segunda-feira, 29 de abril de 2013


       A JUSTIÇA DE VENEZA

Antes de ser doge, Francesco Foscari, membro de nobre família veneziana, desempenhou importantes cargos na administração da Sereníssima, embaixador, presidente do conselho dos Quarenta, inquisidor, procurador e cabeça do Conselho dos Dez. Na hora da eleição de um novo doge, no seu leito de morte, Tommaso Mocenigo, o doge cessante, advertiu os notáveis do perigo da eleição de Foscari como seu sucessor. Foscari foi eleito doge aos 49 anos e foi olhado como um perigoso jovem a ocupar aquele cargo.


A questão das beligerâncias. Mocenigo sabia que Foscari não tardaria a precipitar-se em guerras sangrentas contra Milão e contra Génova, coisa que ele sempre evitara. Mas o Senado e o Conselho não ligaram às advertências de Mocenigo e elegeram Francesco Foscari. Elegeram Foscari e com ele o pendor expansionista e guerreiro.  E é com o doge Francesco Foscari e a sua beligerância que começa realmente a grandeza e a maior influência económica e política de Veneza.


Escrevendo acerca dos doges de Veneza, um que fora embaixador  de Milão na Sereníssima, deixou dito: os patrícios venezianos não precisam de se cansar por causa das eleições; o que eles elegem é um sócio vitalício e não um duce. E é claro que, comparado com  o senhor de Milão, o doge de Veneza era um figurante. Por isso muitos afiançaram que todos os príncipes italianos eram tiranos com a excepção do doge de Veneza.
                                                     
                                    
                                                       
Francesco Foscari casou duas vezes. Teve muitos filhos e todos morerram com excepção de um, Jacopo. Jacopo Foscari é o centro da ópera de Verdi I Due Foscari.       
Passado o sucesso de Ernani, pelos anos 40 do século XIX, Verdi estava definitivamente lançado no galarim dos mais ilustres compositores transalpinos. As encomendas de novas óperas chegavam de toda a Itália, do Argentina de Roma, do S. Carlos de Nápoles, do La Pergola de Florença. Do próprio Scala.
       De igual modo lhe caíam sobre a mesa de trabalho projectos de novos argumentos, os de carácter histórico, as adaptações literárias, os tratamentos poéticos de episódios pertencentes à lenda.


      Dos registos desse tempo feitos pelo próprio Verdi constavam, prontas a ser musicadas, adaptações de Rei Lear, Hamlet, A Tempestade (Shakespeare), Kean (Dumas Pai), Caím (Byron), Fedra (Racine e Eurípedes), Ruy Blas e Le Roi S’Amuse (V. Hugo), Attila (Werner). Entre outras. E entre as outras tinha ele em carteira I Due Foscari, uma tragédia de Lord Byron com base em factos reais.  É sobre esse projecto, apreciado por Verdi como musicalíssimo e cheio de paixão, que recai a escolha.

                                                                         

Falando de factos, o doge Foscari escapa a pelo menos um atentado, em 1426, perpetrado por Andrea Contarini e desmonta várias conjuras para o eliminar, o que pode querer dizer que a figura dele não era assim tão inócua como isso. Estamos no ambiente altamente violento do Renascimento italiano.

                                                                    
Recuando  o tempo: em Veneza, no ano de 697, uma assembleia popular elege o primeiro duca, mas só no ano de 745 é que o doge Partecipazio estabelece perpetuamente a residência do príncipe, o Castello Ducale, e será perto dele que virá a ser construída a Basílica de São Marcos, para guardar os restos mortais do apóstolo, trazidos de Alexandria em 828 por dois marinheiros.

                                                              

Francesco Foscari é eleito em 1423 e Veneza abandona as suas anteriores posições de neutralidade no contexto político conflitual da península itálica. O poder não é para pessoas de bom coração e alma sensível e pacífica.
Foscari expande o território. Dá mais importância a isso do que a aspectos de política mercantil. Veneza junta-se então a Florença contra Gènova e contra a Milão dos Visconti, cuja ambição era o domínio total da Itália. Porém, a sucessão de campanhas militares proporciona rombos consideráveis aos cofres da república veneziana.
Foscari é eleito doge de Veneza em concorrência directa com Pietro Loredan. Mas mesmo já depois de eleito, Foscari vê-se constantemente confrontado e contraditado  pelo seu opositor, Loredan, ao ponto de dizer publicamente que nunca seria realmente doge enquanto Pietro Loredan fosse vivo – isto é histórico.


E logo calha que, meses depois, Pietro Loredan e seu irmão Marco morrem inesperadamente, e ainda por cima, segundo os boatos, envenenados. A suspeita da família Loredan evidentemente que se inclina para a culpabilidade do próprio doge e os sentimentos de vingança ficam em aberto.
Devido a vários descontentamentos com a política, Foscari solicita por duas vezes permissão de abdicar. Recusada.
E em 1444 começa o drama familiar dos Foscari que dá o assunto à ópera de Verdi, concebida com base no poema homónimo de Lord Byron e cujo enredo segue quase a par e passo a verdade histórica do caso dos Foscari, salvo algumas ínfimas questões de pormenor.
Jacopo, filho de Francesco Foscari, está encarcerado nas prisões do Estado e sobre ele impendem culpas graves.

                                                                                           

Francesco Foscari está velho e vem reflectindo muito acerca da sua real autoridade e no efectivo poder de um doge dentro das circunstâncias e do esquema institucional e político veneziano.
É esta exactamente a questão de moral: o poder efectivo (ou a falta dele) de um chefe de Estado ou de governo e as conveniências do interesse desse mesmo Estado em convencer a opinião pública acerca do funcionamento real e equitativo das suas instituições, mais os equilíbrios de poder e os compromissos indispensáveis de fazer com os aparelhos que rodeiam o poder e com as linhas mestras da cultura política dominante.




 
Lucrezia, uma nobre  Contarini, mulher de Jacopo, intercede junto do sogro, o doge, pede-lhe que faça alguma coisa a favor do único filho, segundo ela injustamente acusado de crime. Ignora ela que ao homem que governa e que dá a cara por uma política, por força do sistema de valores e de procedimentos que o suportam, não é permitida a liberdade de decidir totalmente segundo a sua vontade ou o seu próprio sentido de justiça. A verdade é que o doge de Veneza era quase um escravo do Estado, uma figura representativa e decorativa. Podia, sim senhor, dar os seus palpites nas assembleias dos vários conselhos, mas ninguém era obrigado a ligar meia ao que ele dizia, a palavra dele era tudo menos vinculativa nos assuntos de Estado. E era altamente vigiado. Os inquisidores da república estavam autorizados a entrar nos aposentos do doge a qualquer hora do dia ou da noite.

                                                                                        
                              
             
O doge nem era senhor de abrir as cartas que recebia das cortes estrangeiras. Não recebia sozinho os embaixadores, e nem era ao doge que os embaixadores apresentavam credenciais. E se o doge era presenteado a obrigação dele era desfazer-se rapidamente desses presentes. Nem podia ser dono do que quer que fosse que não fosse veneziano, e nem podia pôr um tostão de seu fora de Veneza.
A  moral de Estado impunha mais: assim que um doge era eleito, a família dele era imediatamente destituída de todos os cargos públicos, se os tivesse. E assim só para se ver aos pontos a que se chegava (nas aparências, pelo menos) com a moral de incorrupção da república que queria passar aos olhos do mundo por ser a mais democrática.
O velho Foscari diz à nora Contarini que a lei veneziana lhe deixa as mãos amarradas mesmo que se trate do seu próprio filho. Porque era  preciso que todos acreditassem que a justiça de Veneza funcionava. E que o melhor meio para obter essa finalidade era condenar gente importante, a começar pela família do cabeça do Estado.

                     

Anuncia-se a sentença contra Jacopo Foscari a ser pronunciada pela Junta e pelo Conselho dos Dez. O caso é delicado, visto envolver directamente um familiar do Doge. Mas também vem mesmo a calhar para os interesses da oligarquia dominante. Com a punição desse, outros crimes bem mais gravosos contra os interesses do Estado deixarão de merecer as atenções da opinião pública devidamente convencida do funcionamento da justiça da cidade.


É na noite de 5 de Novembro de 1450 que Jacopo Foscari é acusado de ter apunhalado pelas costas Ermolao Donato, chefe do Conselho dos Dez, quando, uma bela noite, este urinava calmamente ao pé de uma porta no campo de Santa Maria Formosa. É igualmente acusado de ter endereçado uma carta a Francesco Sforza, duque de Milão – de quem a Veneza de Foscari era inimiga, e este facto é absolutamente histórico.
Também não se livrava da fama de fazer espionagem para potências estrangeiras, Florença incluída; e dizia-se que nunca o muçulmano Maomé, o Conquistador, teria podido entrar em Constantinopla sem as informações secretamente transmitidas por  Jacopo Foscari, o filho do doge.
Tanto quanto se sabe, Jacopo nega o assassínio de Donato e argumenta que a carta escrita a Sforza era um pedido de intermediação em conflitos.
                                                                        
                         


Jacopo é submetido a torturas. Querem dele uma confissão em forma. Mas ele não confessa nada. Querem exilá-lo para longe de Veneza – para Creta, segundo o libreto verdiano; para Candia, segundo os dados históricos. O sistema jurídico-político veneziano quer dar bastas provas da sua imparcialidade e competência e tem que fomentar a sua própria credibilidade junto da opinião pública. É preciso que todos saibam que a justiça veneziana funciona. E a oportunidade que se apresenta é de ouro. É preciso condenar o filho do doge para salvar as aparências. Nem que ele esteja inocente. O sistema e a perpetuação desse mesmo sistema assim o exigem.
Bem, mas a justiça de Veneza tinha que se lhe dissesse. Eram os inquisidores da república e o Conselho dos Dez que tratavam da justiça democrática da Dominante. Trabalhavam em conjunto e os autos que levantavam eram secretos – segredo de justiça absoluto. Qualquer dos membros destas instituições podia mandar prender quem quisesse e sumariamente podia decidir sobre o destino desse que mandara prender, a menos que se tratasse de um patrício.


Os presos eram sujeitos a tortura mas apenas com vista à confissão. E a sentença que lhe aplicavam não lhe era notificada, nem a natureza do crime de que era acusado lhe era explicitada, e nem a identidade das testemunhas que o haviam incriminado lhe era revelada. E quanto à sua própria defesa, não tinha direito a dizer nem uma palavra.
Era executado em segredo, mas o cadáver podia ser exposto entre as colunas de S. Marcos.


Ninguém estava ao abrigo do braço justiceiro de Veneza. Nem o doge.


                                                                                         
                                             

Toda a coisa organizada supõe uma tendência para a oligarquia – portanto, para o poder de uns quantos sobre a massa dos restantes. Por mais que se diga, a tendência aristocrática do poder é real, seja ele qual for e de que sinal for, e até em partidos ou associações operárias. Em baixo, ficará sempre a massa. Tanto um partido como um sindicato, desde que estruturados, contam com uma clique dirigente que, óbvio, determinará os passos a seguir, dividirá os interesses e influenciará a massa para o apoio às iniciativas que mais beneficiem a clique do topo. E ficam assim as cartas distribuídas: uns serão sempre parte da minoria dirigente, enquanto outros ficarão para sempre como maioria dirigida. Não pode deixar de ser assim.
Começam por ser seis os membros do Conselho dos Dez, em 1178, e chamavam-lhe  então o Minor Consiglio. Mais tarde chamar-lhe-iam  La Signoria. Mas já em 1179 a eleição do chefe de Estado é realizada numa assembleia de onze membros.
 
Eleito por uma câmara de personalidades da elite, o povo reagiu ao processo de eleição do príncipe – mas então como é?, que raio de democracia é esta? E o povo insurgiu-se. E o doge, que tinha de ter alguma coisita de seu, não faz mais nada e manda atirar à multidão peças de ouro. E manda-se dizer que o povo haveria de conservar para sempre o direito de sanção dos actos do príncipe. E assim o povo se convenceu de que vivia num Estado democrático.
Em qualquer regime, incluindo a democracia representativa em que vivemos, uma minoria terá forçosamente que se impor às massas. As tais elites. A História não deve passar de um enredo urdido na luta dessas diversas elites pelo poder. É o politólogo italiano Wilfred Pareto que, opondo-se à luta de classes marxista, propõe uma explicação teórica da História como mera circulação de elites, ou uma permanente substituição de um grupo de privilegiados por outro nos lugares de poder. E sendo a característica primordial de uma sociedade precisamente a característica da sua elite governante.
                               

                    

 
Mas diz a crónica histórica que o filho de Francesco Foscari era rapaz inteligente mas um pouco estouvado, frívolo e irresponsável. Também o acusavam de aceitar demasiados presentes de certos cidadãos e até de príncipes estrangeiros interessados em influenciar a política veneziana. E quem rejubila com a desgraça da família Foscari é o antigo inimigo, historicamente morto, mas na ópera de Verdi ainda vivo, Loredan.
É na presença impotente do próprio doge, pai do condenado, que o Conselho dos Dez confirma a sentença de exílio de Jacopo. Jacopo apela ao pai, ao doge, o doge recomenda-lhe resignação aos interesses da justiça de Estado. Os filhos de Jacopo rojam-se com a mãe aos pés do avô doge, que assume a postura de Estado e continua impassível ante a dor familiar. A justiça de Veneza funciona: é essa a ideia que é obrigatório pôr a circular.
Mas Francesco Foscari atormenta-se, claro, em privado, com a sorte do filho. Sabe que as culpas do filho estão a ser ampliadas pela camarilha que envolve o poder e que é o filho a pagar o ódio que muitos dos notáveis nutrem pela figura do doge vitalício e intocável, e por imperativo de cargo condenado à impotência.

 
É assim. Oligarquia. Os dirigentes passam a impor as suas decisões aos dirigidos e formarão entre eles ainda outro círculo, la créme de la créme, devidamente fechado e blindado, cujo objectivo máximo não pode deixar de ser a sua perpetuação no poder, e porque a tendência de quem manda é perpetuar-se no mando, deixemo-nos de fitas, perpetuar-se e reforçar-se no mando, contando para isso com a inércia da massa dos dirigidos que com facilidade e docilidade espantosas se entregam nas mãos dos ditos especialistas do mando. E as coisas são, como sempre foram, assim, e não há volta a dar-lhes por mais nobres que sejam as intenções de todos, mandantes e mandados.
 
                                                     
 
Diz a História que os julgadores do caso de Jacopo Foscari (os inquisidores e o Conselho dos Dez) o trataram enquanto réu com um rigor desmesurado.



 
O Conselho dos Dez. O Conselho dos Dez propriamente dito e com este nome é criado justamente em 1310, na sequência de uma tentativa de golpe de Estado urdida por umas famílias patrícias. Viria depois a ser o Conselho dos Quarenta e depois ainda o Gran Consiglio, o grande conselho.
                                                          
                                      

 
Segundo os comentadores, porém, o seu número de dez ou de quarenta ou de quantos fossem, não significava necessariamente que tal órgão fosse uma assembleia popular muito representativa. Parece que não passava de uma espécie de clube político muito fechado, investido de poderes legislativos absolutos, que investigava, instruía, condenava e executava, e ainda habilitado a outorgar títulos de nobreza e de cidadania – além de ter a prerrogativa de nomear a seu bel talante para todos os empregos da administração pública.
O Conselho dos Dez dispunha dos orçamentos de Estado, dos dinheiros públicos e dos exércitos da Sereníssima. No seu seio estavam os inquisidores. E foi o Conselho dos Dez que humilhou os Foscari, provavelmente por algumas contas antigas.

 
Mas o veneziano acabara por se conformar sem murmúrios com o poderio decisor desse Conselho dos Dez. O braço policial dele era comprido, muito comprido, e mais, e no caso de algum suspeito escapar, ficava a família para pagar a culpa, e o Conselho dos Dez não fazia cerimónias com essa família. O Conselho dos Dez persistia em provar que as suas decisões não eram motivadas pela paixão ou pela parcialidade, mas pela justiça, e não houve Estado italiano renascentista que tivesse mais poder e autoridade sobre os seus cidadãos do que Veneza. Uma autoridade que os poderes não se contentavam que fosse secular e policial, mas também, e talvez sobretudo, moral.


                                          
 
Jacopo Foscari jaz no exílio. Mas a certa altura aparece uma carta.

 
Aparece uma carta assinada por um certo Nicoló Erizzo. Erizzo confessa-se autor do homicídio de Ermolao Donato, um dos crimes pelos quais Jacopo Foscari tinha sido condenado. Ao saber disso, o octogenário doge dá graças aos céus. Vai finalmente ver o filho em liberdade e completamente ilibado.
Já há senadores dispostos a rever o processo e a libertar Jacopo. A opinião pública pode começar a mudar de parecer. Por mais que odeiem Foscari, os senadores sentem-se constrangidos a considerar aquela carta como prova da inocência de Jacopo. Quanto mais não seja para fazer ver ao povo que a justiça veneziana funciona; e funciona quanto mais não seja pela admissão de um erro na investigação e na instrução do processo. 
 Jacopo, encarcerado longe de Veneza é que nada sabia do que se estava a passar.
Quando a boa nova da graça concedida pela justiça de Veneza chega ao cárcere, Jacopo Foscari estava morto. Morrera de desgosto.

 
Mas também  a solidez política e institucional de Veneza parece que não encontrou similares em toda a península itálica. Burkhardt diz que tal se devia a um conjunto de circunstâncias impossível de encontrar noutros estados. Veneza era uma cidade inatacável, que se mantinha sóbria nos negócios estrangeiros. Que se pusera de parte na maior parte das querelas que afectavam outras cidades. O apoio de Veneza era caro e as alianças que celebrava eram tácticas e no geral de pouca duração. Era um Estado altivo, aristocrático e desdenhoso dos problemas dos outros.

 
Mas, voltando ao nosso assunto, Loredan, o inimigo de Foscari continuava a conspirar na sombra contra o velho doge que agora vivia muito retirado, quase não aparecia em público e já pouco atendia aos negócios do Estado. Uma comissão de senadores, convocada e comandada por Loredan apresenta-se ao doge e convida-o a abdicar. Porque razão? Pela sua muita idade. Pelo seu cansaço. Pelos desgostos que ultimamente sofrera. O velho Foscari recorda-lhes que já por duas vezes quisera abdicar e que eles não lhe tinham aceite o pedido. Mas percebe que nada há a fazer. Sabe de experiência própria que as decisões do Conselho dos Dez são irrevogáveis e por isso a sua revolta é mais intensa. Porque, enfim, também ele pertencera ao mesmo Conselho dos Dez.
O velho doge atira-lhes então em cara com a sua obra em prol do engrandecimento da sereníssima república:
- É esta a graça iníqua que  concedeis ao velho guerreiro? É com isto que premeais o valor e a fé que fizeram expandir o nosso  império? Condenastes-me um filho inocente e agora quereis obrigar-me à desonra da abdicação?
É assim mesmo a política, senhores.

                                                            
 
Aliás, como aos outros doges de Veneza, a Foscari tinha sido imposto o juramento de morrer em funções.
O Conselho dos Dez é que não se demove. As insígnias do poder são arrancadas a Francesco Foscari, o anel, o manto, o corno. É forçado a deixar, e depressa, o palácio ducal.

 
O poder, o poder! Estranho e desvairado estado de espírito é o do poder em todos os tempos. O poder que deveria ser exercido no interesse dos homens, que de facto é, mas só de alguns desses homens. Inevitável. Seja qual for o regime.
E a liberdade e a autonomia de um poder também não deveriam ser exercidas à custa dos justos interesses de outros homens ou das regras da sociedade por que esse poder se rege. O pior é que hoje em dia cada vez mais interesses injustos, ou até perversos, são, por conveniência dos lobbies, considerados justos. E a questão do poder político colocou a questão da intervenção de cada homem no exercício desse poder. Uma questão de moral.
Spinoza e Locke, ou Montesquieu, ou Rousseau, postularam a interferência directa ou indirecta de todos no poder. A interferência só de alguns foi considerada, por exemplo, por Aristóteles, por Gobineau, por Marx e Lenine; enquanto Séneca, Maurras ou Mussolini sustentaram que o poder era para manter independente dos destinatários dele. Mas outros não estiveram com mais aquelas e e afirmaram que, lá por causa disso, o melhor ainda era destruir o Estado: Proudhon, Bakunin. 
                                                                    
                                                   
                                                              

Diz a História real destes factos venezianos que a 31 de Outubro (ou 1 de Novembro) de 1457, uma semana depois da sua abdicação, ao ouvir soar os sinos que anunciavam a eleição do seu sucessor (que viria a ser Pasquale Malipiero), Francesco Foscari teve uma forte comoção, o coração não lhe resistiu e morreu. E diz o célebre erudito destas coisas do Renascimento Italiano, Jakob Burkhardt, que o penoso martírio moral sofrido pelo doge Francesco Foscari perante o olhar de toda a população foi exemplar das terríveis vinganças políticas muito possíveis, ou muito mais possíveis em estados fortemente aristocráticos. 


Os funerais foram de esplendor, como se Foscari ainda fosse uma cabeça coroada. O novo doge acompanhou o préstito vestido apenas de senador. O grande inimigo dos Foscari, Loredan, escreveria no seu livro de assentos: os Foscari pagaram-mas. 
Foscari foi um dos raros doges a quem foi retirado o cargo,  acusado de cansaço evidente e reclusão demasiada no palácio que manteve o seu nome, Ca' Foscari, hoje sede da Universidade de Veneza.
E a ópera de Verdi, I Due Foscari, é estreada em Novembro de 1844 no Teatro Argentina, em Roma.

                                       


 

7 comentários:

  1. Bela reflexão sobre os absurdos do poder e seu exercício...Mas sempre com um toque de música a acompanhar. Obrigada, Joel.

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  2. Como.sempre, uma bela reflexão sobre os absurdos do poder... e a musica sempre a acompanhar...
    Obrigada, Joel

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  3. Encantatório... tanto mundo por igual! Vinganças velhas.
    Só me falta a voz porque a música se inventa.
    Abç

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  4. Só uma nota: à época, "Candia" (nome latino), Cidade cretense, deveria ser a "capital" de Creta, não havendo portanto qualquer contradição entre as hipóteses apontadas. Atualmente, Cândia voltou a ser a capital desta Ilha (e Região Administrativa grega), com os nomes gregos (clássico) "Heraclion", ou (moderno) "Iraklio" (que em Português podemos transcrever como Heraclião, ou Iráclio), depois de ter sido em épocas passadas substituída nessa função por Hanià (nome atual, em Grego), ou Caneia (em Português), ou La Canea (em Italiano), ou ainda Chania (em Inglês...).

    Ambas as Cidades possuem, aliás, evidentes e fabulosos vestígios da sua prolongada colonização veneziana, apesar das posteriores ocupações muçulmana, otomana e, a bem dizer, também britânica e alemã (já no Séc. XX...), sobretudo o pitoresco Porto de Hanià!

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  6. Parabéns ao Autor deste belo texto que descreve o exercício do poder na milenar Veneza.
    Registre-se, no texto, a consciência de guerreiro do velho doge Foscari ao dizer:"- É esta a graça iníqua que concedeis ao velho guerreiro? É com isto que premeais o valor e a fé que fizeram expandir o nosso império? Condenastes-me um filho inocente e agora quereis obrigar-me à desonra da abdicação?"
    Demonstra consciência, naqueles idos de 1457, da importância do guerreiro e de sua atuação na expansão do império, atos capitalistas, - naquela Veneza que Braudel identifica como a primeira fase do capitalismo - mas sublinha, sobretudo, a importância do guerreiro e de sua atuação, algo a ser considerado pelos sociólogos de todos os matizes, que ignoram este fundamento da sociedade. De Paulo Guilherme Hostin Sämy

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  7. Cândia e Creta são a mesma coisa. Sob o domínio veneziano, chamou-se Cândia.

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