EXISTENCIALISTAS
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Com os substanciais
direitos de autor ganhos com o Segundo
Sexo Beauvoir comprou um gira-discos e um automóvel. E escreveu ao seu
amado Nelson Algren o seguinte: como o
amor é proibido, decidi entregar o meu coração sujo a algo menos grosseiro do
que um homem: entreguei-me a um belo carro preto.
Era o tempo dos
prometidos compromissos políticos. Manifestos, comícios, campanhas a favor
disto e contra aquilo (a favor do casal Rosenberg), posições públicas (a
questão da Argélia), apoios (Fidel Castro).
Claro que sim,
claro que um certo radical chique, digo eu, uma certa militância caviar. Até às
indecisões e às estupefacções – Maio de 68, vamos lá, entre maoístas e
feministas. E também num tempo de eleições presidenciais, com Sartre por
Giscard d’Estaing e Beauvoir por Mitterrand. E quando chegarem os anos 70 é
Beauvoir que sai a terreiro contra as leis antiaborto.
Muito antes
disso, em 45, Beauvoir passa umas semanas em Portugal. Conferências a convite
do Instituto Francês. Comparado com a França desses anos de imediato
pós-guerra, Portugal até parecia um país rico. Havia que comer. Havia que vestir.
E Beauvoir enche a barriga de bacalhauzadas e sardinhadas, e abastece-se de
sapatos e roupas. Bebe vinho verde, passeia pelo norte e por Sintra, vai aos
fados, vai aos touros, vê raparigas andrajosas que remexem nos caixotes do
lixo. De 7 milhões de portugueses há 70
mil que se alimentam sem privações; as pessoas aqui são tristes porque têm
fome.
Numa passagem do
romance Os Mandarins pode ler-se o
seguinte fragmento de diálogo: mas ainda
tenho imensas perguntas a fazer: que impressões levas tu de Portugal? Henry
encolheu os ombros. É uma nojice. Porquê? Por tudo.
Por falar nisso,
A Convidada, Os Mandarins… a obra
romanesca de Beauvoir faz-me lembrar o dito do poeta Alexandre O’Neil sobre os
romancistas… contar a vidinha, não é? E assim estava Beauvoir. Pelava-se por
contar a vidinha nos romances – já não falando das memórias, que, claro está,
era para isso mesmo que serviam. Em 54, sai Os
Mandarins, e ela volta a contar a vidinha. E mal disfarçada. Com
personagens que se estava mesmo a perceber que eram Sartre, Camus, Arthur
Koestler, Algren, as afinidades, as desavenças domésticas e intelectuais, as
dissensões ideológicas, amores, traições, ciúmes. Dedica o livro a Nelson
Algren. E vence – acho que já o disse- o Goncourt desse ano.
E Sartre
fascina-se com o Partido Comunista e com Moscovo e zanga-se com Camus. Anos
passados, quando faz os 70, recorda Camus com afecto.
Foi provavelmente o último bom amigo que tive. As simpatias do pós-guerra
pela URSS viriam dar razão muitos anos depois aos chamados Novos Filósofos
franceses, que lhe apontaram essa circunstancial simpatia pela União Soviética
como a loucura de um estalinista confundido.
Sai a Crítica da Razão Dialéctica. Os
indivíduos tinham cada vez menos poder nas sociedades modernas. Só na acção revolucionária
de grupo poderiam recuperar a liberdade - estava ele a preparar o espírito para
os maoístas que o irão seduzir na velhice.
Nessa fase
soviética é constantemente convidado para conferências em Moscovo, e é quando,
mais uma vez, como já disse, se apaixona loucamente. Por Lena Zonina, a
intérprete russa que a União dos Escritores Soviéticos lhe tinha destinado, a
voz grave, os seios macios (é ele que o diz), a pele aveludada, os ombros nus,
os cabelos negros, o sorriso.
A Zonina achava que ele estava apaixonado por uma
fantasia e recusava ser para ele uma espécie de ícone da Mãe Rússia. Ser amante
dele (atenção: às escondidas do Partido) ainda vá que não vá, mas nunca a
amante soviética. E foi um caso sério, outro, de paixão. O homem andava na fase
dos casamentos e também queria dar à russa uma melhor vida em Paris e casar com
ela.
Chega a novidade
do julgamento e da deportação dos jovens escritores Siniavsky e Daniel, por
terem publicado no Ocidente obras contra o regime, e essa novidade apanha Sartre
e Beauvoir em mais uma visita a Moscovo. Pedia-se a libertação dos dois
intelectuais, e a amante russa Zonina estava num dilema levado de seiscentos
diabos e um bocado esquerda com Sartre. Amara-o pela sua liberdade individual e
percebera que ele não era tão livre como queria parecer. E Sartre até
concordava com ela. Estava a ficar velho, as obrigações acumulavam-se-lhe na
vida, e à medida que envelhecia menos livre se sentia.
Não sei se estão
lembrados daquela Wanda, a irmã da outra Olga, a que o leva a cortar as
relações sexuais com a Beauvoir. Pois não sei se já o disse, também ela tinha,
como a irmã, apanhado o vício do palco e não queria outra vida. Alguém que lhe
escrevesse textos e a impusesse como actriz, tivesse ela o talento que tivesse.
E Sartre vá de escrever peças para ela, As
Mãos Sujas (“suponho que sejas meio cúmplice, meio vítima, como toda a
gente”).
Kean (“pergunto a mim próprio se os sentimentos verdadeiros não
serão, simplesmente, sentimentos mal representados”)
O Diabo e o Bom Deus (“a
desordem é o que melhor serve a ordem estabelecida”).
Em Junho de 51. Wanda,
sob o nome de Marie Olivier, actua ao lado de três monstros sagrados do teatro
francês, nem menos que Pierre Brasseur, Jean Vilar e Maria Casarés. Um triunfo.
Olga, a irmã, a primeira que dera em actriz, pobrezita, nessa altura estava
tuberculosa e já não tinha forças para subir a um palco.
Andavam a beber
muito, eles, Sartre e Beauvoir, a beber e a preocuparem-se com a situação do
mundo e da Humanidade. E a preocuparem-se com a quantidade de bebida um do
outro. Sartre, sempre escasso de tempo para tanta vida, tantos amores, tanto
pensar, tanto escrever, descambava nas anfetaminas. Noites em claro, café,
álcool, bebedeiras de cair, precisava de deitar mão a tudo o que o compelisse a
pensar.
E também os
sentimentos de culpa. As mulheres. As mulheres da vida dele. As mulheres a quem
ele ia pagando as despesas. Era como Beauvoir já havia pensado: as relações
entre os dois sexos eram mais fáceis para as mulheres do que para os homens. E
aí entrava o estatuto secundário atribuído às mulheres, estatuto que levaria os homens
a sentirem-se culpados quando as deixavam. E lá estava Sartre a ilustrar-lhe a
ideia.
Ele odiava cenas
de ciúmes e com as mentirolas que pregava não fazia senão provocá-las. Teve de
se haver com muitíssimas, e duras algumas. As mulheres, diz Beauvoir,
encurralavam-no, e ele levava a vida cheio de pesos na consciência. Sentia-se
em dívida quando uma mulher o amava. Até se perguntava até que ponto não seria
ele o causador da infelicidade delas. E as amantes parisienses, vivendo a dez
minutos de caminho umas das outras, raramente se viam, e nenhuma sabia a
verdade, toda a verdade, da vida dele.
E até vem ao
caso falar na carta que ele recebe de uma jovem franco-argelina de 19 anos, estudante
de Filosofia, em trabalhos com uma dissertação sobre Fenomenologia a que
gostava que Sartre desse uma vista de olhos. Sartre aceita. Passam a
encontrar-se aos domingos à tarde. Sartre dá a esses encontros uma ambiência de
psicanálise – ele, que via a psicanálise como uma violência e aderira ao
movimento anti-psiquiatria.
E com essa
franco-argelina, da psicanálise à mancebia não tardou muito. Mas também durou
pouco, meses. A rapariga, chamada Arlette Elkaim, passiva, toda ela problemas
íntimos e familiares, má estudante, sem jeito para nada (mais uma), desperta a
Sartre sentimentos paternais. Fosse por isso, vem a ser outra a depender
financeiramente dele. E tão dependente era ela que ele a adoptou como filha.
Saía a sorte
grande à rapariga. Uma vez declarada oficialmente, legalmente, filha de Sartre,
ficava com direitos morais e legais que Sartre nunca na vida pensara em dar a
qualquer outra das suas mulheres – e se não os dera a Beauvoir fora por causa
da proximidade das idades. Seria então a Elkaim a herdeira oficial e a gestora
da propriedade literária de Sartre. Não faltaria muito para ser uma mulher
rica.
Ora isto foram
facadas para as do círculo mais próximo das amantes e ex-amantes, que se
sentiram excluídas da secreta família. Estupefacções e mágoas; pranto e ranger
de dentes. Quando soube do caso, Wanda, a actriz (Marie Olivier), espatifou o
mobiliário do apartamento que Sartre lhe tinha oferecido e Michelle (a ex de
Boris Vian) ameaçou matar-se.
Beauvoir não se
conformava com aquilo de Sartre sustentar, e prodigamente, a franco-argelina
parasita. Beauvoir não gostava nada dela, é verdade, sentia que a rapariga se
roía de inveja dela, o que também devia ser verdade. Teria você aceitado que alguém o sustentasse quando você tinha 20 anos?
Sartre argumentou com Van Gogh, que tinha sido sustentado pelo irmão. Pois
sim, mas Van Gogh fazia alguma coisa, pintava. Dar dinheiro às pessoas por toda a vida e sem nenhuma reciprocidade?
Não acha que isso deturpa as suas relações com elas?
Já falei das
anfetaminas. Foi assim mesmo. A fama espicaçou-lhe a criatividade e a já de si
enorme capacidade de trabalho, e o momento estava a pedir uma intensificação
dos estimulantes. Anfetaminas. Pouco ou nenhum cinema à noite, como
antigamente. Acabavam-se as passeatas. Poucas leituras. Todo o tempo era de
menos para pensar e escrever e não havia tempo para luxos de liberdade
individual.
Nas anfetaminas,
os campeões parece que eram, nesse tempo, segundo leio, os jornalistas, metade
de um comprimido por dia, ou, no limite, conforme a pressão, um comprimido
inteiro. Pois Sartre chegaria a tomar quatro. E sem água a empurrar,
mastigados. Chegaria aos quatro e, tempos depois, chegaria aos 20 diários.
Estava-se a matar. Mais dois maços de cigarros sem filtro por dia. Mais uns
litros de chá e café. A noite era para mandar abaixo meia garrafa de whisky e emborcar outras quatro
pastilhas, mas estas para dormir. Andava-se a matar. Basta! Você anda-se a matar! – berrava-lhe Beauvoir.
E no meio disto,
o rapaz chegava à conclusão de que a escrita era ocupação fútil, irrelevante.
Havia crianças a passar fome. Havia injustiças a mais no mundo. A literatura
não levava a lado nenhum de jeito. A política, isso sim, a política sim.
Faz 44 anos e
não se conforma. A Beauvoir. Ah, o amor. Relegada para o que chamava de terra
das sombras. Virou-se para o que tinha sido amante em tempos, o então jovem
Bost. Dá em nada. O rapaz andava a dormir com Marguerite Duras. Nelson Algren
outra vez? Pois era, mas estava do outro lado do mundo, longe do Café de Flore
e não parecia muito interessado. Sartre… vá lá, amigo, vamos matar saudades e
reatar… não, Sartre andava nessa altura doido com Michelle, a mulher de Boris
Vian, e até queria ter um filho dela.
E ela, Beauvoir,
a sensação que tinha era de estar amputada. Detesto
a ideia de mulheres de corpos envelhecidos a agarrarem-se ao amor. Pois
detestava. Detestava quando era mais nova. Aos 44 anos continuaria a detestar,
mas não via alternativa a ser uma dessas mulheres. Já reflectira sobre isso no Segundo Sexo, as mulheres a perderem a
capacidade de atracção antes de perderem o desejo sexual. E para ajudar à
infortunada festa descobria um caroço numa mama e entregava-se ao desespero.
Isso do caroço,
que me conste, e tanto quanto percebi, parece que não foi nada de mais. Foi
operada. E atirou-se a um intelectual judeu, Claude Lanzmann – que mais tarde
viria a realizar um longo documentário sobre o Holocausto: Shoah, era o título. Atirou-se a ele e jurou
que o amaria para todo o sempre. E ainda viveram mais ou menos juntos por esse
todo o sempre, que foram sete anos. E mesmo vivendo com ele incitava-o, qual
Sartre em 1929, a sair com outras mulheres, a procurar os tais amores
contingentes. E ele obedeceu. E uma irmã dele, Evelyne, vai parar à cama de
Sartre e com essa Sartre torna-se sombriamente ciumento.
A existência continuava a ser uma alegria, apesar de tudo. Uma alegria para esse Claude Lanzmann, que no meio da relação com Beauvoir se apaixona por outra mulher, bela e rica, e deixa Beauvoir às aranhas, inconsolável, lavada em lágrimas – a dizer mal aos amores contingentes, acho eu. Mas recompõe-se. Ok, estava disposta a partilhar Lanzmann com a bela ricaça. Três dias com uma e três dias com outra.
Mas ai… aquele
amor era mesmo contingente. Lanzmann é enganado pela outra, que lhe dissera ter
30 anos e que quando ele foi a ver tinha 45. Deixa-a. Quer reconstruir a
relação com Beauvoir, mas numa base de amizade – ai… e, digo eu, como tudo isto
me parece tão imaturo, coisa de garotos, com homens e mulheres feitos e
durázios, e cuja experiência de vida talvez não fosse tanto de vida e mais de
literatura.
Ora a França, do
império já perdera a Indochina, e em 1955 era a Argélia a estar na ordem do dia
e a sobressaltar a consciência politicamente activa e militante de Sartre e
Beauvoir.
Os campos começaram a extremar-se radicalmente em vista de uma ameaça
muito real de derrocada do império ultramarino francês. Sartre e Beauvoir tomam
posições a favor da independência da Argélia. E são apontados como
anti-franceses, anti-patriotas.
Haverá bombas a rebentar no apartamento da Rue
Bonaparte, que era a casa da mãe e onde Sartre estava a morar. Primeiro foi em
61, e um segundo atentado dá-se em Janeiro de 62 e destrói totalmente o
apartamento.
Talvez inspirado
pelas circunstâncias, Sartre escreve outra peça (a última), e de novo para as
ex-amantes, desta vez Wanda e Evelyne (a tal irmã de Lanzmann), Os Sequestrados de Altona. As duas a
contracenar com a estrela da companhia, Serge Reggiani. Sobe à cena em 1959. Quem não faz tudo, não faz nada. Quem não
faz nada não é ninguém.
As posições de
Sartre tinham eco no próprio teatro das operações, em Argel. Os militares em
campanha temiam-lhe os artigos que publicava na imprensa de Paris. No filme A Batalha de Argel ouve-se um alto
comando operacional dizer que pessoalmente não gosta de Sartre e que não
gostava nada de o ter como inimigo. Daí que um batalhão de veteranos da guerra
da Argélia a desfilar nos Campos Elísios peçam o fuzilamento de Sartre.
Sartre, com
outros intelectuais, assinara o Manifesto dos 121, a exigir a independência da
Argélia já!, e mais a amnistia para os militares franceses desertores, e com
uma sugestão aos soldados no terreno para se insubordinarem – havia de ser
bonito estes manifestos e tomadas de posição acontecerem com intelectuais de cá
quando rebentou a guerra em Angola…
Já havia
acusações formais contra os signatários do Manifesto. Já havia gente a perder o
emprego. E já havia julgamentos e já havia prisões. E Sartre e Beauvoir
habilitavam-se ao mesmo e à ira dos veteranos de guerra se no regresso de uma viagem
a Cuba e ao Brasil aterrassem em Paris. Não aterraram. Avisados por amigos, não
aterraram, foram aterrar em Barcelona e chegaram a Paris por via terrestre. E
foram para o apartamento da Beauvoir, e por muito tempo não puderam sair de
casa.
E não há outro
remédio senão darem uma conferência de imprensa mesmo no apartamento para
desafiarem as autoridades a formarem uma acusação contra eles. E as autoridades
não formaram acusação alguma. É De Gaulle, a propósito, que se sai com esta: não se pode aprisionar Voltaire. E é
quando De Gaulle começa a falar em independência para a Argélia e a concitar,
também ele, os ódios da direita colonialista francesa.
Agora era o
Prémio Nobel da Literatura que estava na calha para Sartre. Aceitar? Não
aceitar? E porquê? Porque não aceitar? Qual era o óbice? Assunto longamente
debatido com Beauvoir. O óbice? Se aceitasse, queria dizer que capitulava aos
pés da burguesia, ele, o rapaz problemático que finalmente entrava na linha.
Então e as 250.000 coroas suecas? Bom dinheiro. Que bem tinha onde empregar –
comprar novos apartamentos para as amantes, por exemplo.
A rapaziada da revista
que ele tinha fundado, Les Temps Modernes,
faz claque para ele aceitar, sim, sim, aceita, aceita, não sejas parvo. Outros
amigos acham que não, você não deve aceitar essa merda desse prémio. Sartre nunca
mais seria Sartre se aceitasse – não se estava mesmo a ver o cariz político-ideológico
do prémio quando dado a Boris Pasternak, e apenas com o fim politico de
comprometer a União Soviética?
Sartre escreve à
Academia Sueca. Muito respeito por eles, sim senhor, mas eles que fizessem a
fineza de não o incluir no rol dos nobelizáveis. E já agora, antecipadamente, e
com os melhores cumprimentos, os informava de que se teimassem na ideia de lhe
dar o prémio ele não o aceitaria.
No dia 24 de
Outubro de 1964, Sartre é declarado vencedor do Prémio Nobel da Literatura. E
lá vai ele esconder-se dos repórteres no apartamento da Beauvoir.
É tardíssimo, já
passa das duas da manhã, quando ele resolve fazer uma declaração: o escritor não pode permitir que o
transformem numa instituição. Os círculos da direita iriam interpretar uma
aceitação do prémio como sinal de que tinha sido perdoado pelos pecadilhos
esquerdóides do passado.
Aos 55 anos,
Beauvoir está novamente a braços com o terror do envelhecimento. Do
envelhecimento e do celibato que lhe corresponderia. Será que se lembrou de
Ovídio? Peguei num punhado de poeira e
segurando-o na mão pedi insensatamente tantos anos de vida quantos grãos de
poeira eu tinha na mão: Esqueci-me de pedir que fossem anos de juventude.
Não sei se se
lembrou desta. Sei o que ela escreveu, e que foi: Odeio a minha aparência de agora: as sobrancelhas descaídas, os papos
debaixo dos olhos, as faces demasiadamente cheias e aquele ar de tristeza em
volta da boca que as rugas sempre provocam. O que é que ela queria, menina
eternamente mimada e egocêntrica… o que é que ela queria aos 55 anos de copos e
de vidas? Que o envelhecimento fosse só para as outras? Conclui que é chegada a
hora de dizer nunca mais. Nunca mais a uma quantidade de coisas. Nunca mais um
homem…
E começa a
identificar-se com uma jovem intelectual apaixonada pela vida. Jovem… sim, 33
anos, e eu reconhecia nela as minhas
qualidades e os meus defeitos. Tinha um dom muito raro: sabia ouvir. De seu
nome Silvie Le Bon. Depois de breve passagem pela cama de Sartre, nem seria preciso
dizer, vão as duas em lua-de-mel à Córsega, em 1965.
Uma infecção no
fígado, o ventrículo esquerdo cansado. Sartre envelhecia. Repouso. Mas o médico
diz a Beauvoir que o deixasse trabalhar um pouco e sem pressas. A não ser
assim, não lhe dava mais de seis meses de vida.
E nisto cai o
Maio de 68, e Sartre e Beauvoir declaram-se ao lado dos estudantes.
Sartre
participava em sessões públicas e os conselhos que tinha para dar àquela gajada
eram nenhuns, não, não tinha conselhos a dar aos estudantes, tinha era muito
que aprender com a rapaziada. Notava com gosto que os guedelhudos revoltosos não reclamavam
poder, reclamavam liberdade. Se um homem
não for contestatário não é nada.
Mas também
chegou o mês de Agosto desse ano e os carros de combate russos entravam na
Checoslováquia.
E Sartre afastava-se da União Soviética e chamava aos russos
criminosos de guerra. Não, não voltaria a pôr os pés na União Soviética. Aproximava-se
do movimento maoísta a reboque dos estudantes. Iria a Praga com Beauvoir em
visita de solidariedade e ambos começariam a andar pelas ruas de Paris a
distribuir o jornal maoísta La Cause du
Peuple.
O que lhes valeu irem dentro à mistura com 16 hirsutos estudantes.
Não aqueceram o lugar na cela. Foram prontamente libertados. Mas os 16
estudantes ficaram lá dentro.
Beauvoir, é
preciso dizê-lo, não ia muito com maoístas. Achava-os dogmáticos e violentos e
não acompanhava Sartre nessa aventura. O melhor era virar-se para a militância
feminista.
Depois de O Segundo Sexo,
passara a ser um símbolo dessa luta, enquanto Sartre andava a sentir-se à
margem do ambiente intelectual da época, um ambiente que considerava
anti-humanista.
A tal Wanda vem
a cair nas drogas. E das mais duras. A meter tráficos, desfalecimentos na via
pública, perdas de consciência. Era uma paranoica violenta que odiava a irmã,
Olga. E não só. Odiava muita gente, toda a gente, mas no top da lista dos ódios
pessoais dela morava, destacada, uma figura, Beauvoir. Por causa da Beauvoir
andou Wanda pelo vudu, a espetar alfinetes em bonecas, a riscar raivosamente
alguma foto de Beauvoir que aparecesse na imprensa. Até que comprou uma
pistola. E comunicou-o a Sartre. E disse-lhe da finalidade da pistola, acabar
com a raça dessa Beauvoir. E Sartre, excelso intelectual, ficou-se nas covas.
Bom, quem passou
à acção foi a nova amiga de Beauvoir, a Silvie Le Bon, que arrebanhou um grupo
de comandos com raparigas lá da École Normale e montou um golpe de mão ao
apartamento de Wanda, elas disfarçadas de jornalistas da revista Elle que desejavam entrevistar a famosa
actriz Marie Olivier. Encantada, Wanda abre-lhes a porta e é imediatamente
manietada, enquanto a outra secção do comando lhe vai às gavetas. Queriam a
pistola e queriam as cartas que Sartre tinha escrito a Wanda. Encontraram a
pistola, mas de cartas, nada. Eramos
muito loucas naquela época radical. Não me orgulho deste episódio -
confessará Silvie muitos anos depois.
Beauvoir adere
ao Movimento das 343, a favor da legalização do aborto. As signatárias – as que
alguma vez na vida recorreram a abortos clandestinos: Jeanne Moreau, Catherine
Deneuve, Giselle Halimi, Simone Signoret, Marguerite Duras, mais as mulheres do
clan Sartre/Beauvoir, mais a própria Beauvoir - a quem se punha a questão de
nunca na vida ter feito um aborto. Mero pormenor.
Toda a vida
Beauvoir sofrera de quebras físicas e morais, choros, ansiedades, angústias,
medo da morte e do vazio metafísico. Admitia no entanto que a assombração que
mais temia era a inevitabilidade da morte de Sartre. E quando um dia Sartre lhe
entra casa dentro com o braço direito paralisado, a boca à banda e as palavras
a saírem-lhe distorcidas, Beauvoir precisa de muita força de vontade para
dissimular o pânico. Um enfarte. Proibido pelos médicos de andar. Impossível
conversar com ele. O cigarro constantemente a cair-lhe da boca. É preciso
ajudá-lo até a comer.
Mas Beauvoir
ainda terá mais algumas ocasiões para ficar aterrorizada com a saúde de Sartre,
entre recuperações e recaídas. Conta Silvie Le Bon que nessa época Sartre não
tinha dinheiro nem para comprar um par de sapatos, enquanto as ex-mulheres
mudavam calmamente de apartamento. Em particular a filha adoptiva, a tal Arlette
Elkaim, asmática, a quem ele comprara uma casa na Côte d’Azur para ela fugir à
poluição da capital.
Como o tempo
passa. Foi em cheio no verão quente de 1975 que apareceram por cá os dois, a
ver como era para contar como foi. Ver como era o 25 de Abril, a revolução,
claro está.
Houve um
colóquio com estudantes, e Sartre e Beauvoir ficaram para morrer com a falta de
participação do auditório. Faziam perguntas: vocês querem uma sociedade
socialista, ou acham melhor uma coisa assim a meio caminho, uma democracia
burguesa? Resposta: silêncio. O que os leva a concluir que este pessoal de
Lisboa não tinha feito revolução nenhuma e que se tinha conformado com uma
revolução que alguém fizera por eles. O que era a mais pura das verdades.
Sartre gostou
mais dos operários em auto-gestão. E falou com eles. E falou com escritores que
não sabiam o que fazer à vida em revolução e lhe perguntaram como Lenine: que
fazer? Isto é o que Beauvoir conta na obra final A Cerimónia do Adeus…
Beauvoir põe-se
à escrita de um novo livro. Sobre a velhice. Os críticos aproveitam o ensejo
para ironizar com piada: depois do segundo sexo, vem a terceira idade.
É num tempo de
grandes polémicas, centradas nos movimentos maoistas, que Sartre fica cego.
Aceita a ideologia maoista que os da velha guarda sartriana, a começar por
Beauvoir, rejeitam. Sartre estaria capaz de pensar sem ver? Beauvoir tem
dúvidas. Trata dele como esposa amantíssima e dedicada. No tal último livro que
escreve, A Cerimónia do Adeus – quem
o leu fala dele como uma obra-prima – descreve os últimos tempos de um Sartre
definitivamente velho, incontinente, empobrecido.
No leito de morte, Sartre
pede-lhe um último beijo. E dedica-lhe as últimas palavras: je vous aime beaucoup, mon petit Castor. Ou
mais ainda: você irá na sua caixinha, de
onde nunca mais sairá, e eu vou na minha caixinha, e mesmo que nos enterrem
lado a lado, das minhas cinzas aos seus restos não haverá nenhuma passagem.
E reparamos como
mesmo os génios do pensamento e da razão a certa hora da vida e da morte, como todos nós, também se
podem tornar chéchés…
Pois é, não se
tratavam por tu. Nunca se trataram por tu. Diz Beauvoir: achei sempre muito difícil dirigir-me às pessoas em tom familiar. Não
sei porquê.
Se calhar ela
até sabia. Mas já aos 10 anos, com a grande amiga de infância, Zaza, usava o
formalismo do você. Não gostava de familiaridades, pronto. Dirijo-me a quase toda a gente de maneira formal, à parte uma ou outra
pessoa que me impôs um tratamento mais familiar.
Uma dessas
pessoas foi Claude Lanzmann. Insistiu em tratá-la por tu, porque não podia ser
amante de uma mulher que o obrigasse a tratá-la por você. Sartre dizia a isso: Castor não gosta de dizer tu. E não se pense
que isso causava alguma distância entre nós. Nunca estive tão próximo de uma
mulher como de Castor. Mas não, nunca nos tratámos por tu.
E chega a
primeira morte. Em 1980. Para Sartre. Edema pulmonar derivado da hipertensão ou
insuficiência cardíaca. Notícia de primeira página em todo o mundo. O
presidente Giscard d’EStaing passa uma hora junto ao caixão. Quereria Sartre um
funeral nacional? É certo que nunca quisera honras nacionais, mas o governo
gostaria de pagar as despesas do funeral – alguma informação o presidente teria
da situação financeira de Sartre, que não deixava dinheiro que chegasse para
pagar o enterro. Os amigos agradecem ao presidente, mas recusam. Quem pagaria?
Alguém havia de pagar.
Há fotógrafos
por todo o cemitério de Montparnasse. Beauvoir lança uma rosa vermelha sobre a
pedra tumular. O funeral resulta em festa e manif de juventude.
Em Beauvoir
vê-se uma viuvez pública. Com grandeza. Sem lágrimas. A filha adoptiva, Arlette
Elkaim, a asmática, está nesse momento a esvaziar de mobílias e de tudo o apartamento do
falecido.
Na mesma linha
de Sartre, Beauvoir adopta uma filha. Quem havia de ser? Silvie Le Bon, última
companheira, tornada Silvie Le Bon de Beauvoir. Beauvoir que vem a morrer em
Abril de 86.
A publicação da
correspondência do casal causa um estrondo escandaloso. Previsível, aliás. Finalmente, o mundo era conhecedor dos meandros do famoso
pacto, dos trios, das descrições de Sartre quanto à operação de tirar a
virgindade às namoradas que ainda a tinham, as ligações lésbicas de Beauvoir.
Um estendal de voyeurismo, de exibicionismo, de mentiras – e de
existencialismo, vamos lá, se quiserem.
Falou-se muito disso
na época. Bernard-Henry Lévy classificou a relação Sartre/Beauvoir como uma
sorte de Liaisons Dangereuses do
século XX. E um belo romance de amor, em todo o caso.
Foram
inseparáveis, na vida, no pensamento, na escrita. Leram-se obsessivamente um ao
outro antes de publicarem o que quer que fosse. A crítica americana arriscou
dizer que a parte substancial do pensamento de Sartre lhe vinha de Beauvoir.
Não sei se acredite.
Há várias mulheres na minha vida, sabe – uma entrevista
ao Nouvel Observateur em 1975. – Embora, num certo sentido, Simone de
Beauvoir seja a única.
E como consegue lidar com todas essas suas mulheres?
Minto-lhes.
Mente a todas?
A todas.
Mesmo a Beauvoir?
Particularmente a Beauvoir.
Beauvoir que
viria a declarar: Houve um sucesso
indiscutível na minha vida: a minha relação com Sartre. Em mais de 30 anos só
uma vez nos fomos deitar zangados.
FIM
Assim contado, com datas nomes histórias pensamentos e ligações
ResponderEliminartudo parece tão fátuo...
De existencialistas só tinham mesmo a existência. Sem lhes retirar o dom de escrever e descrever. Atravessaram a História olhando para os seus umbigos e, incessantemente, dizendo "Olhem para o meu umbigo"!
Obg e abç
Magnífico retrato de um tempo em que a realidade não era virtual...
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