu amor, se lhe acontecer algum mal nunca mais sentirei qualquer
felicidade nesta vida.
Sartre já tinha
acabado o tempo de tropa normal e estava na reserva. Mas, sendo um caso de
guerra, também estava à bica para ser mobilizado e enviado para a Alsácia. E se
Sartre morresse também? As probabilidades não eram muitas, Sartre não tinha uma
especialidade de combate, era meteorologista, mas, mesmo assim, nunca se sabia.
Se Sartre morresse, Beauvoir não tinha que pensar senão numa coisa: suicídio. E
até achava reconfortante essa ideia suicidária. Ao ler a carta em que ela lhe
revela essa intenção, Sartre responde que aquelas ideias de suicídio lhe
transmitiam uma paz profunda. Não
gostaria nada de a deixar para trás. Nunca senti tão intensamente que você e eu
somos um. Ela replica: meu amor, você
não é apenas uma coisa da minha vida, pois a minha vida já não me pertence,
você é sempre eu.
Mas quando
Sartre pensava em Wanda e imaginava a vida no pós-guerra sem ela era como se o
mundo ficasse encolhido. Faltar-lhe-ia a dimensão vital.
Ora Wanda
entrara para os cursos de teatro de Charles Dullin e andava a ser cortejada por
um actor da companhia. Uma corte que não fazia sentido a Sartre. É óbvio que a vida dela sou eu, não pela
ternura que lhe possa inspirar, mas pela necessidade intelectual e material que
tem de mim. Isso mesmo, Sartre continuava a sustentá-la, como sustentava a
irmã Olga, e talvez o jovem Bost, tudo a meias com Beauvoir. Nos tempos
desgraçados de guerra e ocupação, sem o apoio financeiro deles, os amantes cairiam
na miséria mais negra. E nas notas que tomava para uma próxima obra filosófica
(que viria a intitular-se O Ser e o Nada
– eu sou o Eu que os outros conhecem), Sartre escrevia que as relações
humanas envolvem sempre conflito, e que o amor entre duas pessoas é
necessariamente um conflito… cada uma
quer que a outra o ame, mas sem levar em conta que amar é querer ser amado, e
cá está a perpétua insatisfação do amante. O amor era uma batalha. Dois
sujeitos livres a tentarem apoderar-se da liberdade um do outro, e ao mesmo
tempo querendo libertar-se do domínio do outro. Nem mais. O Mal existe, e foi inventado pelos homens de bem.
Sinto o avanço alemão como uma ameaça pessoal. A
minha única ideia é não ficar separada de Sartre, não ser caçada como um rato
numa Paris ocupada.
Claro, vem mesmo
a guerra, a derrota, a consequente ocupação E vem a vida tornada um inferno de
sobrevivência e de subsistência.
Sartre é feito
prisioneiro pelos alemães. Beauvoir tem pesadelos, sim, ele volta, volta mas já não me ama e eu encho-me de desespero.
E de facto,
Sartre volta. Volta depois de uma libertação com as estranhas aventuras que
mais parecem de uma evasão. Volta e toma uma consciência nova das coisas.
Paris
era o enfrentamento da realidade da ocupação alemã, do recolher obrigatório, da
penúria, da fome, do risco, dos atentados, da Gestapo, das perseguições, das
torturas. E diz que não voltou a Paris para se gozar da liberdade, não, voltou
para agir. E como os alemães têm que ser expulsos da França, organiza um
minúsculo grupo de amigos como uma célula (privada) de resistência. Reúnem
secretamente no quarto do hotel onde Beauvoir está hospedada.
Daí a uns
tempos, Sartre vai à zona livre para contactar alguns notáveis possivelmente
próximos da verdadeira resistência.
Malraux – que lhe responde que só os
tanques russos e os aviões americanos podem ganhar a guerra e salvar a França,
nunca os intelectuais pequeno-burgueses.
Gide – que muda de conversa quando
Sartre lhe conta os planos da célula privada dele.
Vai falar com os comunistas
– que desconfiam abertamente dele; passou o tempo de prisão a ler Heidegger, um
nazi; se os alemães o libertaram alguma coisa ele com eles colaborou; e a mesma
conversa dura dos intelectuais: do que a resistência menos precisava era de
intelectuais pequeno-burgueses. E assim a micro-célula de Sartre se dissolve.
Não era que o
epíteto de intelectual pequeno-burguês o incomodasse particularmente, mas tal
classificação não era bastante para lhe definir as posições pessoais e a
atitude cívica.
Até aí, tinham
vivido na militância existencialista, a liberdade individual e sexual acima de
tudo, finalidade suprema de vida. Ilusões classistas, já se sabe. Filhos de uma
burguesia de privilégio, podiam entregar-se a luxos intelectuais, um deles esse
mesmo: o primado absoluto da liberdade individual. E já nos idos anos 30 se
tinham perguntado se seria justo contentarem-se intelectualmente com as
simpatias que sentiam pelas classes operárias, eles, burgueses bem instalados
na vida. Sartre ainda nessa altura pensou em aderir ao Partido Comunista, mas…
as ideias dele, o projecto de vida dele, o próprio temperamento dele, recusaram
tal hipótese. Dois intelectuais
pequeno-burgueses invocando a sua obra, o seu futuro, para evitar o compromisso
político: era essa a nossa realidade – lúcido reconhecimento de Beauvoir.
Começavam agora
a sentir a História carregar-lhes sobre a consciência, a realidade pungente dos
mortos, dos estropiados, dos torturados, dos refugiados, da ocupação pelo
inimigo da cidade onde tinham nascido. A História.
Está bem, mas já
em pleno tempo de ocupação nazi, Beauvoir, apesar de escrever a Sartre que o
sexo com jovens bonitas era só um pobre
substituto do artigo genuíno, entusiasmara-se com outra aluna, Nathalie
Sorokine, também esta de pais russos. Alta, loira, corpo musculado, arrapazada,
ladra de bicicletas. Não há nada a fazer,
ela quer dormir comigo. Nas cartas para o jovem Bost minimizava Beauvoir o
interesse por aventuras lésbicas. Era estranho ser amada por tantas jovens, mas
certamente que não era a ela que amavam, era o reflexo do próprio futuro delas
que ela representava.
Da fama de
abusadora de raparigas à denúncia não se livrou Beauvoir. Em Março de 42, a mãe
da nova conquista, a Sorokine, entra no Ministério da Educação de Vichy com uma
queixa contra ela. Mademoiselle de Beauvoir andava a corromper-lhe a filha
menor. Ou mais: Mademoiselle de Beauvoir seduzira a filha e a seguir, em acção
proxeneta, passara-a para as camas dos seus amigos Sartre e Bost.
Foi-se a ver e a
mãe da jovem sabia quase tudo dos trios e dos quartetos e das rebaldarias do
casal Sartre/Beauvoir. Um ex-namorado da filha tinha-lhe contado tudo. E o caso
meteu polícia. E meteu interrogatórios a todos os envolvidos, e até ao pessoal
e aos residentes dos hotéis, e aos reitores dos liceus onde Beauvoir
leccionara. Os do núcleo dos trios, olha que meninos, mestres da mentira,
combinaram cuidadosamente as estratégias, e, claro, negaram tudo. Pois, mas era
tudo verdade.
Muito mais
tarde, testemunhas abalizadas (Bianca e Nelson Algren, o amor americano de
Beauvoir) confessariam que era isso mesmo, que Beauvoir actuava como
atravessadora, seduzindo as amiguinhas e atirando-as para os braços de Sartre,
que, coitado, feio como uma noite de trovões bem precisava dessa ajuda. E devia
essa ajuda a uma cláusula secreta do pacto de 1929.
O reitor da
Universidade de Paris considerou inadmissível manter Beauvoir nos corpos
docentes. A França queria restaurar valores morais e mademoiselle de Beauvoir
vivia há anos em relações de concubinato, não tinha casa, vivia em hotéis de má
nota, corrigia os trabalhos dos alunos na mesa dos cafés e ensinava a obra de
autores homossexuais, Proust e Gide. Em Junho de 43, o governo de Vichy expulsa
Beauvoir do ensino – o que lhe acrescentou prestígio, diga-se, nos meios da
esquerda. Viria a ser reintegrada depois da libertação, mas sem nunca ter
voltado a dar aulas.
Tenho 32 anos, sinto-me uma mulher feita, mas
gostava de saber que mulher. Sou mulher, sim, mas em que sentido eu posso não o
ser?
Sartre alinhava
novas profecias para o que viria a ser aquela guerra, mas já pensava no pós-guerra.
Não poderia mais esquivar-se à participação política. Um homem tinha de assumir
aquilo a que chamava de “uma situação”, e assumir uma situação era passar à acção.
Ia construindo uma filosofia. O Ser e o
Nada. Desejar o Absoluto e sofrer da ausência dele no desolado caminho da
inutilidade do Ser e do Nada. Qual a relação entre situação e liberdade?
A jovem Olga,
que, como já se disse, não tinha préstimo para grande coisa na vida,
frequentava também os cursos do Théatre de L’Atelier e fez uma pontinha numa
peça dirigida pelo então jovem prometedor Jean Louis Barrault.
Barrault não
desgostou dela e ela perguntou-lhe como poderia vir a fazer papéis mais
importantes. O melhor, na opinião de Barrault, ainda seria arranjar alguém que
escrevesse uma peça para ela. Olga conta o caso a Sartre e está feito, Sartre
não perde tempo: e porque não eu a
escrever essa peça para si?
É verdade que já
não tinham nada um com o outro, mas o que começara por um trio já era uma
família, e Olga fazia parte da família. E é assim que nasce a primeira peça
teatral de Sartre, As Moscas, uma
inspiração bebida na tragédia dos Átridas, o regresso de Orestes para matar os
assassinos do pai – quer dizer, a própria mãe e o amante dela -, e com
evidentes alusões à situação política que se vivia.
O doloroso segredo dos deuses e dos reis é que os
homens são livres, tu sabe-lo, Egisto, eles é que não. Se o soubessem deitariam
fogo ao meu palácio. Represento esta comédia para lhes esconder o seu próprio
poder.
Barrault era
para montar a peça, mas entendeu que Olga não tinha cabedal técnico-artístico
para o papel de Electra e barafustou contra Sartre, alegando – com razão - que
o que ele pretendia era promover uma amante. Sartre não cedeu, pôs os pés à
parede, queria Olga no papel e acabou-se.
E Barrault abandona o projecto, e a
peça vem a ser dirigida por Charles Dullin, grande nome do teatro francês da
época. E a estreia dá-se em Junho de 43, com uma certa Olga Dominique no
principal papel feminino.
Teve pouco público, mas foi um acontecimento teatral
histórico. Críticas mitigadas. Crítica que, aliás, fingiu não ter percebido o
panfleto político dissimulado no texto. A
palavra liberdade na boca de Orestes explodiu sobre nós como uma bomba –
escreveu Beauvoir na noite da estreia. Sou
livre, Electra, a liberdade abateu-se sobre mim como um raio.
Nesse verão de
43, Sartre publica o ensaio O Ser e o
Nada – dedicado a Castor. Ser é tomar
consciência de ser olhado. É o olhar do outro que me conduz a mim mesmo. E
em Agosto sai enfim o primeiro romance de Beauvoir, A Convidada – e a despeito das muitas reservas da editora
Gallimard. Um romance que de tão autobiográfico lança a público as primeiras
luzes sobre as reais relações Sartre/Beauvoir. A teoria que Beauvoir formula,
depois de publicado aquele primeiro livro, dizia que o indivíduo não se podia
conhecer a si mesmo, só se podia contar.
E a Wanda, a tal irmã de Olga, e então amante
principal de Sartre, também lhe dá para o teatro, também frequenta os cursos do
Atelier, e também já fizera um pequeno papel.
Daí que Sartre se sentisse
tentado a escrever também uma peça para ela, uma coisa breve, um cenário único,
um acto único, duas ou três personagens, uma situação de beco sem saída, ou,
como no título original, um Huis Clos.
Ou seja, um inferno – o inferno são os outros: sentença final da peça. Que é
uma obra-prima. Que é um sucesso. O maior de Sartre até então. Wanda integra o
elenco sob o nome de Marie Olivier.
Numa tarde de
princípios desse ano de 43, no Flore, um sujeito que quer editar uma obra sobre
as tendências ideológicas do momento, vira-se para Beauvoir e pergunta: e você, é existencialista?
Muitos anos passados,
ao contar a peripécia, Beauvoir ainda se lembrava do embaraço dela. Sim, quer
dizer, isto é, pois claro… lera Kirkegaard. Sim, sabia que quando se falava de Heidegger,
além da palavra fenomenologia, vinha associada a palavra existencialismo, sim,
sabia disso. Mas também reconhecia que naquele momento de 1943 ignorava o
sentido dessa palavra existencialismo, uma palavra, sim, sabia, acabada de
lançar no mundo intelectual francês pelo católico Gabriel Marcel. Também sabia
das suas (dela) limitações filosóficas e não se atribuía importância suficiente
para ostentar uma etiqueta filosófica.
E agora, a
grande sensação. As vidas estavam num tempo de crises demasiadas e, para ajudar
à triste festa da vida sob a ocupação, Sartre declara unilateralmente o fim da
relação sexual com Beauvoir. A minha
relação com Wanda é perfeita, declarou. Wanda a quem a Beauvoir tinha um pó
dos diabos, como também o tivera à irmã, a Olga, quando a disputara com Sartre. E
filosofava, a Beauvoir: é evidente que
nos homens o hábito mata o desejo. Mas estava com 33 anos e custava-lhe
engolir que o homem que mais amava não a desejasse. Mais tarde viria a
concordar que nos últimos anos, antes da guerra, as relações deles já eram mais
de amizade profunda do que de amor.
Até podia
aceitar que Sartre fora para ela um substituto do pai – e que Olga lhe
funcionara como sucedâneo de uma filha. A dialéctica que corre da infância à
idade adulta transforma as relações afectivas, conserva-as e ultrapassa-as. A minha ligação com Sartre reverte à minha
infância, mas também ao que ele próprio era. Para me interessar por Olga seria
preciso haver em mim uma disponibilidade, um desejo de me dedicar a alguém, mas
foi a personalidade de Olga que determinou a singularidade da nossa relação.
Beauvoir viria a
assassinar Olga. Calma. A assassinar literariamente. Assassinar a personagem
ficcionada para aplacar os rancores, as irritações que a pessoa real lhe
causara, e que era bem assinalável enquanto personagem romanesca. E isso foi
logo no romance de estreia, A Convidada,
que não era muito mais do que o conto das inter-relações daquele trio. O
assassínio da personagem inspirada na pessoa real de Olga foi uma libertação. A passagem do meu coração às palavras (como
Sartre lhe havia aconselhado), por
momentos, pareceu-me um obstáculo intransponível. A ligação maníaca de dois
adultos a uma criança de 19 anos não era explicável senão pela efabulação. Lá
estava: o indivíduo não se podia conhecer a si mesmo, só se podia contar.
E vamos do
individualismo militante ao compromisso político. Era o que a situação
histórica exigia. E tal como nós, Camus
passara do individualismo ao compromisso. Sabíamos que ele já tinha
responsabilidades no movimento Combat. E acolheu com naturalidade o sucesso
literário, a notoriedade, parecia não se tomar muito a sério.
Camus era um
tipo engraçado, contador de histórias em linguagem picante, em luta contra a
tuberculose, um homem que atraía as mulheres. Atraiu Wanda. E atraiu Beauvoir.
Talvez ele e Beauvoir tenham passado os seus bons bocados. A palavra dela a
esse respeito é ambígua até mais não. Jantámos
Chez Lipp e levámos uma garrafa de champanhe para o quarto do Hotel Louisianne
.
Ocorre dizer que
a notoriedade literária também viria a ser festivamente acolhida por Beauvoir.
Entrava verdadeiramente no mundo intelectual, as novas amizades, e todas
importantes, eram uma festa para ela, que se sentia no huis clos daquele mundo acanhado dos trios, das manigâncias sexuais,
das mentiras, as amantes tornadas amigas e as amigas tornadas amantes.
A notoriedade
literária proporcionava-lhe a qualidade de vida, e a qualidade de visita de
casa e de festas de gente de renome, Picasso, Salacrou, Cocteau, George
Bataille, Michel Leiris, Lacan. Foi então que começou a vestir bem.
E é nessa altura
que ela e Sartre descobrem os talentos poéticos de um fulano acabado de sair da
prisão por roubos e outras malfeitorias de delito comum, um fulano chamado Jean
Genet.
Queria que no meu livro entrasse o mundo inteiro,
embora não tivesse nada de preciso a dizer, a não ser uma revolta
individualista contra uma sociedade corrompida.
Depois, ouviu-se
dizer que a bandeira tricolor já tremulava na Torre Eiffel, que o general De
Gaulle já tinha chegado a Paris e se preparava para desfilar nos Campos Elísios.
Foi por uma sexta-feira de Agosto de 1944.
CONTINUA
Que esta malvada pandemia não o impeça de nos continuar a presentear com estes textos e imagens fabulosos...Obrigada, Joel.
ResponderEliminarSaúdo o seu regresso, caro Joel Costa!! Obrigado!!
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