EXISTENCIALISTAS 1
Mademoiselle Simone de Beauvoir perdeu a
virgindade no dia 16 de Outubro de 1929, num 5º andar da Avenida
Denfert-Rochereau, em Paris. Não sei precisamente o número da porta, nem a hora
exacta, não, não sei. Ah, mas, mais importante do que isso, sei a cor do papel
que forrava as paredes do quarto: cor-de-laranja. O operador foi um jovem vesgo
chamado Jean Paul Sartre. Que há meses andava de olho vesgo nela.
Foi a liberdade o que mais perturbou mademoiselle de Beauvoir quando começou a viver em Paris, em casa de uma avó, em Setembro desse ano de 1929. E pelos vistos não perdeu demasiado tempo a usar essa liberdade que a perturbava, porque sim, porque compreendeu depressa, e disse-o, que a liberdade era uma fonte inesgotável de invenções que poderiam enriquecer o mundo.
Mademoiselle de Beauvoir
tinha 21 anos e preparava na Sorbonne a agrégation
em Filosofia. Apresentou uma tese sobre Leibniz que deixou o seu jovem colega
Sartre embevecido e ainda mais estrábico. E embevecido, e de olhos tortos, tanto
pela beleza da moça, como pela voz rouca da moça, como pelo brilhantismo
intelectual da moça.
O jovem Sartre
não devia absolutamente nada à beleza, já se percebeu. Com o seu 1,58 m. de
altura era chamado pelos do seu grupo de intelectuais de “homenzinho”. Era
feio. Era estrábico. Tinha pontos negros na cara. Usava óculos. E fumava
cachimbo. Mas gostava de miúdas que se pelava, sabendo embora de todos esses
contras nas fainas de sedução feminina. Ai ele é isso? Ai não levo nada delas
pelas minhas prendas físicas? Pois eu lhes direi: vou tirar delas tudo o que eu
quiser pela palavra. E se não tirou tudo, tirou muita coisa.
O mais engraçado é que as mulheres não corriam atrás
de mim.
Escreveu muitos anos depois um Sartre já bem maduro. Na verdade era eu que corria atrás delas. Naquela altura, nas poucas
aventuras que me apareceram pelo caminho, depois de me dar a grandes trabalhos
para me aproximar de uma jovem, sentia-me obrigado a explicar-lhe que ela tinha
que ter o cuidado de não contender com a minha liberdade.
Lancei-me numa imprudente aventura quando comecei a
falar de mim; começa-se e nunca mais se acaba – escreveu a menina Beauvoir
quando também já era crescidíssima, quando já tinha estatuto, tempo e vida para
escrever livros de memórias. Impossível
fazer luz sobre a própria vida sem fazer luz também, aqui e ali, sobre as vidas
dos outros.
E a menina Beauvoir passou a alinhar no grupo dos amigalhaços do jovem Sartre, entre os quais estava o mais brilhante deles (a seguir a Sartre, bem entendido), Paul Nizan. E a menina Beauvoir vem a escrever que eram de uma linguagem agressiva, de pensamentos categóricos e de julgamentos implacáveis. Queriam provar que os homens eram corpos de carne e osso atormentados por necessidades físicas, grosseiramente envolvidos na aventura brutal que era a vida. E o grupo atribuiu-lhe uma alcunha: Castor.
E a menina Beauvoir passou a alinhar no grupo dos amigalhaços do jovem Sartre, entre os quais estava o mais brilhante deles (a seguir a Sartre, bem entendido), Paul Nizan. E a menina Beauvoir vem a escrever que eram de uma linguagem agressiva, de pensamentos categóricos e de julgamentos implacáveis. Queriam provar que os homens eram corpos de carne e osso atormentados por necessidades físicas, grosseiramente envolvidos na aventura brutal que era a vida. E o grupo atribuiu-lhe uma alcunha: Castor.
Viver a vida,
somente, sem promessas, e muito menos promessas de casamento, tinha dito o
jovem Sartre à menina Beauvoir – provavelmente ainda no apartamento
cor-de-laranja da Avenida Denfert-Rochereau – a dois passos de Montparnasse.
Já se disse que
o rapaz era feio, baixinho, estrábico, sem gracinha nenhuma; ela era moça burguesmente
educada, alta, pele branca, olhar azul-aço. Dizem os admiradores que conservou
esta frescura juvenil toda a vida. E se numa primeira fase o rapaz, Sartre,
estava apaixonado pela menina Beauvoir, ela nem tanto por ele. Cama? Era coisa
de somenos. Podiam deitar-se ou não, muitas vezes ou poucas. Podiam deitar-se
com terceiros – e deitaram-se, oh, se se deitaram! Mas tinham que dizer um ao
outro como e com quem se deitavam e como tinha corrido. E um pequeno detalhe: Sartre deitava-se com
raparigas… e Beauvoir também.
No fim da vida,
a sempre mademoiselle de Beauvoir explicaria. Sartre era um heterossexual sem
mácula, tout court, e ela era
bissexual em toda a linha. E outra nuance:
ela engataria para ele. Era assim mesmo, assunto deles, o público não tinha
nada que saber – e pouco ou nada soube até saírem memórias e correspondências.
E o que se diz é que, neste esquema, Sartre viria a ter poucas mãos a medir e a
certa altura já pouca pachorra teria para pensar e escrever. E Beauvoir
observava, registava. Nada de especial enquanto o pacto de 1929 se mantivesse.
Pacto de verdade, não de paixão.
Tenho que meter
aqui uma parte pessoal e tenho que dizer que o casal Sartre/Beauvoir era,
chamemos-lhe assim, modelo de um dos mitos da minha juventude de intelectual de
café, o amor livre. Quando ainda havia cafés, já se vê. Cafés onde um jovem se
intelectualizava. Ou, talvez melhor dito, cafés que intelectualizavam a
juventude que tinha tempo e espaço de vida para lá parar. Sartre e Beauvoir
ditavam muito da moda do pensar europeu, é certo, do pensar jovem do mais
ilustrado, progressista, esquerdista ideológico. O esquema era simples (ou
simplificado): homem e mulher gostavam um do outro, sentiam afinidades
profundas, mas não era por isso que iam casar. Não. Viveriam cada um na sua
casa, poderiam almoçar ou jantar juntos, ou dormir juntos, se e quando
apetecesse aos dois. E a não-coabitação era já um factor de liberdade pessoal,
de autonomia individual. Cada um reconhecia no outro o direito ao seu corpo, ao
seu tempo e ao seu espaço. Coisa linda.
E era
inconcebível que Sartre e Beauvoir fizessem cenas de ciúmes quando se sentavam
a tomar o pequeno-almoço no Café de Flore. E porque uma relação de tantas
larguezas só poderia ser vivida por duas pessoas de envergadura intelectual e
cultural que se equivalessem em independência económica. E aí estava um ideal
difícil de conseguir para o jovem mediano de cabedais no Portugal grisalho e
salazarão dos anos 60.
Anos 60.
Justamente. Portugal, primeiros anos 60. O existencialismo não é que tivesse já
barbas brancas por esse mundo, mas quase. E estávamos em Portugal, com censura,
com polícia política, sem telemóveis, sem internetes, uma televisão a que pouco
se ligava – como era possível viver assim? Pois, e a Portugal era costume as
coisas chegarem tarde e más horas. E ainda por cima (ou por isso mesmo), o
existencialismo era um sistema filosófico (vamos chamar-lhe assim) com foros de
subversivo, a encher a boca de liberdades. Mas nos tais cafés que
intelectualizavam a juventude ainda se falava do existencialismo e se discutia
o existencialismo – ou, vá lá, ainda se tentava compreender em que realmente
consistia o existencialismo.
Aliás, mais
popularmente, falava-se dos existencialistas como sinónimo de tipos
extravagantes. Extravagância e anti-convencionalismo nos modos, no vestir, nas
barbas – barbas à existencialista, ainda me lembro; ou talvez ainda julgasse nessa
altura que Sartre usava barbas (nunca usou) e andasse ponta abaixo ponta acima
(andava de fato e gravata). Uma extravagância que, diga-se, tinha que ver com o
existencialismo filosófico essencial, e por demonstrativa de um princípio de
liberdade de vida e de comportamento.
Oh, e as poses
da juventude que os cafés intelectualizavam eram graves, preocupadas, senão
mesmo amarguradas. Angustiadas, por melhor dizer. Era a exibição da tal angústia
existencial, do mal-estar sem nome nem origem; ou derivado dessa liberdade,
depois de o pessoal ter aprendido com Sartre que, refutada liminarmente a
existência de Deus, o Homem estaria condenado à liberdade. O Homem e só o Homem
seria responsável pelo seu destino, pelos seus actos, pelas decisões da sua
vida.
Ah, sim, pois,
era uma chatice. Estava-se melhor com a fé em Deus, com o destino marcado por
Deus e assim, ideias que desculpabilizavam muito. Era uma chatice e era mesmo
uma angústia por nada de concreto, uma angústia existencial. Era o
existencialismo.
E tudo isso ia
dar ao amor. O livre, claro. Outra categoria do existencialismo, do primado da
existência. A vida, enfim. E na minha ideia, 18, 19 anos, a ser
intelectualizado pelos cafés, e mesmo sem me reclamar literariamente do
existencialismo – a minha fezada ia então mais para o neo-realismo (ou realismo
socialista) – a relação Sartre/Beauvoir apresentava-se-me como tudo o que
poderia sonhar com respeito a relações com o outro sexo – o segundo, como
estipularia mais tarde, mademoiselle de Beauvoir. Liberdade. Nenhum compromisso
de vida inteira. Sinceridade. Lealdade. Ausência de ciúmes e de sofrimentos
afectivos. Uma ideologia que vinha mesmo a calhar para mim, que tinha acabado
por essa altura um namoro daqueles para casar…
Pois foi, levei quase
uma vida para saber que a mítica e gloriosa relação Sartre/Beauvoir não era
exactamente assim, idílica.
À apetitosa mademoiselle
de Beauvoir e ao feioso jeune homme Sartre faltava então o exigente exame final
das provas para professor de Filosofia. Foram-se a elas e passaram na escrita.
Faltavam as orais. Sartre vai conversando muito com Beauvoir, e vai-lhe dizendo
carrément: daqui em diante vou
tomá-la a meu cargo.
Verduras de juventude. Beauvoir contrapõe: sou demasiado inteligente, demasiado
exigente e demasiado desembaraçada para que possam tomar conta de mim
plenamente. Ninguém me conhece ou ama por inteiro. Tenho-me apenas a mim
própria.
Sim, verduras da juventude, também.
Por esses tempos
houve quem dissesse que Sartre era um fulano mais ou menos
romântico-sentimental que gostava de passeios ao luar, de conversas ternas à
beira-mar, e que alimentava sonhos de tomar conta de uma jovem bonitota para a
salvar e proteger. A vida sexual podia bem ser separada dos sonhos de amor.
E nas orais da agrégation na Sorbonne Sartre arranca um brilhante
primeiro lugar, a dois pontos do brilhante segundo. E quem era o brilhante segundo,
quem era? Mademoiselle Simone de Beauvoir.
Sartre, todo ele
eram planos para uma vida futura ao lado de Beauvoir, aventuras, viagens, uma
vida empolgante de liberdade e paixão. Daria a Beauvoir tudo o que pudesse dar.
Mas uma coisa havia que ele nunca lhe poderia dar, que era a sua pessoa.
Precisava de ser livre. Ponto final. Dispensava os bens materiais. Só tinha uma
missão na vida: ser um grande escritor. E para se ser um grande escritor tem
que se ser livre, livre para poder viver o mundo.
Sartre não é sensual, mas a harmonia dos nossos
corpos tem um significado que torna o nosso amor mais belo.
Sartre iria em
breve assentar praça. Beauvoir ficaria por uns tempos ainda em Paris e
começaria a escrever um romance. Nos projectos de Sartre havia ainda um
concurso para professor de Francês no Japão, o que implicava uma separação de
dois anos. Passado esse tempo ficariam juntos de novo e estaria na hora de se
fazerem à vida. Uma certeza: a relação deles nunca poderia ser uma rotina.
Casamento. Não e
não. O amor não era posse. E Sartre nem tencionava abdicar dos seus casos
amorosos avulsos. E nem ela, Beauvoir, deveria deixar de ter uma paixoneta ou
outra. O amor deles tinha a qualidade de ser essencial. E primário. Ora se a
relação deles tinha à partida a vocação de durar uma vida inteira, para quê
privarem-se de casos acidentais, secundários, contingentes? O amor deles era um
amor necessário, e convinha que ambos conhecessem também os outros amores, esses,
os amores contingentes.
Amor era amar
outra pessoa enquanto ser livre. Ó homem, então e os ciúmes? Ora ora, fácil de
resolver. Mas como? Era contarem um ao outro tudo o que fossem vivendo, todos
os casos, as circunstâncias, os pormenores, tudo. E assim nunca se sentiriam
excluídos da vida do outro. Nada de segredos. Abertura total, radical.
(Maravilhosa
lição de vida, digo eu, para estes nossos tempos de amores homicidas e
domésticas violências…)
Beauvoir não vai
fora disso. Eram escritores – mesmo sem terem ainda escrito (quer dizer, publicado) nada. Precisavam de
liberdade e tempo. Ciúmes? Sartre não podia com essa palavra. Os indivíduos
teriam de saber comandar as paixões sem se deixarem levar por elas. Não sendo
assim, onde lhes ficava a liberdade? A força de vontade mitigava todas as
emoções do indivíduo livre e soberano de si mesmo. E, em conclusão, ficariam
assim fiéis a esse pacto. Por dois anos. Depois, logo se veria.
Na firmeza do nosso compromisso intelectual, os
luxos, os automóveis, os visons das mulheres, os milionários, não nos
impressionavam, e eu experimentava a respeito deles uma espécie de piedosa
ironia.
Era o que ela pensava ao passar à porta do Maxim’s
ou do Fouquet’s, pensando que eram os ricos,
confinados ao luxo e ao snobismo, isolados das massas, os excluídos da
sociedade. Os refinamentos e os privilégios deles faziam-lhe tanta falta, (segundo
diz) como o cinema ou a rádio aos gregos do século V.
Algum tempo
passado, ninguém tirava da cabeça da Beauvoir que ela amava mais Sartre do que
Sartre a amava a ela. Ainda assim, sentia-se contente por se ter, finalmente,
apaixonado por um homem que considerava superior a ela. Não quer dizer que não
antevisse os perigos. O mais inteligente dos alunos mais brilhantes da École
Normale tinha forte noção do próprio génio, e até confessaria (mais tarde): eu via-me como um génio e falava com os meus
amigos como um génio falaria com os amigos – não faço ideia (e não sei se ele
faria) de como um génio fala com os amigos, mas está bem. E como tinha uma
personalidade forte (e pelos vistos altamente narcísica), aos amigos
chamava-lhes seus acólitos.
Não era coisa
fútil aquele amor, não, não era, aquele amor e aquele conceito de fidelidade. Depois de ter conhecido Sartre descarreguei
sobre ele o cuidado de justificar a minha vida. É obra!
Iam para a cama…
sim… ou não iam assim tanto – ou a certa altura deixaram de ir, é verdade, lá
mais para a frente. Então, para que queriam estar todo o tempo juntos? Para
conversar. Para viajar. Muito. O mais possível. Anos mais tarde, Cuba, Rússia,
China, Grécia, Brasil. E até Portugal. Todo o tempo juntos para pensar, numa
espécie de polifonia a duas vozes. Para ler, reler e comentar. Para escrever,
obviamente, sim, trabalharam em frente um do outro.
A minha sexualidade, como o meu gosto pelo café,
está nos meus livros. Cabe aos críticos descobri-la – resposta de um
Sartre já bem entrado na idade a um entrevistador.
Em 1929,
desafiaram evidentemente as convenções e as respectivas origens de classe,
média/alta burguesia. Iam inventando a relação enquanto a iam vivendo, e sempre
com a mira na liberdade, e no melhor uso que cada um lhe poderia dar. E como
iam tendo outros amantes, também calhava virem a ser amigos dos e das amantes
um do outro. Ou, como no caso de Sartre, partilhá-los. O pacto era a dois,
muita atenção, não era transmissível a outros envolvidos. Se o amor deles era
absoluto, eterno, primordial, as outras ligações seriam sempre secundárias, ou,
na definição cara a Sartre, contingentes.
E fizeram-se à
vida. 1931. Sartre não vai para o Japão. Vai dar aulas de Filosofia para o
liceu do Havre, que por sorte não era assim tão longe de Paris.
Pior para ela,
que lhe tinha tocado Marselha, a 800 km da capital.
Sugestão
subversiva: e se fossemos casados? Que é que você disse, casados? Sim, filho,
casados poderíamos ser colocados na mesma cidade. Valeria a pena aquela
separação só por causa de um princípio filosófico, ou de uma mera formalidade
legal? Sartre enchia-se de suores frios só de ouvir falar em casamento, em
formalidade legal. A solução era só uma: renovar o pacto. O que estava previsto
para dois anos passaria a vigorar para toda a vida. Combinado? Combinado.
Gostavam de
ensinar. E tinham boa consciência de estarem a servir de modelo para os jovens.
E foram-no, de facto. Daí a 40 anos muitos jovens por esse mundo, se calhar
intelectualizados como eu pelos cafés, tomaram-nos como exemplo nas relações
sentimentais que iam tendo, abertas.
Nos primeiros
tempos, Beauvoir olhava com alguma perplexidade os alunos e alunas, aqueles
adolescentes a quem tentaria converter às suas próprias maneiras de pensar. De
todos eles, quem a seguiria? E até que ponto? E depressa, e muito naturalmente,
se desencadearam as simpatias e as antipatias.
Em Marselha
passou Beauvoir o ano mais desgraçado da vida – diria ela, já velha, à biógrafa.
Temia por Sartre, apesar de todos os pactos. Bem vistas as coisas, Sartre era
um sentimental cheio de pena das raparigas com quem dormira e que deixara ao
abandono. Não tardaria nada e ei-lo seduzido pelas lágrimas de uma estúpida
qualquer.
E Beauvoir é
colocada em Rouen. 1932. As estações de comboio, de Rouen e do Havre, haveriam
de ser os pontos centrais das vidas deles naquela época. Rouen ficava a uma
hora do Havre e a hora e meia de Paris. Às quintas-feiras, Beauvoir não tinha
aulas e metia-se no comboio para o Havre. E noutro dia da semana que calhasse,
Sartre fazia o trajecto inverso. Aos sábados encontravam-se em Paris, iam
conversar para o Flore, para o Dôme, para o Coupole, para o Deux Magots, e iam
fazendo amor em hotéis baratos.
Sartre arranja
uma bolsa de estudo para Berlim. Quer estudar Husserl e Heidegger. A
fenomenologia, ouvida da boca de Raymond Aron, fascinara-o até à excitação. E
chegado a Berlim logo começam os trabalhos de sedução das colegas alemãs. Mas… despojado da minha arma, sentia-me um
idiota. A arma dele, está bem de ver, eram as palavras, o parlapiè, a língua francesa.
O alemão dele não chegava para altas cavalarias de sedução. E vai daí virou-se
para as colegas francesas.
Beauvoir mete um
atestado médico (falsificado) e ala a caminho de Berlim para ver em que paravam
as modas. E Sartre apresenta-lhe as suas namoradas. Ligações sem futuro, jurou;
o pacto continuava em vigor. E Beauvoir regressa a Rouen. E Sartre ainda fica
por Berlim mais um tempo, nos braços de uma colega casada.
Vai começar a
nova fase do pacto. Que durará até ao fim da validade deles.
Em Rouen,
Beauvoir engraça com uma aluna pálida, loira, etérea, cabelos compridos fatais
a caírem-lhe para a cara. Má aluna, por sinal, até ter escrito um trabalho
sobre Kant que a Dra. Beauvoir achou o melhor da turma. Nome da moça: Olga
Kosakiewicz. 17 aninhos. Ascendência russa e polaca. Aluna que por feliz coincidência
também engraça com a mestra. Porque a mestra era jovem, bonita, bem vestida e
bem maquilhada…
Nas férias de
verão deixam de se ver, mas Beauvoir escreve-lhe. Faz favor de não me chamar
mais de mademoiselle. Sinto-me
profundamente ligada a si; sinto quase dolorosamente a sua falta; é daquelas
pessoas que enriquecem a existência de quem as rodeia. Olga farta-se de
escrever à professora, mas depois de escritas rasga muitas das cartas. Porquê rasgar as cartas? – escreve-lhe a
professora quando sabe disso. Não há
nenhuma das suas expressões faciais, nenhum dos seus sentimentos, nenhum
incidente da sua vida que não me interesse. E fala-lhe de Sartre. E fala a
Sartre da pequena Olga.
Sartre que
regressa de Berlim; que volta às aulas no Havre. Um tanto abatido. O Partido
Nazi? Oh não, é um epifenómeno sem gravidade. O que o ralava era o tempo, que
passava muito depressa. Tinha 29 anos. Ninguém ainda tinha ouvido falar do
grande escritor, do grande génio chamado Jean Paul Sartre. Quem ainda não for famoso aos 28 anos deve renunciar à glória para
sempre, confessa a si mesmo.
E o grande amigo Paul Nizan era vê-lo, já ia
no segundo romance e esse ainda com melhores críticas do que o primeiro.
Enquanto ele, o génio Sartre, andava a vaguear pelas editoras com um romance
debaixo do braço. Para nada. Frustrado. E até um pouco frustrado na relação com
Beauvoir, estávamos cansados da vida
respeitadora e virtuosa que levávamos. Sentíamos a falta de uma vida de
desordem.
E conhece Olga.
E também ele se encanta com a pequena. Vem mesmo a apaixonar-se por ela, e a
querer passar cada vez mais tempo com ela. Olga conhecia-lhe a crónica, claro,
sabia da especificidade insólita daquele casal. Ele era muito romântico, recordou ela.
Beauvoir
escreve: os sentimentos dela em relação a
mim alcançaram uma intensidade ardente. E diz à rapariga: neste momento existem no mundo apenas duas
pessoas que contam na minha vida, e você é uma delas. E passaram a dormir
juntas, a dançar juntas nos bares da pequena Rouen, a embebedarem-se juntas.
Por aqui ia
Beauvoir acumulando material para um primeiro romance, que viria, uns bons anos
mais tarde, a ter por título A Convidada.
Do mais autobiográfico que se pudesse arranjar… Olga não se importava que as pessoas a julgassem lésbica quando
entrávamos num local público, e era esse tipo de comportamento que a divertia.
É Sartre que dá a
Beauvoir a ideia de tomarem conta de Olga, incluindo sustentá-la, já que os
pais da rapariga não deviam nadar em dinheiro e viviam longe; e já que ela
falhara nos exames de admissão a Medicina. E não, Olga não tinha jeito nenhum
para a Medicina. O caminho dela era a Filosofia. E então inauguraram a
modalidade relacional em que viriam a especializar-se: os trios; raparigas
seduzidas por Beauvoir que se deixariam seduzir também por Sartre.
De professora a
amiga, de amiga a amante, o percurso da dupla Beauvoir/Olga, com intervenção de
Sartre na funcional tarefa de lhe ensinar Filosofia e prepará-la para a
universidade. Beauvoir diria que naquele trio havia um brilho mágico.
O pior é que
Olga era um ser problemático de alto lá com ele. Não era menina que se
motivasse para qualquer actividade intelectual. Não tinha a mínima paciência
para aturar as longas prelecções filosóficas dos mentores que lhe tinham saído
na rifa, uma, duas, três horas de concentração e palestra. Adormecia. E Sartre
repreendia-a por indisciplinada. E Olga, que também não era menina para levar
reprimendas de um fulano com os olhos tortos, desinteressava-se ainda mais do
destino que aqueles dois à viva força lhe queriam traçar. Dormir, ouvir música,
dançar, era o que lhe ia mais a gosto, desorientada com todo aquele rigor
pedagógico, com toda aquela intelectualidade. Meses passados, Sartre e Beauvoir
conviriam que o melhor era desistir. E como Olga não sabia fazer nada, não tinha
modo de vida nem parecia interessada em vir a ter, continuaram a sustentá-la.
E atrás dessa
Olga chega ao convívio da dupla Sartre/Beauvoir a irmã dela, que se chamava
Wanda, que viria igualmente a ter um papel importante nas camas da dupla
filosófica. E atrás dessa Wanda vem um rapaz intelectual, fervoroso admirador
de Sartre, chamado Jacques-Laurent Bost, que virá a ter um papel importante na
cama de Beauvoir – e mais tarde na cama de Olga. Naquele convívio, Olga, Wanda
e Bost sentiam-se hipnotizados – palavras do rapaz.
Sartre
apaixonara-se por uma qualidade que advertira em Olga, uma autenticidade
radical, pura, espontaneamente insensata. Com
tudo o que sinto, antes de o sentir já sei que o estava a sentir… -
conversa dele. Engano as pessoas, pareço uma
pessoa sensível mas sou árido, sei disso, e estou cansado disso. Ao
filosofar sobre a liberdade, via em Olga a própria liberdade em movimento,
arrebatada, a transbordar violentamente de sentimentos puros. Uma jovem que não
fazia planos, que não queria rotinas, responsabilidades, deveres de qualquer
ordem. E assim, Sartre passava com ela situações tanto de alarme como de
êxtase. E como mandava o pacto, contava tudo a Beauvoir. E Beauvoir, ouvindo-o,
definia a sua situação interior como agonia. Mais isso do que ciúmes.
E as coisas
descambam numa competição, com Sartre a querer ultrapassar Beauvoir na vida de
Olga. E Beauvoir, por não poder admitir a mínima dissonância na relação com
Sartre, a deixar-se suplantar. Zangas e pazes. Se Beauvoir acudia por Olga
enfurecia Sartre; se acudia por Sartre amuava Olga. Pergunto a mim própria se a minha felicidade não se fundava numa imensa
mentira. E outra confissão a si mesma: os
meus apetites físicos eram maiores do que eu gostaria que fossem. E
envergonhava-se por isso. E porque isso não era problema de que Sartre se
queixasse.
Sim, porque,
para Sartre, os jogos de sedução eram trabalho literário. Belas palavras,
silêncios de entendimento e hábil manejo da técnica do ponto de vista.
No livro
autobiográfico As Palavras, muitos
anos depois, vem ele a admitir que aquele insofrido gosto pela sedução podia derivar
da noção que tinha da própria fealdade. Eram os talentos de comediante e de
contador de histórias que encantavam as moças e não o olho vesgo, o metro e 58,
o cachimbo, os pontos negros e assim. Já
em criança eu era um bobo, um palhaço, um impostor
E Beauvoir
envolvia-se entretanto com o intelectual Bost – aventura que naturalmente
comunicaria a Sartre… sim, mas neste caso sem partilhas de cama… Sartre não era
nada dessas coisas com homens. Ela escreve-lhe: há dois dias dormi com o pequeno Bost. Fui eu que sugeri, claro. As
minhas noites eram insuportavelmente opressivas.
Torciam
o nariz ao Freud. Que diabo, a vida não podia ser uma doença, e Sartre andava a
matutar num conceito de má-fé em lugar do inconsciente freudiano.
Mal tinham 30
anos e dialogavam muito sobre a monotonia que o futuro parecia querer
reservar-lhes. As vidas comprometidas um com o outro, as amizades estabelecidas
para sempre, as carreiras profissionais taxativamente definidas… enquanto o
mundo seguia o seu curso e nada de novo estaria para lhes acontecer. Angústias,
angústias. Angústias existenciais.
Escreve ela que
quando bebia o seu copito a mais rebentava em lágrimas pelo irrisório dos
destinos humanos na iminência da morte, porque se sentia invadida por aquela
velha nostalgia de absoluto. E sentia-se envelhecer, e porque tudo em volta
dela ia perdendo a cor. Sartre, por seu lado, reflectia na vacuidade absoluta
da consciência e do poder de redução ao Nada dessa consciência – começava então
a construir o sistema de pensamento que iria desembocar no chamado
existencialismo.
Entretinham-se
nas relações em trio, sim. Que comportavam, como parece evidente, não poucos
equívocos, ou mentirolas – ou mesmo chorrilhos de mentiras das mais grossas.
Geniais que fossem, eram humanos. E mentiras pregadas a pessoas de emoção
instável custam o seu preço. Inocentes mentiras, diria Sartre; ou meias
verdades; ou mentiras absolutas: a catalogação hierárquica dele, e vigente para
todos os aspectos da vida.
CONTINUA
Que bom que tenha voltado a presentear-nos com estes "mimos". Texto e imagens (sabiamente escolhidas...) reflectem com a sua habitual mestria irónica a "revolução" iniciada por este casal de que a nossa geração foi "filha". Como muito bem diz, quantas semelhanças em aspirações...obrigada, Joel, cá fico à espera da continuação.
ResponderEliminarVIVA!!! VIVA!!! Que bons olhos o vejam e leiam. Sempre a aprender sorrindo.
ResponderEliminarAbraço
Bettips
Bem-vindo de volta, fez-nos falta!
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