O ESPELHO
Almas sentidas, noites
perdidas, sombras bizarras…
Passa hoje, ou talvez amanhã,
mais um ano sobre a morte da Amália.
Porque morreu? Sim, porque
morreu. Diziam-na imortal? Pois por isso. Tinha que morrer. É imortal e morre?
Pois, imortal, e por isso mesmo a ter de morrer um dia. Para se saber ao certo
que era imortal. E porque nenhum artista é imortal enquanto estiver vivo.
Enquanto vivo, um artista ou é novo ou é velho. Imortal nunca. Para se ser imortal
como deve ser tem de haver a prova decisiva, a morte física.
Mas não é disso que quero falar.
Ouvi-a a cantar há bocado num rádio aqui da
vizinhança.
Só se é pela luz cansada de todos os outubros de Lisboa que o caso da
Amália se torna actual e algum povo torna a cantar a imortalidade daquela que
morreu. É sempre tempo de falar de uma eternidade. O povo cantou no funeral, o
povo cantou-a ontem, o povo canta-a hoje. É o que dá a medida certa de uma
eternidade.
No funeral? Sim. Lembro-me. Eram ex-salazaristas. Eram
ex-comunistas. Eram actuais democratas. Eram antigos democratas. Eram até actuais
comunistas. Eram eternos coisas-nenhumas. O povo – fala-se tanto dele quando
não há nada de glorioso de que falar, e pouco se fala dele quando ele reassume
a sua memória e canta nas ruas o seu destino.
Maravilhado e temeroso com o canto do seu destino, o
povo de Lisboa comemorou-a espontaneamente nas ruas. Cantou uma artista. A
artista que o tinha cantado a ele. Troca por troca, sim. O povo das ruas não
podia ter feito outra coisa. Não há como o povo mesmo povo para compreender, e
o povo compreendeu que desaparecendo fisicamente a Amália começávamos todos a
fazer menos sentido. Como deixámos de ter quem nos cantasse o destino,
interrogamo-nos ainda hoje muito justamente: será que vamos continuar a ter um
destino?
Com a morte da Amália partiu-se-nos
o espelho.
Será que precisamos de um
espelho para o nosso espírito de nacionalidade fremente e encoberta?
De nacionalidade? Ou de
universalidade?
Todo o homem, como todo o
grupo, precisa de espelhos, espelhos continuamente vivos de si. Só com espelhos
vivos se adestram identidades.
A identidade? Algo que é, e
que, paradoxo, não se limita a ser. Não é uma estátua finita. Pode ser imagem
reflectida. Pode ser movimento renovado, embora perplexo ou imponderável.
Imagem que se propaga e que incessantemente se repropõe à consciência.
E ela era, sim, a Amália, a
voz, a figura, o estro, o cabelo, o nariz, o hálito, um espelho de certa
condição de ser; espelho de um ser colectivo que existe porque sim. Sim, mais
nada. Só porque sim. É o nosso ser de portugueses, porque sim.
E partiu-se-nos esse espelho.
Mau agoiro.
Um espelho é um alarme.
Quantas angústias me não são acrescentadas pelo espelho que sou eu mesmo sem
ser? E quantas satisfações de ser eu mesmo sem ser não me são dadas por um
espelho?
Partiu-se-nos o destino.
Partiu-se-nos o sonoro espelho de nós mesmos. E comprometeu-se-nos grande parte
da nacionalidade – quero eu dizer: da universalidade.
Se ela gostava do Salazar não
sei. Sei que o som dela foi um acto de resistência a todas as pequenas tiranias
que vivemos, porque era um som transversal à consciência. Mesmo com o Salazar,
ela advertia-nos do Eterno que estava em nós, logo, cantou a negação do próprio
tempo contingente que construiu o Salazar, esse tempo contingente que se quis ideologia
nacional.
Faço-me entender?
Já calculava que não.
Digo que o som dela era a
História. O som dela era a reminiscência de uma nacionalidade espiritual a
sobrepujar a miserável circunstância de um regime político ou de uma
casualidade económica.
O som dela eram as cavidades e
os pináculos da nossa insensata razão de ser. De ser a nossa alta civilização,
de ser a nossa particular barbárie.
Agora, com esta burocracia euro-comunitária,
precisávamos mais dela do que nunca.
Precisávamos-lhe do som que
brotava da nossa memória e corria para o nosso esquecimento.
Precisávamos-lhe hoje – mais
do que nunca, não sei - do som que
errava por claustros monacais, por renques meridionais perfumados de
laranjeiras, por brancas frontarias ao sol, por palácios de grandeza
envergonhada, por palmares silenciosos de escravos e por quenturas indianas,
por certas vielas da nossa ruína senhorial, por todos os números cabalísticos,
pela nossa nostalgia de um cheiro de mar, pelo suor e pelo sangue das nossas
batalhas perdidas, pelos nossos mais altos tronos ora apeados, pelos altares da
nossa velha ansiedade de não ser…
Ela era todos. Ela era a nossa
altitude e a nossa atitude. Ela era o curso brutal do nosso rio subterrâneo.
Almas sentidas, noites
perdidas. Mais do que isso: sombras bizarras: nós, de nós mesmos, e da nossa
soberania de sonâmbulos que cantaram nas ruas a melopeia que nas ruas havia
para cantar e que só ela foi sapiente para compreender.
Não era uma artista. Não era
uma cantora. Não era uma fadista - a menos que o fado seja o inventário de uma
fé, o relatório de um desespero. Ela éramos nós, nem que cantasse o exótico Inch’allah, ou o negro Summertime.
Ela era o espelho. Naquele
espelho identificávamos o nosso sangue mesclado, o secreto nome árabe que
escondemos, a sonegada negritude, os traços célticos que nos são mais íntimos,
o judaísmo. Ela era toda a condição de sermos nós, almas sentidas, noites
perdidas, sombras bizarras…
Não se sobrevive bem sem um espelho,
caraças.

concordo.
ResponderEliminarBelo ensaio sobre a portugalidade...
ResponderEliminar